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CriminalidadeBrasil

"No Rio parte da polícia é sócia do crime organizado"

6 de outubro de 2023

Autor do livro "Milicianos" Rafael Soares explica a atual guerra entre o narcotráfico e as milícias cariocas, pano de fundo do homicídio dos três médicos no início de outubro.

Policiais apreendem drogas no Complexo da Maré, Rio de Janeiro
Apreensão de drogas no Complexo da Maré: relação entre polícia e criminosos no Rio de Janeiro é complexaFoto: Buda Mendes/Getty Images

Ao longo de dez anos de carreira, sempre cobrindo segurança pública no Rio de Janeiro, o jornalista Rafael Soares perdeu as contas das histórias que sabe de policiais que passaram a trabalhar para o crime. Sim, como ele mesmo costuma explicar, é gente que trabalhava para o Estado, foi equipada pelo Estado, treinada pelo Estado – mas mudou de lado.

Ele percebeu uma coisa em comum entre quem ascendia na carreira criminosa: eram os que, enquanto policiais, tinham colecionado gratificações, condecorações, promoções e reconhecimentos por matar. Esse é o pano de fundo do livro Milicianos – Como agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele, que está em pré-venda e deve ser lançado nas próximas semanas.

No início de outubro a execução – ao que tudo indica, por engano – de três médicos, que estavam num quiosque carioca à beira-mar, deixou em evidência mais uma vez a violência do crime organizado do Rio. "Está ocorrendo uma guerra interna, com a maior milícia do Rio fragmentada e o tráfico tentando se aproveitar dessa fragilidade atual. Este momento que estamos vivendo é o pano de fundo da morte dos médicos."

Soares lembra que este cenário criminoso não é exclusividade do Rio de Janeiro, "mas aqui temos uma realidade particular, uma relação muito mais profunda entre policiais e o crime".

DW Brasil: Logo que o assassinato dos médicos veio a público, houve quem suspeitasse de ação planejada por milicianos, hipótese esta que acabou depois descartada. Faz sentido pensar em milicianos neste caso?

Rafael Soares: Quadrilhas formadas por policiais que se especializaram em matar e viraram matadores de aluguel existem no Rio há mais de 40 anos, usando técnicas aprendidas dentro da polícia, matam de uma maneira específica porque entendem como a polícia vai investigar esses crimes, então fazem de modo a proteger o assassino. O crime [desta semana] tem modus operandi completamente diferente. Escolheram um local na orla da Barra da Tijuca, cheio de testemunhas. Utilizaram uma pistola de 9 milímetros, arma com menor poder de destruição. E tem um ponto que também não batia: o monitoramento das vítimas. Geralmente os crimes cometidos por policiais têm trabalho de mais de alguns meses para o monitoramento das rotinas. No caso de Marielle [Franco, vereadora assassinada em 2018], foi assim. Isso não ocorreu no caso dos médicos. Eles tinham acabado de chegar ao Rio, não tinham construído hábitos na cidade.

A hipótese mais provável é de que um deles tenha sido confundido com um miliciano…

Hoje [sexta-feira, 06/10] ficou mais fácil falar, porque as investigações avançaram e ficou provado de fato que não era uma quadrilha de policiais que cometeu o crime, mas que tem a ver com uma guerra entre tráfico e milícia na zona oeste. Milícias foram, são grupos criminosos formados por policiais, na maior parte das vezes, e integrados por policiais, mas não só. As milícias cresceram muito de tamanho e a maior milícia do Rio [antes conhecida como Liga da Justiça] tem um civil ex-traficante como atual chefe.

As milícias foram se transformando nas últimas décadas, principalmente com a prisão ou morte de policiais que estavam no topo. Elas se expandiram e acabaram, principalmente na região metropolitana do Rio, ocupando uma área maior do que a dominada pela maior facção de tráfico do Rio, o Comando Vermelho. Só que em 2021, o então chefe da maior milícia do Rio foi morto pela polícia numa operação. E a partir dessa morte a situação da milícia no Rio muda. Antes existia uma coesão entre grupos, vários unidos por interesses, várias milícias trabalhando juntas. Com a morte desse líder, começaram disputas internas. Está ocorrendo uma guerra interna, com a maior milícia do Rio fragmentada e o tráfico tentando se aproveitar dessa fragilidade atual. Este momento que estamos vivendo é o pano de fundo da morte dos médicos.

Uma pergunta a partir do subtítulo de seu livro: por que agentes formados para combater o crime passaram a matar a serviço dele?

Ao tentar entender a carreira dos policiais que acabaram virando matadores de aluguel a serviço de criminosos, comecei a perceber que que a maior parte desses caras havia sido premiadíssima enquanto policiais. O Ronnie Lessa [ex-policial que teria atirado contra a vereadora Marielle] era um exemplo: foi uma máquina de condecorações, promoções por bravura. Ele era elogiado justamente porque matava. O fato de ser um policial que matava fazia dele, aos olhos da corporação, um herói. Ele foi estimulado a matar ao longo de quase 20 anos em que fez parte da PM. Depois, pegou tudo o que o Estado lhe ensinou e vendeu esse conhecimento para quem podia pagar melhor: o crime. No livro eu conto a história de vários outros.

Este problema é uma exclusividade do Rio de Janeiro?

Violência e corrupção policiais, policiais trabalhando para o crime, isso obviamente não são exclusividades do Rio, nem do Brasil. Mas aqui temos uma realidade particular, uma relação muito mais profunda entre policiais e o crime. Aqui no Rio a gente não vê só a polícia fechando os olhos para o crime, recebendo propina para não combater o crime. Aqui tem um outro nível de relação: parte da polícia é sócia do crime organizado. É um nível de relação um pouco mais profundo. Em meu livro quis entender a presença de policiais em vários negócios ilegais: milícias, facções do tráfico, grupos de tráfico de armas, quadrilhas de contraventores, matadores de aluguel… E em todos esses segmentos existem policiais não só recebendo dinheiro para não combater, mas trabalhando ativamente como players.

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