Décadas depois de quase se matarem no campo de batalha, dois antigos soldados de tropas inimigas da Guerra da Bósnia se reencontram numa mesa de bar e acabam se tornando sócios.
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Em outubro de 1992, no front de guerra de Skelani, perto de Srebrenica, dois soldados se encontram durante um combate. O bósnio muçulmano Daut Tihic é mais rápido e atira no inimigo sérvio, derrubando-o.
Anos mais tarde, no outono de 2006, quando a guerra na Bósnia-Herzegovina já tinha há muito acabado, Daut bebia com amigos em sua aldeia natal, Skelani, quando viu um homem de rosto familiar entrando no bar.
O desconhecido o cumprimentou e se sentou em outra mesa. Daut não acreditava. "Este é o homem que matei", gritou para seus amigos, antes de se levantar, ir até o homem e dizer: "Eu matei você!"
Em outubro de 1992, Daut fugiu com a família de Skelani para as montanhas, indo para o vilarejo de Miljevine. Lá, soube que os sérvios preparavam um ataque contra as aldeias Josevo e Jagodnja. Com um punhado de soldados, foi ajudar na defesa dos moradores.
"De repente, vi a alguns metros de mim um soldado sérvio. Ele se levantou lentamente e se aproximou de mim com uma arma. Eu atirei e o acertei no peito. Ele caiu de costas. Eu estava certo de que ele estava morto."
Depois, correu para a aldeia: "A batalha não durou muito tempo. Nós conseguimos repelir o ataque e defender os moradores. No caminho de volta, eu não vi nem o soldado sérvio nem a arma dele. Eu achava que os colegas dele o tivessem levado embora, porque eu podia ver que se tratava de uma unidade de elite."
O soldado sérvio se chama Dane Vasic. "Para falar a verdade, eu estou sinceramente contente de que ele esteja vivo", afirma Daut. "Assim ele não me pesa na consciência."
E foi assim que eles se conheceram, em 2006, num encontro regado a aguardente, como é costume nos Bálcãs. Os dois são personagens principais do documentário (Ne)Prijatelji (não amigos, em tradução livre), dos diretores bósniosEmir Kapetanović e Sead Kreševljaković. O filme, contando a história dessa amizade inusitada, foi exibido neste mês no Festival de Cinema de Sarajevo.
"Devido aos constantes ataques dessas aldeias, planejamos aquela incursão", lembra o sérvio. "Eu conhecia a área e fui requisitado para sondar o terreno. Era uma operação de rotina. De repente, ouvi ruídos, alguma coisa se quebrando. Eu me virei e vi um homem que apontava uma pistola para mim."
Vasic diz que, a princípio, não sabia de que lado o outro soldado era. "Este momento de indecisão foi crucial para ele. Ele foi mais rápido, senão eu o teria matado. Eu não ouvi os tiros. A última coisa que vi foi o cano da arma dele. Eu senti uma pancada que me jogou vários metros para trás. Quando recobrei os sentidos, vi a coronha destruída da minha arma e meu colete à prova de balas destroçado. Ele me salvou. Eu tive a incrível sorte de permanecer ileso", conta Dane Vasic.
Ex-inimigos unidos após a guerra
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Após o encontro no bar, Daut e Dane não só se tornaram amigos, mas também parceiros de negócios. Eles planejam até mesmo fazer investimentos conjuntos. Dane vive do outro lado do rio Drina, na Sérvia. Ele compra e revende ervas e frutos silvestres, tem um caminhão e possui várias lojas de suvenires.
"Estamos planejando abrir uma empresa comum que combinaria os negócios meus e dele. Nós apresentamos um projeto à administração, mas ainda estamos esperando autorização", diz Daut. Dane assente com a cabeça. "Houve atrasos, não sei por quê. Mas sei que decidimos trabalhar juntos, e tenho certeza de que teremos sucesso."
"Parece que alguns políticos não gostam muito do nosso bom relacionamento e cooperação, eles preferem que estivéssemos brigando e travando guerras, e que cada um de nós viva em seu gueto étnico, para que eles possam permanecer no poder e governar mais facilmente", acredita o bósnio muçulmano Daut.
Eles começaram a falar abertamente sobre quem fez o que e onde durante a guerra. "Não preciso ter vergonha", frisa o sérvio. "Eu não fiz nada de errado ou ilegal, eu era um soldado como ele, atirei nele, ele em mim. Assim é a guerra: você mata para não ser morto. Acho que nem eu nem Daut queríamos essa guerra." Eles concordam que nenhuma guerra jamais trouxe algo de bom.
Refugiados impulsionam economia paralela na Sérvia
Enquanto cada vez mais refugiados atravessam a Sérvia, moradores voltam-se para os campos de refugiados em busca de lucro, ofertando serviços extremamente necessários. Diego Cupolo documentou a crise nos Bálcãs.
Foto: DW/D. Cupolo
Garotos do ônibus
O transporte foi o negócio que mais cresceu nos Bálcãs. Pessoas como Liridon Bizazli, um albanês que vive em Kosovo, aguardam no lado de fora do campo de refugiados de Presevo para vender passagens por 35 euros para a Croácia. Bazazli conta que não ganha mais do que 8 euros por dia em seu trabalho como garçom, mas a venda de passagens rende de 50 a 70 euros por dia.
Foto: DW/D. Cupolo
Um refugiado ajuda o outro
Apesar do valor que recebe, Bizazli afirma não se orgulhar de seu trabalho – e negociar algumas viagens gratuitas para refugiados, especialmente para famílias com crianças que não podem arcar com os custos. "Eu também já fui um refugiado, então entendo", conta. "Essas viagens de ônibus deveriam ser de graça. A Europa dá dinheiro para a Sérvia ajudar os refugiados, mas nosso governo não faz muito."
Foto: DW/D. Cupolo
Oferta e demanda
Negócios próximos aos campos de refugiados estenderam seus horários de funcionamento para atender à demanda criada pela chegada diária de 8 a 10 mil pessoas, como ocorre em Presevo. Mercados e restaurantes estão constantemente cheios de clientes, e os preços dobraram – em alguns casos até triplicaram. "Em nenhum outro lugar da Sérvia eu vi um hambúrguer custar tanto", conta Bizazli.
Foto: DW/D. Cupolo
De chips de telefone a carrinhos de mão
Tirando a comida, o primeiro item que um refugiado procura é geralmente um chip de telefone celular para contatar familiares e amigos. O resultado é um número incontável de pessoas que vendem cartões pré-pagos perto dos campos. Mas itens menos previsíveis também entram na lista: carrinhos de mão para os idosos ou aqueles que têm dificuldades de locomoção, como esta mulher curda da Síria.
Foto: DW/D. Cupolo
Fornecedores de calçados
Apesar da proximidade do inverno e da ocorrência de tempestades ser mais frequente, muitos refugiados seguem viajando sem calçados e convivendo com doenças nos pés e na pele, conta Stefan Cordez, coordenador da organização Médicos sem Fronteiras, em um campo de refugiados no sul da Sérvia. Vendo a oportunidade, muitos sérvios aproveitaram para vender calçados e meias perto dos campos.
Foto: DW/D. Cupolo
Tráfico de documentos
Em um esforço para controlar a crise, países na rota de migração devem registrar novas chegadas, o que ocasionalmente cria filas quilométricas fora dos campos de refugiados. Segundo Daniela Gabriel, uma voluntária independente em Presevo, motoristas de ônibus começaram a coletar os documentos de registro de migrantes ligados à Croácia e revendê-los para pessoas que querem contornar as fronteiras.
Foto: DW/D. Cupolo
Vítimas de informações falsas
Gabriel conta que alguns motoristas de ônibus e táxis cobram dos refugiados para levá-los à Croácia, mas os abandonam em cidades sérvias, alegando que eles devem fazer o registro em áreas não-existentes. Para evitar que os refugiados aceitem falsas propostas, Gabriel pendurou uma placa de sinalização na entrada do campo de Presevo e traduziu as informações para diversos idiomas.
Foto: DW/D. Cupolo
Assalto nas estradas
Outros voluntários, que pediram para não ser identificados, contam que receberam ameaças de morte por encaminhar os refugiados aos ônibus e alertá-los para evitar táxis que poderiam ser perigosos. Alexander Travelle, voluntário em Presevo, conta que, na semana passada, uma família de seis pessoas foi assaltada à mão armada por um taxista após pagar 80 euros por uma viagem até a Croácia.
Foto: DW/D. Cupolo
Cada um ganha o seu
Bizazli admite que paga à polícia local 100 euros por semana para vender as passagens no campo de refugiados Presevo. "É só dar o que eles querem que te deixam em paz", conta. Muitos voluntários, que pediram para permanecer anônimos, contam que também testemunharam taxistas pagando a policiais. "Mas isso não significa que todos os agentes de polícia estejam ganhando propina", afirmou um deles.
Foto: DW/D. Cupolo
Não há vagas, com exceções
Conforme o clima esfria, os hotéis ao longo da rota migratória acomodam cada vez mais refugiados. Voluntários contam que os proprietários são bastante seletivos quanto às pessoas que escolhem receber. Refugiados são mandados embora com frequência, a não ser que possam pagar as tarifas acima da média, já que um número maior de pessoas costuma dividir quartos individuais.