"Miss Americana": a performance infinita de Taylor Swift
20 de fevereiro de 2020Em seu manifesto de 1966, o artista e teórico Allan Kaprow, pioneiro da arte da performance, assume que "a arte e a vida não estão simplesmente fundidas: a identidade de cada uma é incerta". A fronteira, portanto, entre o que consideramos uma obra de arte e o que está fora dela – a vida, o resto, o que sobra – é cada vez mais esfumaçada. Pois não apenas a arte se tornou vida, mas "a vida se recusa a ser ela mesma".
Penso demais em Kaprow (e na "cultura viva" do teatro de Artaud, e no "torna-te quem tu és" nietzcheano) ao assistir pela segunda vez Miss Americana (Netflix, 2020), dirigido por Lana Wilson. Trata-se de um documentário sobre Taylor Swift, que está repleto de imagens 'íntimas' da performer em bastidores – ainda que nenhuma delas guarde qualquer intimidade sob o brilho aparentemente inesgotável da sua resplandecência. Pois Taylor Swift não é uma pessoa por trás de um conjunto de canções inteiramente autobiográficas: ela é a própria obra.
Serei cobrado por isso. Mas acredito que a existência como arte e seus transbordamentos autoficcionais, um dispositivo largamente utilizado pela body art no contexto da arte performática dos anos 1970 e por artistas contemporâneos como Sophie Calle, Enrique Villa-Matas e Mario Bellatin, tenha encontrado na cantora americana a sua máxima expressão.
A teórica Lucia Santaella define tais performances como o espaço onde "o ser físico é, ao mesmo tempo, sujeito e meio da expressão estética". "Os artistas eles mesmos são objetos de arte", diz.
E ninguém nunca conseguiu fazer nada parecido – e para tantas pessoas ao mesmo tempo, em escala industrial, no coração do capitalismo imperial – com o que fez Swift. Sob holofotes desde a infância, ela ultrapassou gêneros musicais (explodiu a bolha da country music de Nashville, onde surgiu) e atravessou um período de mudanças profundas na indústria fonográfica, do disco ao streaming, comprando brigas com empresários misóginos, gravadoras e players como Spotify e Apple. Até hoje, ganhou todas.
Em canções grudentas e narrativas, com arcos dramáticos e refrões perfeitos, compostas por ela antes de fazer 20 anos e que hoje soam como clássicos, Swift transformou os altos e baixos da bolsa de capital social da sua adolescência numa experiência coletiva, compartilhada com centenas de milhões de pessoas. Como a New Yorker publicou ainda em 2011, ela transformou sua angústia teen num império.
Sua principal diferença às principais rivais de geração: ela compõe as próprias músicas desde os 12 anos de idade, sempre do jeito que quer. Em chave autoficcional, transformando os diários e as cartas de amor que abrem Miss Americana em hinos de estádio. Cresceu aos olhos do público e criou uma relação de espelhamento permanente com a mídia – suas dezenas de casos expostos em tabloides se transformaram em canções que estamparam mais páginas de tabloides, assim como polêmicas, brigas, crises de reputação e, mais recentemente, seu posicionamento político.
A figura midiática de Swift é um paratexto de seus discos, e sua vida, parte integral e indissociável de sua obra – no fundo é essa mulher em estado de performance, e apenas ela, o que faz dela mesma tal fenômeno pós-humano e espectral.
A música: uma reluzente fortaleza de cacos de vidro – acumulados ao longo de muito tempo entre ecos de música folk – que protege e expõe, mostra e guarda, em simultâneo. E a graça do diabo nessa melodia! Um brilho ancestral e um charme infantil, como a ninfa Jodie Foster no Taxi Driver cantando como a Stevie Nicks – e que vira uma Medeia ensandecida num piscar d'olhos.
(Para quem não consegue ouvir as melodias e letras por trás dos arranjos estridentes de música pop americana, o que posso compreender, sugiro ouvir a regravação integral do disco 1989 de Swift pelo hoje cancelado Ryan Adams – não por acaso, trata-se do melhor disco dele. Fiz também uma playlist introdutóriaaqui.
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O filósofo Slavoj Žižek cunha, em seu curioso ensaio sobre David Lynch, o termo "neo-femme fatale" para tratar das mulheres dos filmes do cineasta americano. Em contraste com a femme fatale clássica, a neo-femme fatale dos filmes de Lynch é totalmente transparente – segundo Žižek, assume sem reservas o papel de "calculating bitch" ("a personificação perfeita do que Baudrillard chamou de "a transparência do mal") ao mesmo tempo em que mantém seu enigma. Às vezes, como no paradoxo hegeliano, a autoexposição total faz o sujeito ainda mais misterioso. A estratégia aqui é seduzir e enganar pela verdade, óbvio.
Talvez isso seja exatamente o que Swift tenta incorporar em sua vida-obra-songwriting. Porque haverá muitos de nós, namorados ou fãs, homens ou mulheres, que não conseguiremos aceitá-la: deve haver ali no meio dessa bagunça tão espetacular algum coração de ouro a ser salvo, um ser humano com algum sentido de empatia, e essa manipulação gélida deve ser, com certeza será, sim!, algum tipo de mecanismo de defesa. E todos esses traumas... São a chance para o herói do tango. Ou para a jovem melancólica que ocupa as primeiras fileiras do estádio acenando uma pulseirinha de LED amarrada ao pulso.
A formulação implícita desse redemoinho interno, escreve Žižek ainda sobre os filmes de Lynch, seria algo como "por que você age como uma pessoa fria e manipuladora quando na verdade você é apenas uma pessoa fria e manipuladora?", como na piada do Freud sobre Varsóvia e Lemberg. Eu acrescentaria "narcisista". E a verdade é que pessoas assim sempre terão alguém sempre correndo para salvá-las delas mesmas.
Swift fez isso com uma considerável parcela da humanidade. Suas canções de amor, reféns da experiência, vão parecer quase sempre retratos de um quase amor – imagens num espelho opaco que leva a outro paradoxo: como termina algo que nunca começou? Que nunca começou "de verdade"? (Ainda que seja sempre muito bem lembrado?) Num mundo onde todos mentem o tempo inteiro, a verdade soa como mentira – e na distância entre as duas pode estar uma vertiginosa montanha russa, boa como boa cocaína. Ou oxitocina. Mas, até que não haja mais, há sempre o dia seguinte.
E o próximo hit de Taylor Swift, claro. Ela fez apenas 30 anos em dezembro do ano passado.
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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca
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