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VariedadesBrasil

Com hiato, carnaval das escolas de samba faz 90 anos

27 de fevereiro de 2022

Desfiles do Rio de Janeiro superaram outras manifestações culturais da época e acabaram se tornando o símbolo internacional da folia brasileira. Desde 1932, houve uma única lacuna – por culpa da pandemia de covid-19.

Desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro de 2020
Desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro de 2020Foto: Fabio Teixeira/AA/picture alliance

A ideia tinha uma razão prática: preocupado com a falta de assunto ocasionada pela ausência de jogos de futebol durante o feriado do Carnaval, o jornalista Mário Filho (1908-1966) resolveu que seu jornal, o Mundo Sportivo, organizaria um torneio de escolas de samba.

Em fevereiro de 1932, a Praça Onze, no Centro do Rio de Janeiro, teve o primeiro desfile do tipo, com a participação de 19 escolas. Cada uma podia apresentar três sambas. O certame foi vencido pela Estação Primeira de Mangueira.

"Esse desfile foi o embrião do que se tornaria o produto do Carnaval. Foi estabelecido um regulamento com fundamentos que acabariam se tornando tradicionais. Houve o julgamento de quesitos como a apresentação do pavilhão e a harmonia vocal", destaca o historiador Cesar Frezzato, pesquisador das escolas de samba do Rio e fundador do canal @historiasdocarnaval no Instagram.

O que era para resolver um problema do noticiário esportivo acabou crescendo a ponto de se tornar a expressão do Carnaval brasileiro mais conhecida mundialmente.

"O Brasil tem muitos símbolos no imaginário internacional, símbolos fortes como o futebol e a bossa-nova. Mas o Carnaval, mesmo tendo diversas manifestações, tem essa imagem muito ligada à escola de samba", diz Frezzato. "A escola de samba reúne uma série de elementos potentes numa só manifestação: a dança, o canto, o figurino, a cenografia, a narrativa… Isso é muito forte e acabou contribuindo para a construção da imagem do Brasil."

Para a coreógrafa Maria Alice Monteiro Motta, coordenadora do Núcleo de Pesquisa e Extensão de Samba no Pé Urbano Carioca e professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o sambista Paulo da Portela (1901-1949) precisa ser lembrado como elemento-chave nesse processo de organização.

Não só porque ele conseguiu compreender que a escola de samba, ao representar as comunidades negras periféricas, servia como elemento de inserção social desses muitas vezes marginalizados: "Ele propôs estratégias e negociou com diferentes agentes ligados ao complexo cultural do samba, como governo e indústria fonográfica, sendo importante para o processo de profissionalização dos sambistas e para o direcionamento a um referencial cultural negro-africano dentro da cultura nacional", explica Motta.

"É importante destacar que, para além do caráter festivo, as agremiações são espaços de educação e formação do cidadão, territórios onde regras de vestimenta, comportamento, atuação e compreensão de mundo são inseridos como orientações sociais, econômicas e políticas", afirma a coreógrafa.

Desfile das escolas de samba cariocas é tematizado também na mostra Miniatur-Wunderland, em HamburgoFoto: Marcus Brandt/dpa/picture alliance

Evolução do samba

Foi um processo gradual, evidentemente. Nos anos 1930, o destaque era restrito às crônicas jornalísticas cariocas. "Apresentações em 1933 no Teatro São José e no Cine Smart, realizando as chamadas Noites de Samba, bem como as filmagens de Favela dos meus amores [longa-metragem de Humberto Mauro, lançado em 1935], contribuíram para que as escolas de samba dessem seus primeiros passos para ser reconhecidas como símbolo nacional", contextualiza o historiador Fabio Henrique Monteiro Silva, professor na Universidade Estadual do Maranhão (Uema).

A consolidação dos desfiles como um produto acabaria dando o primeiro passo em 1935, quando o espetáculo foi oficializado, passando a ser organizado pela prefeitura do Rio. "Havia uma consciência do prefeito da época, Pedro Ernesto [do Rego Baptista (1884-1942)] de que a festa era uma prática agregadora de pessoas que poderia despertar interesses populares", comenta o músico Alberto Tsuyoshi Ikeda, professor da Universidade de São Paulo (USP) e consultor da cátedra Kaapora da Diversidade Cultural e Étnica na Sociedade Brasileira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

"Ele tinha consciência dessa capacidade do Carnaval de ser um elemento de agregar valores e dinamizar a cultura e a vida social na cidade. Talvez não seja coincidência ele ter fundado também um Departamento de Turismo. Ou seja: notou o grande potencial do Carnaval como uma experiência de grande valor, geração de renda. O Carnaval começava a se tornar um produto de exportação", conta Ikeda.

Segundo o professor, à medida que o formato ganhava mídia e se firmava como sinônimo de carnaval, a sua imagem se ligava simbolicamente à própria ideia do Rio de Janeiro. "A ponto de, na referência mundial, carnaval passar a ser visto como algo carioca". Para tal, "há interesses: econômico, financeiro, turístico e cultural".

Marca internacional

Aos poucos o carnaval das escolas de samba foi se sobrepondo, em divulgação, às demais práticas populares do período festivo. Ikeda conta que a partir dos anos 1950, esse estilo de celebrar o Carnaval já era uma marca brasileira no exterior. "Conversei certa vez com integrantes antigos da [escola de samba] Mangueira, e eles me disseram que na década de 50 foram convidados a se apresentar no Japão. Ou seja, já havia um reconhecimento internacional dessa expressão bem brasileira."

Mas essa relação de Carnaval como cartão-postal do Rio de Janeiro é uma via de mão-dupla. Afinal, também vale ressaltar que o Carnaval das avenidas também ganhou projeção global por ser uma manifestação originária do Rio, uma cidade essencialmente turística por suas belezas naturais, rica história e, claro, por ter sido a capital do Brasil por um longo período.

"Fato é que o desfile das escolas de samba acabou realmente virando um grande produto de exportação. Muitos turistas vêm para o Rio para o Carnaval, para acompanhar os desfiles na Sapucaí", comenta Frezzato, para quem são vários os fatores que explicam o fenômeno. "Primeiro, que o Rio já era a grande porta para o turista e para quem observa o país a partir de outros locais", mas as características de grandes dimensões da festa também acabam rendendo imagens de fácil apelo na divulgação.

Carnaval de rua em Santa Teresa, Rio de Janeiro: além dos desfiles das escolas, a festa popular tem muitas outras facetasFoto: Marcelo Theobald/GDA/ZUMA/dpa/picture alliance

O historiador cita o célebre carnavalesco Joãosinho Trinta (1933-2011) para definir o Carnaval como a "grande ópera popular brasileira", já que reúne diversos elementos artísticos num espetáculo narrativo. "Quando essa grande manifestação passa a ganhar a sociedade carioca, outras manifestações carnavalescas acabam ficando para trás. As escolas de samba também aglutinam características de outras festas, por exemplo, as alegorias."

O "produto" ficou completo e empacotado com os elementos que, aos poucos, foram lhe dando uma organização, prossegue Frezzato. "Temos o sambódromo, que é um palco especialmente construído para que ele ocorra. Temos a constituição de uma grande liga, uma associação das escolas. O apoio constante da prefeitura e de outros patrocinadores. Toda uma estrutura organizada faz do carnaval das escolas de samba o farol do Carnaval do Rio de Janeiro", acrescenta o historiador.

Tudo isso veio aos poucos, é claro. Como ressalta o professor Monteiro Silva, "os desfiles da Praça Onze foram se transformando, até desembocar na apoteose da Sapucaí". "Essas transformações foram atravessadas por tensões e intenções, gerando calorosos debates acerca da complexidade que se tornara uma escola de samba", comenta. "Das primeiras escolas, que eram comunidades familiares compostas por cerca de 30 pessoas, até as chamadas super-escolas, muito enredo foi desenvolvido. E tais mudanças sempre despertam o descontentamento e a nostalgia dos tradicionalistas."

Carnaval clandestino na mira da polícia

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Ele conta, por exemplo, que nos anos 1970, quando as "escolas já haviam consolidado seu destaque", expoentes do chamado "samba de raiz" vieram a público criticar os rumos que o Carnaval havia tomado. Foi o que levou, por exemplo, o sambista Candeia a fundar uma organização dissidente, o Grêmio Recreativo Arte Negra Escola de Samba Quilombo, para desfilar o Carnaval na chamada "forma antiga", sem a pasteurização da mídia.

Atualidade

Em 2021 – pela primeira vez desde que os desfiles de escolas de samba foram instituídos, em 1932 – não houve desfile de Carnaval. Claro, por causa da pandemia de covid-19. Em 2022, as escolas de samba devem retornar à avenida Marquês de Sapucaí, mas a programação foi adiada para abril, em virtude da escalada de infecções no Brasil causadas pela variante ômicron.

Para os especialistas, esse hiato histórico não prejudicou a imagem do Carnaval brasileiro, porque fez parte de um contexto mundial de suspensão de eventos. "O que ficou, foi um prejuízo econômico e financeiro, isso é irreparável", registra Ikeda. "Mas a imagem construída se preservou."

E os holofotes, as regras do mercado e a padronização deixaram o carnaval das avenidas menos popular? Frezzato pensa que não: "Mesmo tendo se tornado um produto de exportação, refém de uma administração cada vez mais profissional, em que cifras financeiras enormes estão envolvidas, a escola de samba não deixa de ser uma manifestação cultural genuinamente popular."

"Essa autenticidade está na série de elementos, na criatividade e na renovação constante. Todos os anos são compostos centenas de sambas-enredos, há uma parte musical muito ativa e criativa, uma elaboração plástica complexa dos desfiles, dos figurinos e dos carros alegóricos…", enumera o historiador. "Isso tudo torna o carnaval das escolas de samba uma manifestação muito pulsante e baseada ainda na criação das pessoas majoritariamente negras das comunidades onde as escolas estão formadas."

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