Diretor do Instituto Sou da Paz afirma que princípio da preservação da vida, previsto na Constituição, justifica negociação do poder público com líderes de facções "para não acontecer o que aconteceu no Carandiru".
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O visível poder das facções dentro dos presídios retoma a polêmica, muito presente na ocasião dos ataques do PCC em São Paulo, em 2006, sobre a legitimidade de se negociar com um grupo criminoso. Autoridades públicas do governo do Rio Grande do Norte admitiram conversas com líderes do PCC e da facção Sindicato do Crime para tentar conter nova rebelião e massacres no presídio de Alcaçuz.
Em entrevista à DW Brasil, o diretor-executivo do Instituto Sou da Paz, Ivan Marques, afirma que a negociação com uma facção é legítima se considerado o princípio primordial da preservação da vida, previsto na Constituição. "Me parece razoável que, respeitando as leis vigentes, que têm como princípio maior a preservação da vida, haja algum tipo de negociação para não acontecer o que ocorreu no Carandiru, no presídio de Urso Branco, no Espírito Santo, e voltou a acontecer em 2017 em Manaus e Boa Vista e agora no Rio Grande do Norte."
Para o advogado, especializado em direitos humanos pela London School of Economics and Political Science, afirma ainda que há uma "janela de oportunidade" para deixar de lado "soluções de emergência" e debater, por exemplo, a descriminalização da drogas. Ele reconhece, no entanto, que esse debate só poderá ser alavancado por uma ação do Supremo Tribunal Federal, devido ao perfil conservador do Congresso.
DW Brasil: É legítimo negociar com uma facção criminosa, como parece ter ocorrido no presídio de Alcaçuz, no Rio Grande do Norte?
Ivan Marques: Discutir a legitimidade de uma situação como essa é sempre muito complicado. Em situações emergenciais há uma questão de princípios que precisa sempre ser colocada em primeiro lugar. O principal deles, como reza a Constituição brasileira e todos os princípios de direitos humanos, deve ser a preservação da vida. Os presídios são absolutamente dominados por organizações criminosas. A legitimidade do poder público para essa negociação passa pelo crivo da lei. A administração pública segue o princípio do estrito cumprimento legal, que é dado pelo artigo 5° da Constituição. Dentro dessa situação emergencial que estamos vivendo agora, me parece razoável que, respeitando as leis vigentes, que têm como princípio maior a preservação da vida, haja algum tipo de negociação para não acontecer o que aconteceu no Carandiru, no presídio de Urso Branco, nos presídios do Espírito Santo e que voltou a acontecer em 2017 em Manaus e Boa Vista e agora no Rio Grande do Norte.
Fica evidente que o grau de organização das facções é cada vez mais elaborado e complexo. Como paralisar os conflitos e mortes?
A organização muito forte das facções só ocorreu por causa da desorganização e omissão do Estado. O que as facções estão mostrando, dentro e fora dos presídios, é que têm poder, têm capacidade de mobilização e de implantar na sociedade a sensação de insegurança. Sensação essa que sempre existiu, mesmo sem esses conflitos dentro de presídios.
O Estado, objetivamente, precisa conseguir se coordenar, ter capacidade de resposta. A cadeia da justiça criminal começa pela polícia, passa pelo Judiciário e termina no sistema penitenciário. É preciso ação conjunta e coordenada dessa cadeia. O Judiciário pode muito bem fazer os mutirões de caráter emergencial para liberação de presos que não deveriam cumprir pena de restrição de liberdade. Por que não fazer também mutirão de execução de penas? Tudo isso enfraqueceria as facções.
Por outro lado, existe a parte emergencial de uso da capacidade policial dentro dos presídios. Essas polícias, depois do que aconteceu no Carandiru, foram treinadas para conter esse tipo de tumulto. É preciso conseguir usar esse aparato policial dentro dos presídios.
O governo federal fez muito pouco pela segurança pública nos últimos 15 anos, mas dentro desse pouco equipou as polícias. Há capacidade técnica, há equipamentos e existe a necessidade premente de atuação do Estado, de demonstração de que ele pode controlar a situação. Desde que aja de maneira conjunta com outras frentes, como o Judiciário.
Há um momento ímpar no Brasil para que a política penal e penitenciária possa ser rediscutida. Com isso, ultrapassamos os soluços de emergência que o Brasil vive de tempos em tempos.
E por que esse momento seria diferente dos soluços do passado? Essas crises já ocorreram antes. Quando deixam as páginas dos jornais, deixam a agenda política.
É um momento, talvez, diferente de outros, em que há uma diversidade de opiniões sendo publicada. A mídia tem um papel importante. O Brasil acaba envergonhado frente à comunidade internacional quando esse tipo de notícia ganha outros territórios. De fato, os soluços passam, e todo mundo esquece. Isso acontece em grande parte pela relação que a sociedade tem com o sistema penitenciário. O brasileiro quer o problema longe dele.
Agora, o problema é nacional, porque não é só o Carandiru, não é só o Espírito Santo, não é só o Pará. Está acontecendo no território nacional pela organização das facções criminosas. Ultrapassou a fronteira do problema regional e local. Temos um problema nacional que precisa ser enfrentado.
Com o perfil do atual Congresso, há espaço para discutir a descriminalização das drogas? O Sou da Paz é a favor?
Um dos pontos principais para começar a controlar as rebeliões nos presídios e o crime organizado é fazer um debate amplo sobre como o Brasil quer tratar a relação de seus cidadãos com as drogas. É uma discussão ampla, que precisa ser feita abertamente. Existe uma diferença muito importante entre legalização e descriminalização. Apesar de o brasileiro ter essa visão aparentemente conservadora, me parece que o debate da descriminalização, que já acontece no Supremo Tribunal Federal, pode ser feito. Teremos muitos avanços se o usuário não for mais para a cadeia. Já a legalização é um caminho mais longo, sendo realista. Nosso Congresso não teria condições de fazer uma discussão como essa.
O debate da descriminalização então só teria algum eco via Supremo, e não pelo Congresso.
Sem dúvida. Um julgamento no Supremo cria um precedente que deve ser seguido por juízes de primeira instância. E mesmo se o juiz de primeira instância não seguir o STF, em segunda instância isso fatalmente vai ocorrer. Sentenças de primeira instância fatalmente seriam reformadas.
Cronologia da crise nos presídios
Ano de 2017 começa com crise inesperada para o governo Temer: na primeira quinzena de janeiro, 120 presos são barbaramente assassinados dentro de presídios do norte do país, com ação de facções criminosas.
Foto: Reuters/J. Goncalves
Eles se matam, e a polícia não age
1º de janeiro: presos iniciam uma rebelião no Complexo Penitenciário Anísio Jobim, em Manaus. A polícia decide não entrar para conter o massacre. Autoridades locais alegam que tomaram tal decisão para evitar uma tragédia semelhante à do Carandiru, quando 111 presos morreram num motim com a ação policial, em São Paulo, em 1992.
Foto: picture-alliance/Zumapress/A Critica
56 mortos, corpos decapitados e esquartejados
2 de janeiro: a Secretaria de Segurança Pública do Amazonas divulga o número de mortos: 56 presos assassinados, boa parte deles decapitada e esquartejada. Foram mais de 17 horas de massacre. As autoridades de Manaus atribuem a tragédia à disputa entre as facções criminosas Primeiro Comando da Capital (PCC) e Família do Norte (FDN). Em desespero, famílias aguardam identificação de corpos.
Foto: Reuters/M. Dantas
"Tudo sob controle"
3 de janeiro: o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, visita o Complexo Anísio Jobim, onde aconteceu a rebelião de Manaus, e diz que situação está "sob controle". Moraes afirma que governo não corrobora a tese de confronto entre facções. Uma rebelião como a de Manaus, diz, é provocada por um somatório de fatos que ainda precisariam ser analisados pelo governo.
Foto: Isaac Amorim/Ministerio da Justica e Cidadania
"Ninguém ali era santo"
4 de janeiro: o governador do Amazonas, José Melo de Oliveira (Pros), faz uma declaração chocante sobre a matança no presídio: "Não tinha nenhum santo. Eram estupradores, matadores (...) e pessoas ligadas a outra facção, que é minoria aqui no Estado do Amazonas". O governo estadual decide, só depois da tragédia, retirar os presos ameaçados de morte e transferi-los para outro local.
Foto: Divulgacao/SECOM/H. Pereira
Protagonismo do Supremo
5 de janeiro: a presidente do Supremo Tribunal Federal, Cármen Lúcia, assume um papel de protagonismo na crise. Um dia após a tragédia, ela decide viajar a Manaus e afirma que a situação é explosiva. No Amazonas, faz reuniões com juízes e desembargadores. Por orientação dela, o Conselho Nacional de Justiça monta uma força-tarefa para supervisionar as medidas do estado do Amazonas sobre a crise.
Foto: Divulgacao/SCO/STF
"Mais do mesmo"
5 de fevereiro: o governo anuncia o Plano Nacional de Segurança em resposta à crise. O ministro da Justiça apresenta, entre as medidas, a construção de cinco presídios de segurança máxima, sem detalhar custos e prazos. Especialistas ouvidos pela DW dizem que programa reedita propostas dos governos Lula e Dilma, é genérico e não dá nova perspectiva para o fim do aprisionamento em massa.
Foto: Isaac Amorim/Ministerio da Justiça e Cidadania
O silêncio e o acidente
5 de janeiro: o presidente Michel Temer faz o primeiro comentário sobre as mortes, referindo-se aos massacres como "acidente pavoroso". "Eu quero me solidarizar com as famílias que tiveram seus presos vitimados naquele acidente pavoroso que ocorreu no presídio de Manaus." O presidente, que já tinha sido criticado por seu silêncio e omissão, foi reprovado pelo uso da palavra acidente.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Em Roraima, outra barbárie
6 de janeiro: na madrugada, outro massacre é iniciado, desta vez na penitenciária Agrícola Monte Cristo, em Roraima. Mais 33 presos são mortos. O governo classifica as mortes de barbárie e diz não ter indícios claros se o massacre tem relações com vingança de facção criminosa.
Foto: Getty Images/AFP/V. Almeida
Baixa no governo
6 de janeiro: a crise penitenciária produz a primeira baixa no governo. O secretário nacional de Juventude, Bruno Júlio, é demitido após declarações polêmicas publicadas no "Globo". "Tinha que fazer uma chacina por semana", teria dito. Ele negou ter feito a afirmação. À "Folha de S. Paulo", disse: "Fico triste porque não estão dando tanta importância para as pessoas de bem que morrem todo dia".
Foto: Divulgacao/JPMDB
A matança continua
8 de janeiro: mais quatro presos são mortos em novo motim no Amazonas. A rebelião, desta vez, é na Cadeia Pública Desembargador Raimundo Vidal Pessoa, no centro de Manaus. Três detentos são decapitados, e um foi morto por asfixia.
Foto: Agência Brasil/Marcelo Camargo
Reforço tardio
9 de janeiro: o governo federal autoriza envio de cem homens da Força Nacional de Segurança a Manaus e outros cem para Roraima. Ministro da Justiça se compromete a atender pedidos de sete estados das regiões Norte e Centro-oeste para auxiliar no policiamento e segurança, autorizando transferência de presos para penitenciárias federais e liberando recursos.
Foto: Marcelo Camargo/Agencia Brasil
Após a tragédia, a tentativa de controle
10 de janeiro: a Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e a PM do Amazonas fazem revistas nas unidades prisionais da capital. A ação dos policiais foi iniciada no dia 5. Na ala dos presos que cumprem regime semiaberto do Complexo Penitenciário Anísio Jobim são encontrados pen-drives, walkie-talkies, cabos telefônicos, celulares, alicates, facas, martelos e outras ferramentas.
Foto: Bruno Zanardo/Secom
Mais um capítulo da crise: 26 mortos no RN
15 de janeiro: um novo motim ocorre no presídio de Alcaçuz, na cidade de Nísia Floresta, região metropolitana de Natal. O governo do estado confirmou a morte de 26 detentos. Assim como em outras rebeliões do Norte, os corpos estavam desfigurados. A perícia levará 30 dias para fazer as identificações. Após a rebelião, presos foram revistados nus. Houve auxílio da Força Nacional de Segurança.
Foto: picture-alliance/dpa/F. Marcone
Confusão sem fim em Alcaçuz
16 de janeiro: Um dia após o motim que terminou com ao menos 26 mortos, a penitenciária de Alcaçuz (RN) volta a ser palco de tumultos. Em dia de "clima tenso”, um grupo de detentos voltou a ocupar os telhados dos pavilhões e proferir ameaças contra facções rivais de dentro do presídio. Agentes da PM, do Bope e do GOE não conseguiram controlar a situação. A Força Nacional teve de ser acionada.
Foto: Reuters
Onda de rebeliões chega a Minas Gerais
17 de janeiro: Cerca de 1.200 detentos do presídio Antônio Dutra Ladeira, em Ribeirão das Neves (MG), anunciam um motim para reivindicar a saída do diretor da prisão e a melhora no tratamento de familiares e presos. Em vídeos que circulam pela internet, eles ameaçam uma carnificina caso não sejam ouvidos. "Vai morrer muita gente, o massacre vai começar", diz um dos presos encapuzado de vermelho.
Foto: Quelle: Youtube/Portal O TEMPO
Forças Armadas entram nos presídios
17 de janeiro: Governo autoriza que as Forças Armadas passem a inspecionar materiais proibidos, como armas e drogas, dentro dos presídios estaduais. A segurança interna continua, porém, sob responsabilidade de agentes penitenciários e policiais. Segundo a presidência, a "operação visa restaurar a normalidade e os padrões básicos de segurança nos estabelecimentos carcerários brasileiros."
Foto: picture-alliance/AP Photo/E. Peres
Agentes penitenciários protestam por trabalho
17 de janeiro: Em Brasília, agentes penitenciários reivindicam a contratação de profissionais aprovados em concursos públicos e melhores condições de trabalho. Segundo a Federação Brasileira dos Servidores Penitenciários, o Brasil teria de aumentar em 30 vezes o número de agentes penitenciários para atender à recomendação nacional de um agente para cada cinco presos.
Foto: Agência Brasil/M. Casal Jr.
Caos chega às ruas de Natal
18 de janeiro: Na capital Natal, ao menos 14 ônibus, dois micro-ônibus, um carro do governo, cinco viaturas da polícia, duas delegacias e um prédio de uma secretaria de Saúde foram alvos de atos criminosos. O vandalismo ocorreu depois de 220 detentos terem sido transferidos do presídio de Alcaçuz (RN). A polícia também registrou quebradeiras nas cidades de Macau, Parnamirim e Caicó.
Foto: Reuters/J. Goncalves
Proteção às fronteiras
19 de janeiro: O ministro da Defesa, Raul Jungmann, visita o Sistema Integrado de Sensoriamento em Dourados (MS), próximo à fronteira com o Paraguai. O governo investirá 450 milhões de reais no Sisfron, que usará radares e câmeras para monitorar os mais de 16 mil km de fronteiras contra o narcotráfico. O Brasil é hoje o principal ponto de saída de cocaína produzida na América do Sul para a Europa.
Foto: Agência Brasil/V. Campanato
Campo de guerra em Alcaçuz
19 de janeiro: A confusão no presídio de Alcaçuz, em Nísia Floresta (RN), pulou os muros da penitenciária e chegou às ruas de Natal e cidades próximas, que foram palco de ao menos 26 veículos incendiados e diversos prédios apedrejados. Militares foram acionados para tomar o controle da segurança nas cidades.