Michael Moore usa Europa para expor mazelas dos EUA
Jochen Kürten (av)17 de fevereiro de 2016
Lançado na Berlinale, "Where to invade next" compara EUA a nove países do outro lado do Atlântico. Trabalho, alimentação, sistema penal: está claro quem sai como perdedor. Mas há um – bem americano – fundo de esperança.
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Impossível deixar de reparar Michael Moore. Por razões de saúde, ele teve de cancelar sua visita à capital alemã, mas nas telas do 66º Festival Internacional de Cinema de Berlim ele se exibe de corpo inteiro. Ao que tudo indica, o parrudo americano adquiriu mais uns quilos desde sua grande última aparição, no Festival de Veneza, em 2009, para apresentar Capitalismo: Uma história de amor.
A nova travessura de Moore, Where to invade next ("Onde invadir a seguir", em tradução livre), teve estreia mundial no ano passado, no Festival de Toronto. Alguns dias após sua primeira exibição europeia, na Berlinale, o filme chega às salas de exibição alemãs. Hoje em dia, são poucos os documentaristas tão populares quanto Moore – ou cujas aparições públicas causem tamanho rebuliço midiático.
Após a première no Canadá, Where to invade next ganhou fama de ser a produção mais divertida e bem humorada do cineasta. Contudo, mesmo um documentário engraçado de Michael Moore será sempre um filme em que o riso fica entalado na garganta da plateia.
Ele já provara isso em Tiros em Columbine, de 2002, sobre a paixão dos americanos pelas armas de fogo, e Fahrenheit 11 de setembro – lançado dois anos mais tarde, abordando o clima nos Estados Unidos após os atentados de 11 de setembro de 2001.
Os documentários do diretor são shows de um homem só, sem medo de atacar de frente a temática escolhida e seus protagonistas. São reveladores, humorísticos, nada moderados, mas sempre interessantes de assistir. Em sua estética, eles mais lembram as reportagens das emissoras de TV privadas dos EUA do que documentários convencionais.
Um Moore diferente
Também em Where to invade next, Moore mantém-se fiel a seu princípio cinematográfico de abordar seus interlocutores diretamente com a câmera, confrontá-los com perguntas e fatos, integrar as reações deles e as próprias na argumentação.
Mas desta vez algo é diferente: não se trata de um filme de denúncia, pelo menos não no sentido usual do termo. Moore empreende uma viagem a oito Estados europeus e à Tunísia, para lá apresentar as respectivas tendências e processos em termos de progresso e civilização.
Na Itália, trata-se da relação entre patrões e empregados. Na França são as vantagens da alimentação saudável. Na Alemanha, a forma de lidar com a própria história. Na Noruega o cineasta observa o sistema penal, de um humanismo exemplar. Na Eslovênia, o sistema de estudo gratuito. Na Tunísia ele enfoca os direitos da mulheres numa sociedade árabe.
O cineasta como "invasor"
Como obviamente era sua intenção, Michael Moore só descobre vantagens, contextos sociais progressistas e exclusivamente positivos. Ao fim de cada episódio, porém, há sempre um perdedor: os Estados Unidos. Em comparação com a Europa e a Tunísia, as tendências no país natal do diretor parecem francamente deploráveis, seja no sistema educacional ou penal, na nutrição ou na abordagem da própria história.
"Os Estados Unidos da América estão envergonhados e desesperados. Desde a Segunda Guerra Mundial, a nação mais poderosa do mundo não concluiu nenhuma guerra em seu próprio favor", diz a abertura do documentário. Moore enumera: Vietnã, Líbano, Iraque, Afeganistão, Líbia... O balanço é devastador.
Isso precisa ter fim, exige o cineasta, de seu típico jeito cômico-brutal. No momento, afirma, ele próprio é a única invasão que deve partir dos EUA. Assim, parte para a Europa armado com uma bandeira americana, que finca no solo do país em questão ao fim de cada visita. Nessa "invasão", a principal arma de Michael Moore é sua matraca impiedosamente veloz.
EUA, eterno perdedor no universo Moore
Na Alemanha, Moore admira a postura dos cidadãos diante do Holocausto. Ele visita em Berlim o Memorial aos Judeus Assassinados da Europa, acompanha as aulas de história nas escolas do país.
E compara tudo isso com os EUA. Como se lida lá com os índios? Como se vê a afirmativa de que o país "foi construído nas costas dos escravos negros"? Moore pergunta tudo isso, e a resposta é sempre inequívoca: os Estados Unidos fazem péssima figura.
Em comparação ao da Finlândia, o sistema educacional de seu país é simplesmente pré-diluviano, acusa. A alimentação nas escolas americanas é vergonhosa, comparada à da França. Ao lado da Noruega, as condições nas penitenciárias dos EUA são profundamente desumanas.
E os americanos não aprenderam nem mesmo com a falência do banco Lehman Brothers, ao contrário dos islandeses, que também estiveram à beira do colapso financeiro e – do ponto de vista de Moore – tomaram todas as decisões certas para vencer a crise financeira.
Visão excessivamente seletiva
No entanto, há uma luz no fim desse túnel de crítica contra os EUA. Muitas das atuais conquistas civilizatórias foram originalmente criadas e instituídas pela nação americana, diz Moore. Só que desapareceram no decorrer da história.
Foram os operários de Chicago a trazer à consciência nacional a importância dos direitos trabalhistas, evoca o cineasta. As mulheres americanas foram as primeiras a se engajar pela equiparação de direitos e pela autodeterminação. E também o direito a um tratamento humano para os detentos foi uma noção dos pais da democracia americana, muitos séculos atrás.
"O sonho americano continua vivo", ouve-se ao fim de Where to invade next – porém só fora dos Estados Unidos. Entretanto, ainda há esperança, pois o país ainda está fundamentado nos princípios da democracia e dos direitos humanos, da humanidade e da amizade, postula o cineasta.
Não há como negar que o americano optou por caminhos um tanto fáceis em sua concepção jornalístico-cinematográfica. Se ele tivesse lançado o olhar, por exemplo, sobre o sistema penal francês, sobre diversas dinâmicas da economia italiana ou sobre a radicalização crescente da sociedade alemã, em direção à direita, o resultado teria sido bem diferente.
Mas talvez Michael Moore só quisesse injetar um pouco de coragem nos europeus, em tempos de crise de refugiados e das instituições da União Europeia.
66° Festival de Cinema de Berlim
"O direito à felicidade" é o lema da Berlinale em 2016. Com a promessa de lançar olhar sobre sentimentos humanos, evento inclui temática da crise de refugiados, remake de "O Diário de Anne Frank" e filmes brasileiros.
Foto: picture-alliance/dpa/M.Kappeler
Boas escolhas
O sucesso de um grande festival depende dos organizadores e das escolhas dos filmes. Dieter Kosslick, diretor da Berlinale desde 2001, sabe tanto espalhar bom humor quanto apresentar filmes que mostram o lado obscuro da vida. A temática dos refugiados ganha destaque no 66° Festival de Cinema de Berlim, realizado entre 11 e 21 de fevereiro na capital alemã.
Foto: Getty Images/AFP/O. Andersen
Sobre refugiados
O lema da 66ª Berlinale, "o direito à felicidade", pode ter muitas interpretações. Mas, naturalmente, o Festival aborda o principal tema da atualidade: a crise de refugiados. O documentário italiano "Fuocoammare" foca na ilha mediterrânea de Lampedusa para abordar o direito à felicidade, tanto dos moradores quanto dos refugiados que ali desembarcam. O filme concorre na competição oficial.
Foto: Berlinale
A felicidade das estrelas
Grandes festivais como a Berlinale são sempre medidos pelo número de estrelas internacionais em seus tapetes vermelhos. Neste ano, entre outros, está sendo esperada a atriz francesa Isabelle Huppert. No filme "L'avenir", que também concorre na competição oficial, ela faz o papel de uma professora à procura da própria felicidade.
Foto: L' avenir/Mia Hansen-Løve
Presenças hollywoodianas
Quando as estrelas de Hollywood chegam à Berlinale, não devem faltar gritos de fãs. E isso já no filme de abertura do festival: "Ave, César!". Dirigido pelos irmãos Joel e Ethan Coen, ele os bastidores da indústria do cinema. Scarlett Johansson, George Clooney e Josh Brolin (foto) dão um brilho hollywoodiano à película.
Foto: Universal Pictures
Olhar afro-americano
O novo filme do diretor americano Spike Lee é aguardado com ansiedade. Recentemente, ele esteve à frente do movimento de boicote ao Oscar, devido à nomeação somente de atrizes e atores brancos para concorrer ao prêmio. Sua nova obra, "Chi-Raq", aborda a cena do hip hop e do rap em Chicago.
Foto: Parrish Lewis
Irã, país do cinema
O Festival de Cinema de Berlim sempre foi marcado pelo interesse em produções de países para além da Europa e de Hollywood. Filmes iranianos são presença regular na Berlinale. Em 2016, participa da competição oficial "Ejhdeha Vared Mishavad!" ("A chegada de um dragão!"), do diretor Mani Haghighi. O filme lança um olhar sobre o Irã dos anos 1960.
Foto: Abbas Kosari
Presidência de Meryl Streep
Nos próximos dias, a renomada atriz hollywoodiana deverá ser presença constante nos tapetes vermelhos: Meryl Streep preside o júri da Berlinale em 2016. Ela e outros seis jurados vão decidir sobre os Ursos de Ouro e Prata. Streep sempre foi bem-vinda na Berlinale. Na foto, ela acena para a multidão em 2012.
Foto: picture-alliance/dpa/J. Carstensen
Panorama brasileiro
Além da competição oficial da Berlinale, a seção Panorama traz filmes independentes e cinema de autor. Neste ano, o Brasil está representado logo com três filmes na inovadora mostra: "Mãe só há uma" (foto), de Anna Muylaert, diretora do premiado "Que horas ela volta?"; "Antes o tempo não acabava", dos cineastas Sérgio Andrade e Fábio Baldo e o documentário "Curumim", de Marcos Prado.
Foto: Berlinale
Novo Cinema
O Brasil também tem filmes selecionados para a mostra Forum, dedicada a filmes de vanguarda e experimentais. Nesta seção, o país é representado por "Muito Romântico", de Melissa Dullius e Gustavo Jahn; "Ruína" (foto), de Gabraz Sanna, e ainda pela exposição "A Mina dos Vagalumes", de Raphäel Grisey.
Foto: Gabraz Sanna
Curtas-metragens
O cinema brasileiro também tem chances de ganhar prêmios na Berlinale Shorts, categoria de curtas-metragem do festival. O documentário "Das águas que passam", de Diego Zon, foi selecionado para a competição. O filme retrata o pescador Zé de Sabino. A produção foi gravada na foz do rio Doce em março de 2015, antes da tragédia ambiental que devastou a região.
Foto: Berlinale
Retrospectiva
A Berlinale também é famosa por suas retrospectivas cuidadosamente elaboradas da história do cinema. Neste ano, o tema é "Alemanha 1966 – perspectivas cinematográficas no leste e no oeste", ou seja, os cinemas das antigas Alemanha Ocidental e Oriental. Um dos filmes exibidos é "Der sanfte Lauf", com Bruno Ganz como protagonista (foto).
Foto: Deutsche Kinemathek/Haro Senft
Reprises com música
Outra boa tradição da Berlinale é a reprise anual de um clássico do cinema mudo. Esses filmes dos primeiros tempos da sétima arte são cuidadosamente restaurados, digitalizados e apresentados durante o Festival de Cinema de Berlim, acompanhados de uma grande orquestra numa atmosfera festiva. Neste ano, será mostrada a película do diretor Fritz Lang "A morte cansada" (1921).
Foto: Friedrich-Wilhelm-Murnau-Stiftung
Um americano em Berlim
O Festival oferece a produtores e distribuidores uma boa plataforma para a première de seus novos filmes. Portanto, fora das seções oficiais, também em 2016 podem ser vistos alguns destaques antes de suas apresentações nos cinemas, como o novo documentário de Michael Moore "Onde invadir agora?" (2015).
Foto: Dog Eat Dog Films
Diário de Anne Frank
O tão aguardado remake do "Diário de Anne Frank" vai celebrar a sua estreia mundial durante o Festival de Berlim, antes de chegar aos cinemas no início de março. O filme foi dirigido por Hans Steinbichler e conta com a participação dos atores Martina Gedeck e Ulrich Noethen. A jovem Lea van Acken impressiona no papel de Anne Frank.
Neste ano, somente uma produção meramente alemã concorre ao Urso de Ouro, o principal prêmio do Festival de Berlim. "24 Wochen" ("24 semanas"), filme de Anne Zohra Berrached, retrata a vida de uma jovem grávida que a criança tem síndrome de Down. Um filme sobre um golpe do destino e sobre como lidar com ele. No elenco, estão Julia Jentsch e Bjarne Mädel.
Foto: Friede Clausz
Berlinale: festival alemão
Apesar de só ter um representante nacional concorrendo ao Urso de Ouro, o 66° Festival de Cinema de Berlim aposta pesado no cinema doméstico. Serão exibidos 151 filmes da Alemanha ou com financiamento do país. Na seção Perspectiva do Cinema Alemão, pode ser visto, por exemplo, "Agonie", do diretor David Clay Diaz.