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Milhares ainda sofrem impactos das queimadas no Pantanal

3 de dezembro de 2020

Após fogo devastar áreas de floresta e de plantio, comunidades quilombolas, pantaneiras e indígenas da região dependem de doações para sobreviver. Fuligem e seca ameaçam córregos que são fonte de água para moradores.

Homem em barco que transporta cesta básica no Pantanal
Entidades vêm arrecadando e distribuindo cestas básicas para garantir a alimentação de moradores do PantanalFoto: Rodrigo Vargas/ICV

Entre o pouco que as queimadas em todo o Pantanal pouparam estão algumas sementes crioulas que Laura Ferreira da Silva, liderança do Quilombo Mata Cavalos, vai usar para um recomeço. Nesse território, onde vivem mais de 800 famílias, o fogo destruiu tudo o que elas plantam e colhem para a própria subsistência.

"Nós reunimos todas as pessoas para tentar combater o fogo, mas não demos conta. Só conseguimos salvar as casas", relembra Silva.

Medições do Laboratório de Aplicações de Satélites Ambientais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Lasa-UFRJ) calculam que 30% do bioma, a maior área alagável do mundo, tenham sido devastados na temporada de queimadas de 2020.

Em Mata Cavalos, no município de Nossa Senhora do Livramento, no Mato Grosso, plantios de banana, cana, mandioca, milho, abóbora foram completamente perdidos. A água dos córregos que cortam o quilombo e abastecia as comunidades está comprometida pelo excesso de fuligem ou seca.

Milhares de famílias afetadas

Em todo estado, estima-se que mais de 2 mil famílias quilombolas, pantaneiras e indígenas ainda sofram o impacto das queimadas. O levantamento é do Movimento SOS Filhas do Cerrado e do Pantanal, uma força-tarefa inédita formada para socorrer as comunidades tradicionais.

"Fizemos esse mapeamento com pessoas das próprias comunidades e lideranças. Ainda falta muito, porque muitas regiões são distantes, aos poucos estamos juntando os números", explica Paty Wolff, geógrafa e artista do Centro Cultura Casa das Pretas, em Cuiabá.

Muitos atingidos perderam o emprego, deixaram de vender nas feiras o que produziam – como farinha, conservas, outros produtos artesanais. Por enquanto, a alimentação é garantida por doações de cestas básicas arrecadadas pelo movimento, com apoio do Instituto Centro de Vida (ICV), que também leva água para os que precisam.

Questionado pela DW Brasil sobre a situação, o governo de Mato Grosso respondeu que "não tem registros de famílias tradicionais que perderam casas ou lavouras com incêndios florestais no ano de 2020".

Plantio adiado

Na Terra Indígena Tadarimana, o cacique Marcelo Boe Bororo assistiu florestas sendo engolidas pelo fogo. As chamas acabaram com as árvores frutíferas importantes para as comunidade, como as que dão cajuzinho-do-cerrado, guariroba e pequi.

"Agora em novembro era para estarmos colhendo pequi. Mas praticamente não sobrou nada", relata Bororo.

Estima-se que 30% do Pantanal tenham sido devastados na temporada de queimadas de 2020Foto: Getty Images/AFP/M. Pimentel

A palha usada para reforçar os telhados das casas antes do início das chuvas também queimou. O cacique tenta substituir o método tradicional pela lona, e conta com doações para manter a proteção das residências.

O preparo das roças de milho, mandioca, batata, abóbora, que começariam em outubro para sustentar as 190 famílias do território, está suspenso. "A gente não sabe agora quando vai plantar. Se der para começar logo, talvez a gente consiga colher alguma coisa no fim de fevereiro", detalha.

"A fome não espera"

Até comunidades tradicionais pantaneiras que vivem às margens do rio Cuiabá perderam o plantio para as queimadas.

"Junto com a pandemia teve fumaça, seca, e tudo ficou mais difícil. O que a gente tinha de produção foi perdido", conta Waldileno Xavier da Silva, da comunidade Piúva, em Barão de Melgaço.

Depois dos meses mais intensos de queimadas já vistos no Pantanal, a cheia do rio deve ocupar a área que os ribeirinhos usam para plantar. "Comunidade ribeirinha só vai começar o cultivo para subsistência no próximo ano", explica Xavier da Silva. 

Para muitas famílias que têm nas roças a principal fonte de alimento, esse impacto prolongado das queimadas traz insegurança.

"Muitos são trabalhadores rurais que geram renda com artesanato e com turismo rural, que está suspenso devido à pandemia. Só algumas pessoas conseguiram acessar a ajuda emergencial do governo federal", detalha Laura Ferreira da Silva, do Quilombo Mata Cavalos. "O problema é que a fome não espera."

Mulheres em ação

Na área de Pantanal do estado vizinho, Mato Grosso do Sul, o trabalho de outra organização não governamental, a Mulheres em Ação no Pantanal (Mupan), auxilia famílias tradicionais atingidas pelas queimadas.

"Numa primeira oportunidade que tivemos, atendemos 550 comunidades indígenas e quilombolas em estado crítico devido à perda do território para o fogo. Mas o número é muito maior: só indígenas são mais de 1.500 famílias", diz Áurea Garcia, diretora-geral da Mupan e coordenadora de políticas da Wetlands International.

Garcia ressalta que o fogo atingiu famílias que já sofriam com a pandemia e a escassez hídrica. Além da distribuição de alimentos, a Mupan atua para fortalecer brigadas de incêndios e inserir as comunidades na cadeia de restauração para garantir segurança hídrica e alimentar.

Quando viu a dimensão do estrago, Paty Wolff, do Centro Cultura Casa das Pretas, percebeu que as atividades culturais programadas tinham que se converter em ajuda emergencial humanitária.

"Recebíamos relatos sobre crianças indígenas desmaiando ao ver a chegada do fogo, imagens da seca, das roças queimada", conta. "Escolhemos o nome Movimento SOS Filhas do Cerrado e do Pantanal para homenagear esse protagonismo das mulheres, que responderam muito rápido ao chamado."

Sobrevivendo com doações

No Quilombo Mata Cavalos, até que as chuvas cheguem com mais intensidade, Silva e as demais famílias vão coletando sementes para recuperar o solo queimado. Essas sementes, as crioulas, são tradicionais, selecionadas e mantidas por agricultores por várias décadas.

"Já era pra gente estar semeando no solo. Estamos preocupados porque não tem chovido, e não podemos desperdiçar nossas sementes", conta Silva.

Se tudo der certo, em março eles colherão os primeiros frutos. Até lá, a expectativa é sobreviver com o que as entidades têm doado. "A gente não vê a hora de isso tudo passar", desabafa.

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