Nova tradução no centenário
29 de setembro de 2008Cem anos após sua publicação no Brasil, Memorial de Aires, o último livro do escritor brasileiro Machado de Assis, ganha sua primeira versão para o alemão. O lançamento da editora cult berlinense Friedenauer Presse lembra outra data centenária: a morte de Machado, em 29 de setembro de 1908.
Em alemão, a obra se chamará Tagebuch des Abschieds (Diário da despedida). O tradutor é o professor da Universidade Livre de Berlim Berthold Zilly, responsável por verter para a língua de Goethe outros clássicos da literatura brasileira, como Triste Fim de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, e Os Sertões, de Euclides da Cunha.
A idéia de apresentar o último livro de Machado aos leitores alemães foi da editora Katharina Wagenbach-Wolff, que se declara uma fã de longa data do autor brasileiro. Ela conta que estava em Paris quando teve a atenção despertada para Memorial de Aires por um artigo no jornal Le Monde. "Pensei que seria uma boa idéia lançar o livro em alemão no centenário da morte."
Tradução difícil
A intenção de Wagenbach-Wolff era que o livro estivesse nas livrarias até esta segunda-feira (29/09). Mas a tradução está atrasada, e Zilly prevê que a obra seja lançada apenas em dezembro.
Um dos motivos para o atraso está no próprio livro ou, mais especificamente, nas dificuldades para traduzir Machado. "Traduzir é sempre complicado, e Machado de Assis em especial. Ele é notório pelas suas expressões e frases ambíguas", diz Zilly.
"Machado reiteradamente usa palavras fora do seu sentido convencional. Praticamente a cada duas frases há uma dificuldade semelhante. Não se sabe também cem por cento o que ele quer dizer, há várias interpretações. E mesmo quando se sabe, manter essa anticonvencionalidade em alemão também não é fácil", afirma.
"Talvez isso surpreenda alguns leitores brasileiros, mas para mim foi mais difícil traduzir Machado do que Euclides", diz Zilly.
Recepção na Alemanha
Machado tem grande parte de sua obra traduzida para o alemão, incluindo os clássicos Memórias Póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro, que saíram nas tradicionais edições de capa dura da editora suíça Manesse. Ao lado de Esaú e Jacó, Memorial de Aires era um dos poucos textos importantes da segunda fase ainda não traduzidos.
A disponibilidade, porém, não tornou Machado conhecido do grande público. "É um caso lamentável de ignorância, devido talvez à situação meio marginalizada do Brasil e da língua portuguesa no início do século passado", avalia Zilly. "Se ele escrevesse em francês, inglês ou alemão, certamente teria obtido o Prêmio Nobel."
História de dois casais
Último livro de Machado de Assis, Memorial de Aires é narrado em forma de diário pelo conselheiro Aires, um diplomata aposentado que havia um ano regressara ao Rio de Janeiro.
Ao seu diário, Aires conta a história dos casais Tristão e Fidélia e Aguiar e Dona Carmo. Estes, já idosos, têm como "única ferida" a ausência de filhos, e exercem seu amor paternal adotando a jovem viúva Fidélia e, mais tarde, Tristão, um afilhado que na sua infância já conhecera o amor do casal Aguiar e que, após muitos anos em Portugal sem dar notícias, reaparece no Rio de Janeiro homem feito.
É grande a alegria dos Aguiar com a possibilidade de manter, perto de si, o jovem casal que eles consideram como filhos. Mas Tristão tem ambições políticas em Portugal e, se estende sua estada no Rio de Janeiro, é pelo seu interesse em Fidélia. Ao final, os dois "filhos adotivos" do casal Aguiar se apaixonam e vão morar em Lisboa, deixando os velhos sozinhos.
Solidão e velhice
Com seu típico estilo de tiradas filosóficas e espirituosas, Machado explora a oposição entre juventude e velhice, entre vivos e mortos, entre amor e interesse pessoal para, à semelhança de outras obras de sua segunda fase, construir uma história subjetiva, na qual as intenções nem sempre são o que aparentam ser.
De certo, há a solidão e a velhice do casal Aguiar, por muitos comparados ao próprio Machado e sua esposa Carolina, morta alguns anos antes. Também eles não tiveram filhos. É famoso o trecho final do livro:
"Ao fundo, à entrada do saguão, dei com os dous velhos sentados, olhando um para o outro. Aguiar estava encostado ao portal direito, com as mãos sobre os joelhos. D. Carmo, à esquerda, tinha os braços cruzados à cinta. Hesitei entre ir adiante ou desandar o caminho; continuei parado alguns segundos até que recuei pé ante pé. Ao transpor a porta para a rua, vi-lhes no rosto e na atitude uma expressão a que não acho nome certo ou claro; digo o que me pareceu. Queriam ser risonhos e mal se podiam consolar. Consolava-os a saudade de si mesmos."