Ela é ousada – e também polarizadora. Cristina Fernández de Kirchner, que foi alçada do cargo de primeira-dama ao de presidente, sai de cena após 12 anos. Mas a era kirchnerista não deve acabar por aqui.
Anúncio
"Eu espero que em 2019 vocês não precisem de mim", disse Cristina Kirchner à imprensa argentina, em uma mensagem cifrada. Dörte Wollarad, chefe do escritório da Fundação Friedrich Ebert (FES) em Buenos Aires, traduz: "Ou seja, vocês vão precisar de mim!"
Uma coisa é certa: deixar o palácio do governo é difícil por essa mulher de 62 anos. Já em 2013 ela tentou mudar a Constituição para estender seu mandato. Mas a proposta de uma emenda que permitiria um terceiro mandato não avançou quando ela perdeu a maioria necessária de dois terços no Parlamento.
A peronista, que começou sua carreira política em 1989 como deputada na província argentina de Santa Cruz, precisa ceder o lugar após oito anos como presidente. Ela deixa um cenário espinhoso para o seu potencial sucessor, Daniel Scioli, que recebeu seu apoio na campanha eleitoral.
Tango no Titanic
Inflação, dívida pública, exportações em queda, falta de divisas, protecionismo e recessão ameaçam afundar a Argentina em caos econômico. Mas não só isso: os preços dos principais produtos de exportação – soja e trigo – estão em queda no mercado mundial. Registram uma baixa de 20% a 35% em relação a 2014.
Com essa crise aguda, o novo presidente terá que cortar programas sociais e subsídios. "Não dá para continuar assim", afirma Wollrad. "Cristina Kirchner vai observar as reformas desagradáveis à distância para, em seguida, voltar em 2019 como um fênix das cinzas", prevê.
O analista político argentino Marcos Novaro não descarta que Cristina continue popular em 2019. "Muitos de seus compatriotas a consideram uma benfeitora social", afirma Novaro, diretor do Centro de Pesquisa Política (Cipol) na Universidade de Buenos Aires. No entanto, ele considera as chances de um retorno à política escassas. "A maioria da população tem uma visão crítica", diz.
Já em 2013, apareceram sinais disso. Mais de um milhão de pessoas protestaram na época em Buenos Aires contra a corrupção governamental e o que consideram um estilo autoritário de Cristina. Mas na periferia das metrópoles argentinas, a luta pela sobrevivência diária é mais importante do que a luta contra a corrupção.
A presidente é celebrada como uma benfeitora por lá por causa de seus programas sociais. Os gastos sociais na Argentina saltaram de 18,5% em 1990 para 28% do Produto Interno Bruto em 2010. Isso gerou respeito até mesmo de adversários ferrenhos da presidente.
"Eu sou muito crítico, mas esse governo kirchnerista tem uma característica muito boa, e muito difícil de controlar, que é a audácia. Quanto mais encurralados estão, mais dobram a aposta", disse o jornalista argentino Jorge Lanata ao jornal espanhol El País.
Populista nata
Esse pôquer político apresentou resultados. Cristina marcou pontos com seus eleitores por causa da sua teimosia em atender às exigências de fundos de hedge americanos. A economia, no entanto, sofre as conseqüências dessa ousadia. Em 2014, o país entrou em calote técnico e sofreu um bloqueio nos mercados financeiros internacionais que persiste até hoje.
"Ela é um populista nata. Ela sabe atender às vozes", opina Dörte Wollrad. Foi assim após a disputa com os fundos de hedge, quando ela teve a iniciativa de ir à Assembleia Geral da ONU contra os "fundos abutres". O caso aumentou tremendamente a popularidade da presidente – "mesmo que isso não ajude em nada a Argentina", completa a diretora da FES.
A relação com o papa é outro exemplo da habilidade estratégica de Cristina. De um dia para o outro, Jorge Mario Bergoglio foi transformado de um hostil arcebispo de Buenos Aires a um santo argentino em Roma. A indignação provocada com as críticas de Bergoglio à introdução do casamento gay parece esquecida. Após a escolha do novo papa, Cristina se tornou uma profunda admiradora do pontífice.
Mesmo que Cristina Kirchner não concorra novamente em 2019, os argentinos provavelmente não vão esquecer dessa presidente polarizadora tão rapidamente. "Ela dividiu a sociedade entre seguidores e adversários", diz o professor Marcos Novaro. "O próximo governo terá menos poder e isso é uma coisa boa."
O fim da era Cristina Kirchner
Após 12 anos de kirchnerismo, a Argentina elege um novo presidente. Relembre a trajetória de Cristina Fernández de Kirchner, que deixa tanto problemas econômicos quanto avanços sociais como herança de seu governo.
Foto: Getty Images/AFP/F. Monteforte
Cristina Fernández, "relato" e dramaturgia
Em oito anos de governo, Cristina se destacou por seu estilo e a tendência ao drama – foi acusada, inclusive, de criar um "relato" próprio da realidade da Argentina. Neste ano, ela deixa a Casa Rosada, e a era Kirchner chega ao fim. Com uma maioria kirchnerista no Congresso, porém, Cristina promete seguir influenciando a vida política do país.
Foto: Getty Images/A.Pagni
A sucessora de Néstor Kirchner
Cristina começou sua carreira política em 1989, como deputada pela província de Santa Cruz. Conheceu Néstor Kirchner durante a militância peronista, em 1974, e os dois se casaram no ano seguinte. Ele foi presidente da Argentina de 2003 a 2007, ano em que a mulher ganhou as eleições para sucedê-lo. A morte de Néstor, em 27 de outubro de 2010, foi um duro golpe para Cristina e seus dois filhos.
Foto: D. Garcia/AFP/Getty Images
Laços estreitos com o Mercosul
Na foto, Cristina e o presidente da Bolívia, Evo Morales, vestem trajes típicos bolivianos durante uma cerimônia na Casa Rosada, sede da presidência em Buenos Aires. Ela sempre defendeu laços estreitos com os países vizinhos. Em 2013, anunciou que aceleraria "a reconstituição do Mercosul" e, no mesmo ano, disse que a espionagem dos EUA sobre o Brasil afetava a "dignidade" de toda a América do Sul.
Foto: Reuters/M. Brindicci
A reeleição
Em 2011, Cristina foi reeleita presidente da Argentina com 54,11% dos votos. Na foto, ela posa entre os dois filhos, Máximo e Florencia, em frente ao Congresso Nacional, em Buenos Aires, após tomar posse. Atualmente candidato a deputado, Máximo está sendo investigado sob suspeita de manter contas secretas nos Estados Unidos e Irã. Ele nega as acusações.
Foto: picture-alliance/dpa/C. de Luca
Um vice em apuros
Amado Boudou, então ministro da Economia, foi nomeado vice-presidente no segundo mandato de Cristina. A escolha foi mais tarde criticada, principalmente pelas polêmicas acusações que emergiram contra ele. O escândalo político conhecido como Ciccone, por exemplo, ligou Boudou à compra de uma falida empresa monopolista a fim de operar com o Estado na impressão de notas e documentos fiscais.
Foto: picture-alliance/dpa/S.Goya
A luta contra o "Clarín"
O debate sobre a concentração da mídia segue aberto na Argentina. Cristina Kirchner travou uma longa batalha contra o grupo argentino "Clarín", acusando-o de monopólio midiático. Ao mesmo tempo, foi criticada por estimular a criação de um grupo de "veículos viciados no governo", segundo apontou, em entrevista à DW, a jornalista Laura di Marco, autora de uma biografia não autorizada da presidente.
Foto: picture alliance/dpa Fotografia
Direitos humanos
Cristina deu continuidade às políticas de direitos humanos de Néstor: aprovou leis acerca do casamento gay e da transexualidade e apoiou a busca por crianças desaparecidas durante a ditadura militar argentina (1976-1983). Na foto, ela conversa com Estela de Carlotto, presidente da organização Abuelas de Plaza de Mayo. Seu neto, Guido, recuperou a verdadeira identidade ao ser encontrado em 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
Discurso em rede nacional
A presidente está acostumada a falar em rede nacional – algo aplaudido por seus seguidores e criticado pela oposição. Ao se dirigir ao público, Cristina mantém um estilo sempre muito pessoal e, para muitos, carismático. "O kirchnerismo trouxe independência à Argentina", disse ela em um de seus discursos, em julho de 2015.
Foto: picture-alliance/dpa/L. La Valle
Falta de transparência
Em junho de 2015, Cristina enviou ao Congresso um projeto de lei para que alguns programas sociais sejam ajustados de tempos em tempos. Entre eles está o Benefício Universal por Filho (AUH, na sigla em espanhol), equivalente ao Bolsa Família. Esses avanços na área social, porém, acabam sendo ofuscados pela falta de transparência com os índices de pobreza, a alta inflação e o déficit fiscal.
Foto: Reuters/E. Marcarian
Argentina versus "fundos abutres"
A batalha contra os chamados "fundos abutres" segue no país. Em setembro de 2015, a ONU aprovou uma resolução, recomendada pela Argentina, que propõe a criação de um marco legal para a reestruturação da dívida soberana. O ministro da Economia, Axel Kicillof (dir.), comemorou a decisão como "um passo fundamental".
Foto: Leo La Valle/AFP/Getty Images
Cristina, papa e "Estado Islâmico"
Em setembro de 2014, o papa Francisco recebeu Cristina, sua compatriota, no Vaticano. Após um encontro privado com o pontífice, a presidente revelou ter sofrido ameaças do grupo extremista "Estado Islâmico" (EI) por conta de sua posição diplomática diante dos conflitos no Oriente Médio – ela é favorável à existência de dois Estados: o da Palestina e o de Israel.
Foto: picture-alliance/dpa
Incentivo à cultura
Em nível nacional, o governo Cristina Kirchner deu um impulso importante à realização de eventos culturais e artísticos, mas com um estilo claramente personalista. Na foto, a presidente argentina participa da inauguração do Centro Cultural Kirchner, em Buenos Aires, em maio de 2015. Na ocasião, ela classificou o local como o "mais importante centro cultural da América Latina".
Foto: Reuters/Argentine Presidency
Duas cirurgias
Em seu segundo mandato como presidente da Argentina, Cristina foi submetida a dois procedimentos cirúrgicos sérios: um para remover um tumor na tireoide, em janeiro de 2012, e outro para drenar um hematoma cerebral, em outubro de 2013. Ela teve boa recuperação em ambos os casos, mas precisou ficar afastada do trabalho por um curto período de tempo.
Foto: picture-alliance/dpa
Negócios com a Rússia
Cristina se reuniu com o presidente russo, Vladimir Putin, em abril de 2015, e do encontro pode ter saído muito mais que os acordos energéticos e econômicos firmados. Em ano eleitoral na Argentina, o gesto chegou a ser interpretado como um esforço da presidente para afastar o país de seu tradicional alinhamento com os Estados Unidos e a União Europeia e estimular uma aproximação com os Brics.
Foto: Reuters/A. Nemenov
Caso Nisman choca o país
A morte do promotor Alberto Nisman abalou a sociedade argentina e continua sem esclarecimento perante a Justiça. Ele foi encontrado morto em casa em 18 de janeiro de 2015, dias antes de divulgar um relatório polêmico contra a presidente. Nisman acusaria Cristina de ajudar a acobertar o pior ataque terrorista da história do país: o atentado a bomba à Associação Mutual Israelita Argentina, em 1994.
Foto: picture-alliance/AP Photo/Pisarenko
Sucessor da era Kirchner?
Daniel Scioli, da coligação Frente para a Vitória, é o candidato à presidência argentina capaz de dar continuidade ao programa político do kirchnerismo. Segundo especialistas, o governo deixa como herança para o próximo presidente graves problemas econômicos e estruturais, mas também avanços sociais e um aumento no nível de consumo da população.
Foto: Reuters/A.Marcarian
Adeus à figura que polariza
Com seu estilo autoritário e maternal, Cristina Kirchner polarizou a sociedade argentina. Esteve cercada de acusações de corrupção, e a insegurança jurídica cresceu durante seu governo. Por outro lado, deu impulso à cultura e aos direitos civis. Ao dizer adeus, Cristina deixa um legado complexo à próxima administração, e é improvável que se afaste totalmente da agenda política do país.