Netflix cancela série "1899" e causa indignação nos fãs
Scott Roxborough
4 de janeiro de 2023
Ambição criativa, louvor crítico, uma multidão de admiradores online: nada disso garantiu a sobrevivência de "1899" para além da primeira temporada. Especula-se sobre motivos, mas a resposta parece ser simples: dinheiro.
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Os fãs de 1899 tiveram um choque na segunda-feira (02/01), quando seus criadores anunciaram que a nova série da Netflix estava cancelada após apenas uma temporada. "Com o coração pesado, temos que lhes dizer que 1899 não será renovada", postaram Baran bo Odar e Jantje Friese no Instagram.
"Teríamos adorado concluir essa incrível jornada com uma segunda e terceira temporadas, como fizemos com Dark", prosseguiu a dupla, também responsável pela primeira série em idioma alemão da gigante do streaming, transmitida entre 2017 e 2020. "Mas às vezes as coisas não ocorrem do jeito que a gente planejou. É a vida."
Para muitos, a notícia veio do nada: 1899 foi lançada em novembro de 2022 com grande alarde midiático, recebeu críticas entusiásticas por todo o mundo e, segundo as próprias estatísticas da Netflix, emplacou o primeiro lugar de audiência em 55 países.
Estrutura de matriosca
Críticos e numerosos espectadores louvaram o grau de ambição da série, um meta-mistério cheio de guinadas, sobre um grupo de emigrantes do século 19 num navio a vapor rumo à América. A série foi filmada em diversos idiomas, com os atores – inclusive o alemão Andreas Pietschmann, o dinamarquês Lucas Lynggaard Tonnesen e a estrela de Hong Kong Isabella Wei – todos falando nas próprias línguas maternas.
A série também foi uma façanha de tecnologia, uma das primeiras produzidas num palco LED Volume, tecnologia de ponta que permite criar complexos efeitos especiais digitais direto na câmera. Toda a temporada foi rodada no estúdio Dark Bay LED, no Studio Babelsberg, nas cercanias de Berlim.
Segundo os autores, assim como Dark, 1899 foi concebida como série de três temporadas, com uma estrutura semelhante, de matriosca (boneca russa). Cada estágio teria um final aberto, tipo cliffhanger, revelando uma nova camada da história. Encerrar o show após a temporada 1 deixa os fãs com numerosas perguntas sem resposta e muita frustração.
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Furor online versus finanças
Assim, como costuma acontecer nos dias de hoje, muitos foram protestar online, exigindo que a Netflix volte atrás em sua decisão. A conta do Twitter #Save1899 já reúne 28,3 mil seguidores, e em questão de horas uma petição na Change.org por uma temporada 2 conquistou mais de 20 mil assinaturas.
Porém é improvável que a Netflix – que não tem como hábito explicar suas decisões criativas ou comerciais – vá satisfazer o desejo dos admiradores de 1899. Até porque a razão para o cancelamento provavelmente é tão banal quanto a séria é complexa: ela não preencheu as expectativas da companhia em termos financeiros.
Louvor crítico e adoração dos fãs à parte, as cifras de 1899 foram um fracasso nos termos da Netflix – ou pelo menos não indicaram êxito suficiente para justificar que ela siga adiante. Seja por ter ficado abaixo da audiência da temporada 3 de Dark, seja por não ter atraído grande volume de novos assinantes. E aumentar a clientela é uma meta primária da Netflix.
Plágio também foi um fator?
Cabe lembrar, ainda, que, enquanto Dark – uma produção alemã de baixo orçamento que alcançou enorme sucesso global – foi uma surpresa vinda do nada, as expectativas em torno de 1899 eram gigantescas desde o início, também por causa de seu orçamento muito mais elevado.
Por outro lado, tem havido especulação de que razões mais sinistras estariam por trás do cancelamento: após o lançamento de 1899, a desenhista de quadrinhos brasileira Mary Cagnin foi a público alegando que a série seria um plágio de seu livro ilustrado Black silence, de 2016.
Contudo, praticamente todo filme ou série televisiva enfrenta alegações semelhantes, e as acusações de Cagnin não parecem ter grande validade legal. Fora alguns lugares comuns de ficção, inclusive a tripulação multinacional numa jornada – em Black silence são astronautas perdidos no espaço, em vez de migrantes num vapor – e de uma obsessão com pirâmides, não se constatam grandes semelhanças entre as duas obras.
Coisas da vida
De resto, a queda do número de assinantes nos Estados Unidos e o crescimento internacional desacelerado, combinados à concorrência pesada da Disney+ e da HBO Max, têm forçado a Netflix a se concentrar mais no essencial. Assim, 1899 não é a única vítima dos cortes da empresa.
Resident evil foi encerrada após uma única temporada, Warrior nun só sobreviveu duas. Ambas poderão retornar em algum outro local – a própria Netflix já ressuscitou shows extintos como Arrested development e Gilmore girls. Porém uma horda de adeptos online, em si, não basta para garantir a retomada de uma série.
O que a Netflix aprecia bem mais do que a adoração dos fãs e o louvor dos críticos são lucros. Se, após oito episódios e dois meses online, 1899 não conseguiu convencer a diretoria que valia os gastos, bem... é a vida.
Alemanha e suas séries de TV e streaming
O mercado alemão de séries floresce, e não só com produções de emissoras locais. Gigantes como Sky, Amazon e Netflix apostam na estratégia de oferecer obras alemãs a um público internacional.
Foto: Netflix
"Dark", a primeira série alemã da Netflix
Em dezembro de 2017 estreou a primeira série alemã da Netflix para o mercado mundial. A temporada, de dez episódios, trata dos destinos de quatro famílias no interior da Alemanha: o sumiço de duas crianças desencadeia investigações que remontam até a década de 1950. A segunda temporada estreou em junho de 2019, e a terceira foi confirmada para 2020. Foi dublada e legendada em português brasileiro.
Foto: Netflix
Êxito artístico com "Im Angesicht des Verbrechens"
Muitos consideram "Im Angesicht des Verbrechens" (Diante do crime) a melhor série alemã da década: o épico de dois policiais investigando os círculos da máfia russa em Berlim. Contudo as vertiginosas sequências de cenas, enquadramentos sombrios e experimentos formais do diretor Dominik Graf foram ousados demais para parte do público, e a produção teve baixa audiência em 2010.
Foto: ARD/Julia von Vietinghoff
"Parfum", uma série criminal brutal e surpreendente
Em 2018, o canal alemão ZDFneo exibiu a série criminal Parfum (O Perfume), de seis episódios. Na trama, a brutal morte de uma antiga amiga leva um grupo a se reunir. Características específicas no cadáver fazem os amigos pensarem que somente um deles poderia ter cometido o crime. Fora da Alemanha, a produção foi disponibilizada pela Netflix, incluindo no Brasil, legendada e dublada em português.
Foto: Filmfest München 2018
How to Sell Drugs Online (Fast), tom de comédia para assunto sério
Em “How to Sell Drugs Online (Fast)”, que estreou em junho na Netflix, um estudante de uma pequena cidade da Alemanha, filho de um policial, decide vender drogas pela internet para se reaproximar da ex-namorada e arrasta o melhor amigo para o negócio. A série, em tom de comédia, foi dublada e legendada em português brasileiro e o título traduzido para "Como Vender Drogas Online (Rápido)".
Foto: picture-alliance/dpa/Netflix
"Weissensee": Berlim Oriental dos anos 80
Lançada em 2010, "Weissensee" é uma vitória da televisão alemã ao abordar temas da história recente. Tratando de duas famílias de Berlim Oriental na década de 1980, a produção da TV ARD teve boa audiência, já está caminhando para a quarta temporada e foi vendida para a Itália e a Rússia, entre outros mercados.
Foto: picture-alliance/dpa/B. Pedersen
"Deutschland 83" e mais
"Deutschland 83" foi exibida em 2015 na Alemanha pelo canal privado RTL. Apesar de premiada no exterior, ela teve baixa audiência na TV comercial e, a sequência, “Deutschland 86”, foi disponibilizada apenas na Amazon Prime, em 2018. No Brasil, a série foi transmitida pelo +Globosat, com o título “Deutschland - Espião Novato” e segue disponível no Globoplay. Os autores já prometem “Deutschland 89”.
Foto: picture alliance/dpa/R. Hirschberger
"Cães de Berlim" e o submundo da capital alemã
Produzida pela Netflix, "Dogs of Berlin" (Cães de Berlim) estreou em dezembro de 2018. A trama mergulha na face sombria da capital alemã e tem como protagonistas dois policiais não convencionais: Kurt Grimmer, um ex-neonazista, e Erol Birkan, homossexual e de ascendência turca. A dupla investiga o assassinato do jogador de futebol turco-alemão Orkan Erdem. É dublada e legendada em português.
Foto: Netflix
"You are wanted" na Amazon
Antecipando-se por alguns meses à rival Netflix, a gigante americana do streaming Amazon Prime lançou em março de 2017 sua primeira série alemça, "You are wanted" (Você é procurado), protagonizada por Matthias Schweighöfer. Focando vigilância digital e teorias da conspiração, a série não encontrou aprovação unânime do público e crítica. Ainda assim, sua segunda temporada já está em preparação.
Foto: picture alliance / Stephan Rabold/Amazon/dpa
Clãs de Berlim em "4 Blocks"
A produção do diretor Marvin Kren pode ser considerada um sucesso entre as séries alemãs e entrará em sua segunda temporada. Tratando dos conflitos entre os clãs familiares rivais do bairro berlinense de Neukölln, ela foi lançada em maio de 2017, em seis episódios, pelo canal de TV a cabo TNT Serie. "4 Blocks" recebeu críticas entusiásticas, chegando a ser comparada à americana "Os Sopranos".
Foto: picture-alliance/dpa/Handout/2017 Turner Broadcasting System Europe Limited & Wiedemann & Berg Television GmbH & Co.
Opulência dos anos 20 em "Babylon Berlin"
Série mais cara da TV alemã, "Babylon Berlin", de 2017, exibida pela Sky, é a prova de que os roteiristas e cineastas alemães são especialmente bons ao abordar temas históricos. Com grande minúcia e em imagens opulentas, três cineastas, entre os quais Tom Tykwer, evocaram a Berlim dos anos 1920. A série já foi vendida para diversos países.
Foto: 2017 X Filme/Frédéric Batier
"Das Verschwinden": drama psicológico
As emissoras de direito público da Alemanha também têm se lançado com sucesso no universo das séries. Em outubro de 2017, a ARD apresentou "Das Verschwinden" (O desaparecimento), uma sinistra história passada na Alemanha, dirigida por Hans-Christian Schmid. Como em "Dark", o tema aqui é o sumiço de uma jovem, e o drama psicológico resultante.
Na trilha das rivais Amazon e Sky, a Netflix conseguiu ampliar com "Dark" a sua parcela no mercado alemão: ao lado de seu enorme sucesso global, a plataforma de streaming persegue a estratégia de aproximar-se ainda mais das plateias nacionais encomendando especialmente séries para os mercados específicos.
Foto: Netflix
Mundos obscuros
O suíço Baran bo Odar dirigiu a série "Dark", escrita a quatro mãos com sua esposa, Jantje Friese. Em 2010, ele levara às telas uma história semelhante: também "Das letzte Schweigen" (O silêncio) é um drama familiar em torno de um desaparecimento, que conecta duas diferentes gerações. "Dark", porém, é bem mais sombrio, numa encenação quase sufocante.