MPF denuncia juiz e procurador por crimes durante a ditadura
31 de outubro de 2018
É a primeira denúncia do Ministério Público contra membros do próprio órgão e do Judiciário suspeitos de colaborar com o regime. Ex-delegado também é alvo da ação, que envolve a morte de um militante torturado em 1970.
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O Ministério Público Federal (MPF) denunciou um juiz e um procurador militares, ambos aposentados, além de um ex-delegado, por envolvimento ou acobertamento do assassinato do militante político Olavo Hanssen em maio de 1970, durante a ditadura militar (1964-1985).
Esta é a primeira denúncia do MPF contra membros do Ministério Público e do Judiciário por suspeita de legitimar crimes durante o regime autoritário.
O procurador da Justiça Militar Durval Ayrton Moura de Araújo, hoje com 99 anos, e o juiz da Auditoria Militar Nelson da Silva Machado Guimarães são acusados de prevaricação, enquanto ao ex-delegado Josecir Cuoco foi imputado o crime de homicídio duplamente qualificado.
Segundo a denúncia, Hanssen foi detido por distribuir panfletos num evento intersindical em comemoração ao Dia do Trabalhador, em 1º de maio de 1970, e levado à sede do Departamento de Ordem Política e Social (Dops), no centro de São Paulo.
Ali, o militante foi submetido a sessões de tortura durante uma semana sob o comando do então delegado Cuoco, com participação do chefe da equipe de interrogatórios preliminares do Dops, Ernesto Milton Dias, e do investigador Sálvio Fernandes do Monte, ambos já mortos.
Hanssen sofreu afogamentos e espancamentos no pau-de-arara, instrumento em que a vítima fica pendurado de cabeça para baixo durante a tortura. Passou ainda por diversas sessões de choques elétricos na cadeira do dragão, assento revestido de metal onde os prisioneiros eram amarrados para ser eletrocutados, e com a chamada pianola Boilesen, aparelho trazido dos Estados Unidos pelo empresário Henning Albert Boilesen que soltava descargas elétricas crescentes.
Os torturadores buscavam informações sobre as atividades do movimento operário trotskista do qual Hanssen participava, bem como a localização da gráfica que imprimia os panfletos e jornais do grupo, considerados subversivos pelas autoridades.
O militante – que antes disso já havia sido preso outras quatro vezes também por distribuir panfletos – morreu na manhã de 9 de maio, por insuficiência renal aguda, no Hospital do Exército da 2ª Região Militar, para onde foi encaminhado em razão dos graves ferimentos.
As autoridades policiais forjaram primeiro uma versão de que Hanssen teria morrido por causas naturais e que seu corpo tinha sido encontrado em um terreno baldio. Depois, em meio à pressão de parlamentares e da opinião pública, afirmou-se que a vítima tinha se suicidado ingerindo um pesticida agrícola e morrido no hospital militar.
O caso levou à instauração de um inquérito na época, mas que acabou sendo arquivado pouco tempo depois. O procurador Araújo e o juiz Guimarães, denunciados agora, teriam atuado diretamente para o desfecho das investigações.
Araújo é acusado de ter ignorado o laudo necroscópico que indicava sinais de tortura em Hanssen ao referendar a versão de que o ativista se matou com veneno, apresentada em um relatório policial pouco mais de três meses após o crime.
Uma sentença proferida em novembro de 1970 por Guimarães também descartou a possibilidade de Hanssen ter sido assassinado sob tortura pelos agentes da ditadura e arquivou o processo. O MPF lembra que, em depoimento na Comissão Nacional da Verdade em 2014, o próprio juiz admitiu saber que o ativista tinha sido morto sob tortura.
Além de solicitar à Justiça Federal a condenação de Guimarães e Araújo por prevaricação – crime que ocorre quando o funcionário público deixa de exercer suas funções por motivações pessoais –, os procuradores pedem que eles percam suas aposentadorias e quaisquer condecorações obtidas durante a carreira militar.
Ambos receberam, por exemplo, a chamada Medalha do Pacificador, condecoração que homenageia militares e civis por serviços prestados ao Exército. Durante a ditadura militar, ela foi concedida a muitos agentes do Estado envolvidos na repressão política.
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.