Mais Richard Wagner do que nunca no Festival de Bayreuth
23 de julho de 2022Por seu antissemitismo manifesto, conexões post-mortem com Adolf Hitler e o nazismo, seu caráter manipulativo e egocêntrico, Richard Wagner (1813-1883) deve estar para sempre condenado ao hall das figuras artísticas controvertidas. Contudo, a julgar pela renovada popularidade do Festival de Bayreuth, sua obra permanece uma grandeza fixa.
Todos os anos, milhares de wagnermaníacos e aficionados da ópera em geral peregrinam de todo o mundo até a cidadezinha na Baviera, mas 2022 é um ano especial: de 25 de julho a 1º de setembro de 2022 estão programadas nada menos do que cinco montagens inéditas das óperas do gênio musical e literário alemão – um recorde na longa história do evento.
A produção de abertura será o drama de amor Tristão e Isolda; sendo também aguardada com ansiedade a estreia do novo O Anel do Nibelungo, a tetralogia filosófico-mitológica do mestre. O suspense é ainda maior pelo fato de em 2021 a pandemia de covid-19 ter esvaziado bastante não só a plateia como a programação da mítica Festspielhaus, o teatro do festival no topo da "Colina Verde".
A diretora artística Katharina Wagner, bisneta do compositor, se diz satisfeita com a boa lotação: "O coronavírus infelizmente causou uma rarefação do público, muitas casas registram um forte recuo, também no setor de assinaturas. Estamos felizes por ter os ingressos quase esgotados", comentou à agência de notícias DPA.
O Anel: épico familiar para maratonear?
O ciclo O Anel do Nibelungo, formado pelas óperas O Ouro do Reno, A Valquíria, Siegfried e Crepúsculo dos Deuses, foi estreado em Bayreuth em 1876,. Para sua execução – durando, no total, cerca de 16 horas, excluídos os intervalos – foi que Wagner mandou construir a Festspielhaus, a partir de suas revolucionárias visões artísticas pessoal.
Uma das inovações impostas pelo músico foi que a orquestra desaparecesse no fosso sob o palco, a fim de reforçar a ilusão cênica. Passados quase 150 depois, a casa de ópera é famosa em todo o mundo por sua excelente acústica, especialmente vantajosa para os cantores.
Não deixando esquecer que a pandemia ainda grassa, porém, nos últimos dias desenrolou-se em Bayreuth um certo "carrossel" de regentes: após ter ensaiado o Anel do Nibelungo com a orquestra do teatro, o finlandês Pietari Inkinen teve que cancelar sua participação, devido a uma forte covid-19.
Ele será substituído à frente da tetralogia pelo diretor musical da Ópera de Stuttgart, Cornelius Meister, que originalmente viera para reger Tristão e Isolda. Esta, por sua vez, será assumida por Markus Poschner, diretor da Orquestra Bruckner de Linz.
A direção de cena de O Anel do Nibelungo fica a cargo do austríaco Valentin Schwarz. No trailer promocional para O crepúsculo dos Deuses, ele compara o obra a uma série da Netflix: uma sequência de episódios para serem consumidos um atrás do outro. O premiado diretor de 33 anos expõe sua concepção: "O Anel é um monumental épico familiar, quase no formato de uma tragédia grega, e portanto como que predestinado a uma abordagem cinematográfica."
Tristão e Isolda como utopia amorosa
O rei Marco da Cornualha vai casar-se com a princesa Isolda e encarrega seu sobrinho, o cavaleiro Tristão, de escoltá-la da Irlanda. Após equívocos e desenganos, acreditando tratar-se de uma poção mortal, ambos bebem uma poção mágica do amor, e se apaixonam perdidamente. O resultado é traição e adultério, que acabam inevitavelmente punidos com a morte de ambos.
Com base em fontes mitológicas germânicas, mas também inspirado pela filosofia de Arthur Schopenhauer e por seus próprios imbróglios amorosos, Wagner compôs Tristão e Isolda entre 1857 e 1859 como ápice e superação do romantismo musical; uma arquitetura de harmonias, melodias, sons orquestrais até então jamais escutados, que revolucionariam os rumos da história da música ocidental.
Em Bayreuth 2022, o diretor de cena Roland Schwab concebe a ópera como "a peça máxima sobre o amor". Embora os protagonistas morram no fim, deve restar um raio de esperança: "Vivemos numa época tão desiludida, que me permito a liberdade e gostaria de criar uma verdadeira utopia do amor: um manifesto pela beleza", explicou à emissora alemã BR.
"VolksWagner" para todos
Um outro recorde: ao todo, estão em cartaz em Bayreuth, este ano, oito das dez óperas que o compositor autorizou serem apresentadas em seu templo autoerigido – uma disposição que a família respeita religiosamente até hoje. Além dos novos Tristão e Anel, com suas quatro partes, serão retomadas montagens passadas de Lohengrin, Tannhäuser e O Navio Fantasma.
Esta última terá direção musical da ucraniana Oksana Lyniv. Aos 44 anos, ela é a única mulher que já subiu ao púlpito do maestro no Festival Wagner. Outro detalhe: numa tentativa de atrair públicos mais jovens Lohengrin também será apresentada como ópera infantil – como já se fez com Tristão em 2021.
Para quem quiser saber mais sobre Richard Wagner como fenômeno pop, o Museu Wagner abre a partir de 23 de julho a mostra VolksWagner: popularização, apropriação, kitsch. Lá, o genial compositor e autor é enfocado "entre propaganda de cerveja, heavy metal e altar de matrimônio", ou seja: a partir de seu lugar e sua comercialização na cultura popular contemporânea.
Os recém-chegados ao culto wagneriano também têm sua chance: nos dias de espetáculo, o museu também oferece tours especiais intitulados Festival para iniciantes. "Eu tinha a impressão que cada vez mais espectadores vinham a Bayreuth pela primeira vez, e não ao longo de 30, 40 anos", comenta o diretor da instituição, Sven Friedrich.
Como Richard Wagner e seu evento costumam ter para os novatos uma aura elevada e intimidatória, "pensei em simplesmente contar algo sobre a ideia do Festival, e a sequência de um dia de récita", revela Friedrich à DW. Pois, a cada temporada, não são poucos os que vêm lhe perguntar sobre o código de vestuário, a duração das pausas ou sobre as celebridades aguardadas.
Atmosfera de festival impera também do lado de fora da Festspielhaus: pela primeira vez e grátis, um Festspiel Open Air convida o público em geral para concertos-surpresa ao ar livre, com músicos das produções operísticas. E, fato raro em Bayreuth: do programa não consta apenas música wagneriana.