Manifestar-se contra o avanço da extrema direita, em especial da AfD, é relativamente "fácil" nas metrópoles. No interior, porém, sobretudo em meio a neonazistas e Reichsbürger, protestar exige uma dose maior de coragem.
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Mais um fim de semana de passeatas pró-democracia na Alemanha. Desde meados de janeiro os protestos populares contra o extremismo de direita não cessam, já tendo reunido, ao todo, milhões de participantes. Apenas neste sábado (03/02), cerca de 150 mil foram às ruas em Berlim; também em outras metrópoles como Hamburgo e Colônia, as passeatas se sucedem. Mas as cidades e municípios menores igualmente se manifestam.
A mensagem das ruas é clara: algo estava fortemente reprimido no centro da sociedade alemã. Nos últimos anos, parecia irrefreável a ascensão da populista, em parte ultradireitista, Alternativa para a Alemanha (AfD) – apesar de suas constantes provocações racistas e conexões com meios extremistas, até mesmo neonazistas.
Em sua história recente, o partido se transformou numa força política radical, em luta acirrada contra o islã, a imigração e o asilo politico; negando as mudanças climáticas; e – no estilo de um Donald Trump – difamando seus adversários com insultos e teorias de conspiração. E que parece até disposto a discutir a expulsão ou deportação de alemães, caso sejam oriundos de famílias de imigrantes – sob o cínico conceito de "remigração".
A divulgação desse debate, em 10 de janeiro de 2024, foi o estopim dos protestos de massa sem precedentes no país. Segundo sua reportagem do coletivo midiático Correctiv, políticos da AfD, extremistas de direita e empresários haviam se encontrado para discutir sobre deportações em massa. A indignação sobre tais planos racistas levou muitos alemães às ruas.
"É um sinal muito positivo, partindo do centro da sociedade", avalia David Begrich, da associação Miteinander, da cidade de Magdeburg. "Mais ainda porque nas cidades de médio e pequeno porte custa coragem se posicionar contra a AfD e o extremismo de direita." A Miteinander se engaja contra a extrema direita, presta aconselhamento contra vítimas e instituições sociais.
Lutando contra a direita no interior da Alemanha
Em metrópoles como Berlim, Hamburgo ou Colônia, os protestos são uma autoafirmação séria, mas também tranquila, da maioria da sociedade, de que não pretende permitir inativa o avanço da direita radical. Em cidades menores e lugarejos no campo, os protestos ganham outro peso.
Um exemplo é Saalfeld, no estado da Turíngia, um reduto da ultradireita no leste do país. De sua paisagem humana fazem parte, inquestionados, neonazistas, clubes extremistas de lutas marciais, e os inimigos da democracia "Reichsbürger", que sonham com reinos alemães passados. Em cidades "do interior" como essa, a cena de extrema direita pôde estabelecer estruturas sólidas, ao longo de anos e mais ou menos despercebida.
E a AfD conta com grande número de adeptos em Saalfeld – assim como em toda a Turíngia. "Quando eu converso com jovens, é comum fazerem a saudação nazista", comenta Katharina Fritz, membro ativo da organização juvenil do partido socialista A Esquerda. "A partir de todas essas manifestações que agora se realizam pelo país, pensamos que também aqui, em Saalfeld, a gente precisa se levantar, sem a menor dúvida se posicionar contra a AfD e a guinada para a direita."
Estruturas neonazistas têm longa tradição no lugarejo de menos de 30 mil habitantes: em meados da década de 1990, a partir de lá neonazistas se agruparam para glorificar Adolf Hitler e espalhar o ódio pelo país. Eles formaram a Defesa da Pátria Turíngia (Thüringer Heimatschutz), que anos mais tarde estamparia as manchetes como origem do grupo Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU).
De 1999 a 2007 o trio de terroristas plantou bombas e assaltou, em toda a Alemanha, matando um total de dez indivíduos, por motivos racistas. Depois que seus dois companheiros se suicidaram, em 1999, a única sobrevivente da NSU é Beate Zschäpe, atualmente cumprindo pena de prisão perpétua. No entanto a rede de patrocinadores e simpatizantes dos radicais continua grande até hoje, e alcança até Saalfeld.
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Opositores sofrem ameaças no Leste alemão
Tão mais admirável, assim, é o fato de tantos cidadãos de Saalfeld estarem aderindo aos protestos nacionais contra o perigo da extrema direita. Em 26 de janeiro, apesar da pesada chuva e do frio invernal, 1.500 deles se reuniram em manifestação, na pitoresca Praça do Mercado da localidade alemã-oriental.
Os próprios participantes pareciam espantados com o grande afluxo. Trata-se de uma demonstração de coragem: na Turíngia é longa a lista das ameaças contra políticos, jornalistas e manifestantes, assim como a das agressões racistas e insultos a refugiados, pessoas de cor ou alemães de ascendência estrangeira.
Isso também preocupa os jovens conservadores da cidadezinha: "Pouco a pouco a gente aqui percebe que o problema da extrema direita não vai sumir por conta própria", comenta Eirik Otto, presidente da União Jovem dos partidos democratas-cristãos CDU e CSU. "E eles notam que o centro da sociedade, que normalmente não se vê em manifestações, tem que começar a mostrar sua cara."
Pela democracia, ao som de Macarena
Por isso Otto e sua União atenderam à conclamação, lado a lado com seus supostos adversários da Antifa, de esquerda. Também essa organização antifascista é controvertida em Saalfeld: para uns, ela é uma importante rede para o combate à ultradireita, mas seus opositores políticos a consideram extremista de esquerda.
"Claro que houve longas discussões a respeito", revela Otto. "E é preciso sermos bem honestos: não vamos nunca representar os mesmos princípios." Contudo, "em questões fundamentais de democracia e decência", esquerdistas e conservadores precisam mostrar onde estão os limites. E a AfD está do lado de fora.
Para David Begrich, ainda cabe ver quão duradoura e bem-sucedida será a luta contra a antidemocracia e o racismo no interior alemão. "Esse engajamento precisa agora se traduzir num engajamento pela política democrática no local, em associações, iniciativas, no espaço pré-político."
Quando o ato em Saalfeld chegou ao fim, a chuva havia parado. E para combater o frio, se dança. Ao som do sucesso de verão espanhol Macarena, os presentes balançam juntos: jovens conservadores, adeptos da Antifa, famílias, representantes religiosos, gente de cultura e cidadãos comuns.
O caso NSU
Após mais de cinco anos de processo, saem as sentenças pelas mortes de nove imigrantes e uma policial na Alemanha, num caso envolvendo extremismo de direita e críticas a instâncias estatais.
Foto: dapd
Beate Zschäpe, o rosto da NSU
Entre 2000 e 2006, nove homens de origem estrangeira foram mortos com a mesma pistola na Alemanha. A polícia tateava no escuro, e a mídia falava de "assassinatos do kebab". Em 4 de novembro de 2011, uma casa explodiu em Zwickau, no leste do país. Entre os destroços foram encontrados a arma do crime e outros objetos incriminadores. Quatro dias mais tarde, Beate Zschäpe se entregou à polícia.
Foto: dapd
O (presumível) trio da NSU
Em 1998, Zschäpe se unira aos amigos ultradireitistas Uwe Böhnhardt e Uwe Mundlos na célula terrorista Clandestinidade Nacional-Socialista (NSU). O trio viveu incógnito em diversos locais por quase 14 anos, por último em Zwickau, no estado da Saxônia. Segundo os investigadores, eles teriam cruzado a Alemanha cometendo assassinatos e atentados a bomba, financiando-se através de assaltos a bancos.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Burgi
As vítimas
Ao que se sabe, a NSU matou ao menos nove homens e uma mulher. A primeira vítima, Enver Şimşek, sucumbiu em setembro de 2000 a ferimentos graves. As demais vítimas foram (a partir do alto, esq.) Abdurrahim Özudogru, Süleyman Taşköprü, Habil Kılıç, a policial Michèle Kiesewetter, Mehmet Turgut, Ismail Yasar, Theodorus Boulgarides, Mehmet Kubaşık e Halit Yozgat.
Foto: picture-alliance/dpa
Atentados a bomba em Colônia
Na rua Keupstrasse, em Colônia, habitada majoritariamente por turcos, uma bomba cheia de pregos explodiu em 9 de junho de 2004. Mais de 20 pessoas ficaram feridas, em parte gravemente. Antes, em 19 de janeiro de 2001, uma outra fora detonada na Probsteigasse. Uma jovem de 19 anos de origem iraniana sofreu queimaduras, cortes, fratura do crânio e perfuração do tímpano.
Foto: picture-alliance/dpa
Fim de uma fuga
Em 4 de novembro de 2011, um assalto a banco fracassou em Eisenach, na Turíngia. Os criminosos conseguiram inicialmente escapar, mas foram perseguidos pela polícia. Pouco mais tarde, os cadáveres de dois homens foram encontrados num trailer fumegante. Os indícios eram de suicídio. Ambos foram identificados como Uwe Böhnhardt e Uwe Mundlos, supostos integrantes da célula terrorista NSU.
Foto: picture-alliance/dpa
Último esconderijo
Poucas horas após a morte dos supostos assassinos da NSU, uma casa residencial foi pelos ares em Zwickau. Com a explosão, Beate Zschäpe aparentemente tentou eliminar as pistas na moradia que dividia com seus amigos Böhnhardt e Mundlos. Entre as ruínas, os policiais encontraram, entre outros, a arma do tipo Ceska utilizada na série de assassinatos da NSU e um vídeo de reivindicação.
Foto: picture-alliance/dpa
Reivindicação cruel
Num macabro vídeo, utilizando a apreciada figura de desenhos animados Pantera Cor-de-Rosa, a NSU reivindicou os assassinatos de nove turcos e uma policial. No entanto, uma das vítimas, Theodorus Boularides, tinha origem grega.
Foto: picture-alliance/dpa/Der Spiegel
O início do processo
Em 6 de maio de 2013, começou o processo da NSU no Tribunal Superior Regional de Munique. A única sobrevivente do trio terrorista, Beate Zschäpe, apresentou-se de terno escuro, aparentando autoconfiança. O procurador-geral da República a acusou, entre outros crimes, de "ter matado, em dez casos, um ser humano de forma traiçoeira e por motivação torpe".
Foto: Reuters/Michael Dalder
Cúmplices da NSU?
Além de Zschäpe, quatro homens foram acusados no processo da NSU como presumíveis acessórios dos crimes. Apenas Ralf Wohlleben (abaixo, dir.), ex-membro do partido de extrema direita NPD, pode ter seu nome completo citado na imprensa. Os demais, André E., Carsten S. e Holger G. estão protegidos pelo direito de personalidade.
Zschäpe quebra o silêncio
Em 9 de dezembro de 2015, após dois anos e meio de silêncio, Beate Zschäpe se pronunciou, fazendo ler uma declaração em que inculpa Böhnhardt e Mundlos pela série de assassinatos. Em meados do ano, ela se desentendera com seus três advogados indicados, passando a ser representada adicionalmente por Hermann Borchert e Mathias Grasel.
Foto: picture-alliance/dpa/P. Kneffel
Escândalo do informante
Desde o início do processo, era ambíguo o papel do Departamento de Defesa da Constituição, responsável pela segurança interna da Alemanha, nas atividades da NSU. O extremista de direita Tino Brandt (foto), informante do órgão, relatou em juízo como, nos anos 90, criara o grupo Defesa da Pátria da Turíngia (THS). A partir dele, o trio liderado por Zschäpe se radicalizou, criando a NSU.
Foto: picture-alliance/dpa/Martin Schutt
Relações mal explicadas
Quando Halit Yozgat foi baleado num internet-café de Kassel, em 6 de abril de 2006, o informante Andreas T. estava no local. Apesar disso, o funcionário da Defesa da Constituição afirmou nada saber sobre o atentado. No processo da NSU, o pai da vítima, Ismael Yozgat, relatou de forma comovedora como segurara nos braços o filho agonizante. No tribunal, levou consigo uma foto de infância de Halit.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Gebert
Protestos contra falta de clareza
Já houve uma série de manifestações contra o envolvimento de órgãos estatais alemães no caso da NSU. A organização Keupstrasse Está Por Toda Parte é uma das participantes dos protestos. Ela leva o nome da cidade de Colônia, onde a célula terrorista explodiu uma bomba cheia de pregos.
Foto: DW/M. Fürstenau
Parlamento interfere
O Parlamento federal alemão tentou trazer luz às intrigas no caso da NSU. Em agosto de 2013, o presidente da primeira comissão de inquérito, Sebastian Edathy (dir.), entregou ao líder parlamentar Norbert Lammert seu relatório final de mais de mil páginas. A conclusão foi avassaladora: "fracasso estatal". Mais tarde haveria outras CPIs em nível federal e estadual.
Foto: picture-alliance/dpa
Promessas quebradas
Em 23 de novembro de 2012, foi realizado na Konzerthaus de Berlim um evento em memória das vítimas da NSU. A chefe de governo Angela Merkel (esq.) prometeu a Semiya Şimşek e outros familiares o esclarecimento total. Mas eles estavam decepcionados diante de dossiês da Defesa da Constituição eliminados ou mantidos em caráter confidencial. Sua suspeita era de que o Estado sabia mais do que admitia.
Foto: Bundesregierung/Kugler
Procuradoria Geral exige pena máxima
Em meados de 2017, o procurador-geral Herbert Diemer e colegas apresentaram suas considerações finais. Eles exigiram para Beate Zschäpe a pena máxima, de prisão perpétua, devido à gravidade extrema de seus crimes. Para Ralf Wohlleben e André E., a acusação pediu 12 anos de cárcere, assim como cinco para Holger G. e três para Carsten S..
Foto: picture-alliance/dpa/P. Kneffel
Exigência surpreendente
Em abril de 2018, os defensores se pronunciaram. Hermann Borchert e Mathias Grasel, representando Zschäpe apenas desde 2015, reivindicaram para ela um máximo de dez anos de prisão. Entretanto, seus antigos advogados, Wolfgang Stahl, Wolfgang Heer e Anja Sturm (da dir. para a esq.) surpreenderam ao pedir a libertação imediata de Zschäpe da prisão preventiva.
Foto: Reuters/M. Rehle
Juiz respeitado
Manfred Götzl, de 64 anos, é o juiz-presidente no processo da NSU, no Tribunal Superior Regional de Munique, encarregado de pronunciar as sentenças contra Beate Zschäpe e os demais réus. Os advogados de alguns coautores do processo criticaram Götzl, desejando que ele conduzisse a ação com maior rigor. No geral, contudo, ele goza de grande respeito.
Foto: picture-alliance/dpa/T. Hase
Prisão perpétua para a ré principal
Em 11 de junho de 2018, Beate Zschäpe (esq.), de 43 anos, foi condenada à prisão perpétua pelo Tribunal Superior Regional de Munique. Como os crimes são de extrema gravidade, ela não poderá deixar a prisão depois de cumprir 15 anos de pena. A defesa anunciou que vai recorrer da decisão à instância superior, a Corte Federal de Justiça. Os demais réus receberam penas entre dez e dois anos e meio.