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"Militares querem o aparelhamento do Estado"

13 de maio de 2022

Para antropólogo que estuda Forças Armadas, ameaças golpistas são parte de estratégia para barganhar poder e verbas. Longe de estarem sendo arrastados para crise com Justiça Eleitoral, generais são protagonistas da ação.

Bolsonaro e Walter Souza Braga Netto
Braga Netto, Augusto Heleno e Jair Bolsonaro. Para antropólogo, presidente está alinhado com os propósitos dos militares - e não o contrárioFoto: picture-alliance/AP/B. Prado

O impasse criado entre comandantes das Forças Armadas e ministros do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) criou um ambiente de tensão. Representados na Comissão de Transparência Eleitoral, os militares sugeriram, sem provas, que as urnas eletrônicas teriam problemas de segurança.

A hipótese foi descartada pelo TSE, mas deixou dúvidas sobre a postura que as Forças Armadas irão adotar nas eleições. Em meio às falas golpistas do presidente Jair Bolsonaro, o questionamento à transparência das urnas pelos militares levanta novas dúvidas sobre a estabilidade democrática do Brasil.

Para o antropólogo Piero Leirner, que pesquisa o meio militar há mais de três décadas, trata-se de mais uma "esticada de corda" das Forças Armadas. O especialista ressalta que o objetivo final não é claro. Porém, Leirner acredita que a ameaça recorrente à democracia sirva para barganhar maior presença no Estado.

DW Brasil: Como você enxerga a gravidade da tensão criada entre as Forças Armadas e o TSE?

Piero Leirner: A situação, por si, é muito grave, mas a reboque de um conjunto maior de elementos, em que as Forças Armadas definitivamente se imbricaram no processo político. Isso não vem de agora. Muito mais grave é eles terem deixado o Bolsonaro fazer campanha eleitoral dentro de instalações militares – da Aman por exemplo – desde 2014. Já evidencia que eles estavam tomados há muito tempo por uma ação política que visava a alguma coisa: um processo de aparelhamento do Estado. Isso é cada vez mais claro.

Existe um padrão nisso. Todo ano, tem uma hora em que começa uma tensão com as Forças Armadas. Elas brotam, entram no cenário, a imprensa toda discute, depois amansa, até brotar de novo. Cria-se uma alergia dentro do sistema político, que aparentemente agora subiu um pouco mais. A gente precisava ver exatamente aonde se quer chegar, porque não está muito claro para ninguém.

Considerando o histórico dos militares na política brasileira, a participação das Forças Armadas no processo eleitoral é apropriada?

Do ponto de vista global, é completamente anômalo as Forças Armadas de um país estarem envolvidas em processos eleitorais. Mais anômalo ainda é que elas vejam nisso um tema de segurança nacional. O que estão entendendo por segurança nacional, quando atrelam essa questão à votação? Assim, transformam a gente em uma espécie de república de bananas, sempre passando uma imagem subliminar de que só os militares garantem a normalidade democrática do país.

Isso surge agora como discurso, em uma espécie de "repeteco" do que estava acontecendo em 2018, em outros termos. Em fevereiro daquele ano, começou a aparecer em tudo quanto é lugar a ideia de que o Brasil estava na beira da anomia.

Nesse momento, eles decretaram a intervenção militar no Rio de Janeiro. Primeiro, empurrando a ideia da intervenção como se fosse um plano que tivesse saído da cabeça do [então presidente] Michel Temer. Hoje, temos elementos para suspeitar que isso saiu da cabeça dos generais Etchegoyen e Braga Netto. Eles elaboraram todo o esquema da intervenção e depois passaram para a imprensa como se isso fosse um negócio de última hora, "nós não queríamos etc.".

Como a intervenção federal de 2018 se relaciona com o momento atual?

Primeiramente, transmitiu para a sociedade inteira a ideia de que só os militares estavam resolvendo um problema gravíssimo para o Brasil. Isso foi uma espécie de propaganda subliminar do candidato que eles já estavam apoiando. Além disso, eles travaram todas as Propostas de Emenda Constitucional no Congresso.

Sob intervenção federal, não é possível aprovar nenhuma PEC. Então, o Temer não tinha como entregar nada, tudo o que que ele estava prometendo no último ano, para capitalizar isso e lançar um candidato qualquer da coalizão deles. Os militares travaram isso e conseguiram emergir o candidato "antissistema”.

O Bolsonaro não foi protagonista nesse processo, tem uma rede de construções. O que ele faz é uma ação por procuração, que veste muito bem no papel teatral que ele construiu, mas que sobretudo visa a obliterar, abafar um pouco a ação dos personagens que estão realmente construindo isso. E são os personagens que não estão só interferindo no processo eleitoral, mas em tudo. No momento em que o general Villas-Bôas faz o tuíte antes do julgamento do Lula, eles estavam no STF, no gabinete do Dias Toffoli.

Como você observa a relação dos militares com o STF?

Tudo tem que ser mantido dentro da ideia de que as eleições nesse país correm livres, sem interferências e, quando aparece uma interferência, as instituições correm para tentar fazer o ajuste dentro dos parâmetros burocráticos. Este é um discurso que já existiu em 2018, por exemplo, repetido ad nauseam: a ideia de que as instituições estavam funcionando normalmente, quando não estavam.

Se você olha a própria postura do STF hoje, julgando a parcialidade da Lava Jato, vai ver que aquele processo foi viciado. A eleição de 2018 está fraudada desde o começo. O mínimo que se esperava é ver a anulação de todo aquele processo, só que isso sequer é questionado. Toda essa coisa está cheia de códigos cifrados e gerando muito ruído. O aumento de tom deles em relação a esses questionamentos vem a reboque da mensagem que eles precisam afirmar, de que o Bolsonaro é quem está arrastando as Forças Armadas para esse processo.

Isso causa um apagamento da ideia de que são eles os protagonistas de toda essa ação. Fica parecendo que o Bolsonaro é o grande articulador e que está desestabilizando todas as instituições do país. De fato, parece que está mesmo, mas precisamos ver o quanto disso é uma aparência, e em que medida há um jogo tácito entre as próprias instituições.

Eu me recuso a crer que o STF, que participou de todos esses acordos em 2018, entre em uma situação agora se fingindo de vítima, como se os ministros não soubessem do que se trata e como se não tivesse um acordo de bastidor com as mesmas Forças Armadas que provocaram várias situações tácitas, de 2018 até agora.

Todo mundo sabia claramente da inconveniência do convite do Barroso aos militares. Era uma coisa tão óbvia, mas ninguém falou nada na hora, porque ele estava endossado dessa posição, construindo o discurso do consenso entre instituições. Mas ele sabia muito bem que estava assinando uma coisa que ia esquentar o clima em uma determinada hora, porque este é o interesse também, para depois apresentar o STF como a instituição que vai salvar a pátria dessa anomalia.

Mas qual seriam o interesse ou as amarras do STF com as Forças Armadas nesse jogo?

Nos últimos anos, todos os atores corporativos estatais produziram uma espécie de insurgência, na qual as corporações de segurança e de justiça pretendem ter uma centralidade na vida política, da qual você nunca mais vai se desfazer. Esta é a minha hipótese.

Portanto, instâncias do Judiciário e das Forças Armadas estão aparelhando o Estado e produzindo amarras internas, de modo que, qualquer que seja o resultado eleitoral daqui para frente, a gente vai ter um mecanismo de controle desses agentes estatais muito grande.

Seja com setores de informações, que estão na mão dos militares, seja nos setores de auditoria, compliance, na mão dessas burocracias que vêm de uma "audit culture”. Temos a CGU, AGU, enfim, as controladorias do Judiciário o tempo inteiro se enxertando nas decisões políticas dos outros poderes. Eu acho que este foi o acordo de longa duração.

O governo Bolsonaro foi feito para criar uma sensação de instabilidade geral no processo democrático, desde o primeiro momento. Justamente para provocar o consenso de que as instituições precisam retomar esse acordo sobre o seu próprio protagonismo. Ninguém mais, hoje, questiona a Justiça. Veja o nível de consenso que se fabricou. O único dissenso que se tem vem daqueles a que chamamos bolsonaristas. Cria-se uma guerra entre esses dois lados e não tem uma terceira interpretação sobre isso, alguém que chegue e diga que tem alguma coisa muito errada nesse negócio.

Braga Netto, que esteve à frente da intervenção federal no Rio de Janeiro.Foto: picture alliance/AP/E. Peres

O general Braga Netto agora é cotado para vice da chapa à reeleição. Qual é o seu papel na articulação do bolsonarismo?

Ele é o dono da chave do cofre do setor de informações. Na despedida do Villas Bôas, o general disse, em agradecimento "por 2018": "refiro-me  ao próprio presidente Bolsonaro, que fez com que se liberassem novas energias, um forte entusiasmo e um sentimento patriótico há muito tempo adormecido. Ao ministro Sergio Moro, protagonista da cruzada contra a corrupção ora em curso e ao general Braga Netto, pela forma exitosa com que conduziu a Intervenção Federal no Rio de Janeiro. Todos demonstraram que nenhum problema no Brasil é insolúvel".

Em uma entrevista, o Braga Netto diz o seguinte: a gente vai montar, no Rio de Janeiro, uma espécie de mini-GSI, um mini centro de operações que vai ser um laboratório para o Brasil. Olha como esses caras já estavam pensando o que ia ser o projeto do setor de informações militares dali para frente.

Ali, ele produziu a máquina do grampo, do dossiê, então ele tem guardadas todas as informações do que aconteceu lá no Rio em 2018, que não foi pouco: o assassinato da Marielle, a campanha do Bolsonaro... Como eu disse, o Braga Netto é o sujeito que tem a chave do cofre, é o cara que tem a capacidade de implodir tudo. Isso não é pouco.

Daí o convite para ele estar como vice na chapa que concorre à reeleição?

Se é que esse convite vai vingar, isso a gente precisa ver. Os militares não têm exatamente na cabeça a ideia de "eu vou apostar neste elemento aqui, Bolsonaro é o nosso candidato". Esta é uma novela cujo final vai sendo escrito conforme as coisas vão acontecendo, eles não têm o dom da onisciência e da manipulação da realidade.

Mas eles têm muita coisa na mão, eles têm coesão, informações e uma capacidade muito importante de produzir contrainformações que vão sair na imprensa de modo a atingir objetivos que eles queiram.

Todo esse processo que está sendo feito aqui é uma esticada de corda. A gente não tem com clareza nem quais são os objetivos, nem quem são os atores, mas a ideia é levá-los para uma mesa de negociação. Eles estão botando na mesa a ameaça justamente para ter uma garantia do que vai acontecer logo depois.

Se tem alguma hipótese central entre as que estou elaborando, é esta: não de que eles vão melar a eleição, é de que eles estão garantindo que vão ter uma posição na qual não vão ser traídos de 2023 para frente. A ideia de melar o processo não tem muito sentido, o custo disso para os próprios militares é muito alto, sendo que eles já têm posições muito garantidas.

O intuito sempre tem, como pano de fundo, drenagem de verbas para os militares. Desde o começo do governo Bolsonaro, de que se tratou? Houve perdas em todos os ministérios, menos no da Defesa, que invade a seara alheia. Como processo geral, vemos o seguinte: todo o Estado de bem-estar seca, e essas corporações ficam no centro do Estado. Esta é a ideia.

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