Mozarteum Brasileiro, contínuo, confiável, transparente
24 de abril de 2018A grande dama da música erudita no Brasil é uma alemã: de vestido leve, Sabine Lovatelli chega para conversar em Trancoso, Bahia. É uma hora da tarde, o sol tropical arde inclemente. Mas a senhora de 70 anos não se deixa abalar, ela está em plena missão: tornar mais conhecido no Brasil o gênero musical que tanto ama.
É por isso que se encontra agora no sul da Bahia. Em 2012 ela fundou ali o Festival Música em Trancoso, dedicado ao repertório clássico e ao jazz. Trata-se de seu projeto mais novo, e uma extensão de sua obra de vida, o Mozarteum Brasileiro de São Paulo, que há décadas enriquece o mundo musical do país.
Por sua atuação, Lovatelli já recebeu a Ordem do Rio Branco, maior distinção que o país concede a um estrangeiro. No entanto, não é conhecida do grande público. Talvez devido ao fato de a música erudita não ter no Brasil o mesmo significado que na Europa.
Isso se nota de forma marcante em tempos de crise, quando as orquestras são as primeiras a ter suas verbas cortadas. Segundo a empreendedora, "o Brasil é um país incrivelmente musical, mas a música clássica não tem tradição por aqui." Agora pode ser justamente ela quem está criando essa tradição.
Três coisas que faltam às instituições brasileiras
Sabine Lovatelli nasceu em 1948 em Jena, Turíngia, no leste alemão, e cresceu em Hannover, o que se nota até hoje em seu jeito relaxado de alemã do norte. Após concluir os estudos, conheceu o empresário brasileiro Carlo Lovatelli, e em 1971 o casal foi viver em São Paulo.
Lá ela passou a sentir enorme desejo por música clássica, que na época "era praticamente impossível escutar no Brasil". Dez anos mais tarde, tomou a iniciativa de fundar a associação Mozarteum Brasileiro. "Eu não tinha a menor ideia de como se faz uma coisa assim. Simplesmente fiz."
Desde o início, a missão da organização de interesse público era promover concertos de música clássica, levar músicos internacionais até a metrópole paulista e estabelecer intercâmbio cultural. Entre os convidados mais notáveis, contam a Filarmônica de Berlim; ou Anna Netrebko, que em agosto se cantará pela primeira vez no país.
A soprano russa será acompanhada pela Orquestra Acadêmica do Mozarteum Brasileiro, criada em 2017, para cujas vagas 237 músicos concorreram. "Quero contribuir com algo para o país que amo", explica Lovatelli. Os números demonstram seu sucesso de forma eloquente: até hoje os diversos eventos da associação cultural já atraíram um total de 650 mil espectadores.
Muitos em São Paulo ainda se lembram dos Concertos ao Meio-Dia, organizados semanalmente pelo Mozarteum, entre 1981 e 1995, no museu de arte MASP. As apresentações com entrada franca se transformaram numa espécie de instituição.
"Aparentemente eu não estava sozinha com o meu desejo pela música clássica", afirma Lovatelli. Indagada como explica o sucesso do Mozarteum, ela enumera: "Continuidade, confiabilidade, transparência!" Ou seja, tudo o que falta às instituições do Brasil.
Transformando vidas
Financiada através de doações, em 2000 a associação cultural deu um salto decisivo em sua evolução, passando a incentivar talentos nacionais. "Queríamos elevar o nível musical no Brasil", diz Lovatelli. Assim, os artistas convidados internacionais se comprometem a ministrar master classes aos jovens músicos, atentando para os mais talentosos.
Os que se mostram especialmente talentosos recebem uma bolsa de estudos para a Alemanha, por exemplo para o Festival de Schleswig Holstein ou a Academia de Verão do Collegium Musicum do Palácio Pommersfelden, na Baviera. O Mozarteum Brasileiro já promoveu 450 master classes, e dos 2.150 participantes, 150 obtiveram bolsas.
Uma que lucrou enormemente com o programa foi a meio-soprano Josy Santos, que hoje atua como solista de ópera na Alemanha. Nascida em Araras, Bahia, a cantora de 27 anos teve sua primeira experiência internacional em 2012, no Festival de Música de Schleswig Holstein, Graças a seu talento, no ano seguinte conquistou outra bolsa, também pelo Mozarteum, para fazer mestrado em Frankfurt.
"Eu não teria desistido, e de algum outro modo conseguiria alcançar o objetivo de vir para a Alemanha e cursar o meu mestrado", assegura Josy. Mas o Mozarteum acelerou sua carreira. Em 2017 foi contratada pela Ópera de Stuttgart e atualmente é solista na Ópera de Hanover.
"Realizei o meu sonho de me tornar uma cantora profissional graças ao Mozarteum Brasileiro, que um dia acreditou no meu talento. Para mim, é um dos projetos socioeducativos mais importantes do Brasil."
Quem também pretende ir longe é o contrabaixista Júlio Nogueira, de 30 anos. Depois de ter participado da Academia de Verão no Palácio Pommersfelden, ele é o primeiro contrabaixo da Orquestra Acadêmica do Mozarteum Brasileiro. "Tive a possibilidade de me desenvolver, como músico e como pessoa", afirma.
Pensar global, agir local
A influência positiva do Mozarteum também se faz notar em Trancoso, onde músicos em início de carreira ganham a importante oportunidade de se apresentar em público.
A orquestra e o coro do festival se compõem de 70 músicos e 60 cantores selecionados de todo o Brasil. Sua euforia ao executar em conjunto dá uma ideia do potencial da música erudita no país. "É clássico com rebolado", define o regente alemão Wolfgang Roese, que já participou do evento por três vezes.
Sabine Lovatelli insiste que o Festival de Trancoso não seja um programa para a elite, mas sim se integre na região, influenciando-a. Os ingressos custam apenas 20 reais para os moradores; os músicos vão às escolas para mostrar como soa um clarinete ou uma tuba.
Uma das crianças locais que descobriram a música clássica dessa forma é Gabriel Magalhães Santos, de 14 anos. O filho de um mecânico e de uma cozinheira toca violoncelo, e é o músico mais jovem orquestra do festival.
Saber que não há muitos negros na cena musical erudita é um incentivo extra para ele: "Muita gente acha que a música clássica é só coisa de rico. Mas ela é uma linguagem universal. É preciso perder o medo perante ela."
_______________
A Deutsche Welle é a emissora internacional da Alemanha e produz jornalismo independente em 30 idiomas. Siga-nos no Facebook | Twitter | YouTube | WhatsApp | App | Instagram