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"Não podemos conviver com obras de arte roubadas", diz escritor judeu

Sarah Hofmann (mas)7 de novembro de 2013

"A restituição de obras de arte é uma questão de higiene moral na Alemanha", afirma o escritor Rafael Seligmann, autor de inúmeros livros sobre a situação dos judeus no país.

Foto: picture-alliance/dpa

Para o escritor, jornalista e historiador Rafael Seligmann, a maneira como o tema obras de arte é tratado na Alemanha é de extrema importância por ser um espelho da relação dos alemães com os judeus. "Para mim esse é o ponto crucial", afirma em entrevista à Deutsche Welle.

"Ainda me espanta a falta de escrúpulos com que o assunto é tratado até hoje", diz o intelectual, que nasceu em Tel Aviv, numa família que deixou a Alemanha nazista nos anos 1930 e retornou ao país nos anos 1950.

Ele diz que muitos museus e pessoas que possuem obras roubadas gostariam que o assunto fosse deixado de lado. "A restituição de obras de arte é uma questão de higiene moral na Alemanha", afirma o escritor, autor de inúmeros livros sobre a situação dos judeus no país, incluindo a autobiografia Deutschland wird dir gefallen (Você vai gostar da Alemanha).

Durante o regime nazista, milhares de obras de artes de artistas famosos foram difamadas como sendo "degeneradas" e confiscadas de colecionadores judeus ou compradas a preços bem baixos.

Por muitos anos, os herdeiros dos donos têm contatado galerias de arte e museus para saber da procedência de suas obras. Paralelamente, museus alemães se comprometeram em verificar se possuem obras roubadas em suas coleções.

"Löwenbändiger", de Max Beckmann, estava entre as obras encontradasFoto: picture-alliance/dpa/VG Bildkunst

Mas muitas obras de arte continuam sendo localizadas fora do circuito dos museus e das galerias. Esse é o caso do chamado "Tesouro de Munique", que chegou ao conhecimento público nesta segunda-feira (04/11) e que pode conter obras saqueadas de proprietários judeus.

DW: Em um apartamento em Munique foram encontradas mais de 1.400 obras de artistas como Pablo Picasso, Henri Matisse e Marc Chagal, aparentemente roubadas. Você se surpreendeu com a descoberta desse enorme acervo numa residência comum no meio de Munique?

Rafael Seligmann: Tenho que admitir que fiquei surpreso com a dimensão da descoberta, não com o fato em si. É do conhecimento de todos que arte foi requisitada, expropriada e roubada, assim como que muitas pessoas continuam a lucrar com o fato de que grande parte dessas obras nunca foi restituída aos seus donos originais. Mas ainda me espanta a falta de escrúpulos com que o assunto é tratado até hoje.

Na entrevista para a imprensa desta terça-feira foi dito que a coleção havia sido descoberta em 2012, e não em 2011, como havia sido dito anteriormente. Ainda assim: a descoberta não foi imediatamente divulgada. A Alemanha ainda tenta encobrir casos envolvendo obras saqueadas ou dificultar que tais casos sejam esclarecidos?

"Alemanha" é um conceito muito amplo para uma única pessoa. Mas há setores na Alemanha – museus, galerias, indivíduos e órgãos públicos – que gostariam que as obras recolhidas por eles ou por seus antecessores continuassem com eles e que mesmo uma verificação [de procedência] fosse evitada.

Muitos judeus, com a ajuda de caros advogados, procuram há anos por obras de arte que pertenceram a suas famílias. Em sua opinião, como o governo alemão tem auxiliado nessas buscas?

De forma muito hesitante. Só aquilo que já é definitivamente sabido é reconhecido. Conheço muitas pessoas, entre eles descendentes proeminentes de famílias judias, que ao longo de anos tiveram de lutar e viajar para provar que obras de arte de suas famílias foram roubadas. O padrão era sempre o mesmo: até a chamada Noite dos Cristais, em 1938, arte não era simplesmente roubada – era pago um preço muito baixo. Assim, não havia problemas legais, mas uma espécie de fraude sancionada pelo Estado. Nesse ponto a situação se torna complicada. Pode-se provar que algo foi roubado, mas é difícil provar que o preço pago estava muito abaixo do valor do mercado.

Prédio onde a coleção de arte foi descobertaFoto: picture-alliance/dpa

Sua família fugiu da Alemanha nazista – sua mãe de Berlim e seu pai de uma pequena cidade perto de Ulm e Ausburg na Baviera, ambos em 1933. Eles lhe contaram se deixaram pertences de valor em suas casas quando tiveram que escapar do país?

A história do meu pai é interessante. Ele veio de uma família bem estabelecida de Ischenhausen. Após o alerta de um amigo cristão, meu pai e meu tio conseguiram fugir para a Palestina em 1933. Meus avós foram dois anos depois e tiveram que vender sua casa por um preço bem abaixo do valor de mercado. Assim, tudo o que estava na casa – não havia grandes obras de arte, mas era a maior casa da cidade, eram objetos pessoais de valor sentimental –, tudo foi deixado para trás.

Sua família recebeu alguma restituição?

Não.

Os museus alemães se comprometeram a verificar se as obras em suas coleções foram roubadas. É tarde demais para isso?

Nunca é tarde demais. Mas eu acredito que haja poucos sobreviventes cujas obras tenham sido roubadas. Mas isso não importa. Existem leis de herança. E eu não vejo por que uma família, que teve suas obras de arte ou outros bens roubados, não faça valer seus direitos. Se for considerado legítimo, as obras de arte ou bens deveriam ser restituídas.

Que significado tem a arte para os herdeiros no âmbito de uma – por mais cínica que essa palavra possa soar – "reparação"?

Este quadro de Oskar Kokoschka, no Museu Ludwig em Colônia, teve seus donos localizadosFoto: Rheinisches Bildarchiv Köln

Se alguém ama a arte ou se apenas [está interessado] no seu valor financeiro, é irrelevante. É uma questão de propriedade. Acima de tudo, a restituição de obras de arte é uma questão de higiene moral na Alemanha. As pessoas estão dispostas a se desfazer de arte roubada ou expropriada ou querem ficar com essas obras de arte? Para os russos, os alemães dizem que gostariam de reaver as obras de arte roubadas da Alemanha. Mas aos proprietários judeus de obras de arte, eles dizem que algo foi pago por essas obras. Acredito que é do interesse da sociedade alemã devolver objetos de arte ou bens.

Você conhece a Alemanha tanto quanto os Estados Unidos e Israel. Como a disputa por restituição é vista no exterior?

Como um parâmetro. Recentemente, Limor Livnat, ministro da Cultura de Israel, enviou uma carta para Bernd Neumann, ministro da Cultura da Alemanha, dizendo que a maneira como o tema obras de arte é tratado é de extrema importância, porque é um espelho da relação dos alemães com os judeus. Para mim esse é o ponto crucial.

Como você acha que a Alemanha deveria lidar com a arte saqueada pelos nazistas?

A Alemanha não deveria esperar que casos de fraude, roubo e extorsão venham à tona, mas participar ativamente da investigação. Quando se sabe que objetos foram expropriados ou roubados, eles devem ser devolvidos, comprados [dos proprietários originais] ou expostos – já que muitos herdeiros concordaram em deixar essas obras em museus. Mas deve-se ao menos chegar a um acordo com os herdeiros. Inaceitável é que pessoas guardem coleções privadas em apartamentos. Se queremos ser uma sociedade democrática, humana e honesta, não podemos conviver com obras de arte roubadas.

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