Norte-coreanos deixam país pela 1ª vez para lutar na Ucrânia
Julian Ryall
14 de novembro de 2024
Soldados enviados por Pyongyang para se juntar a tropas russas são confrontados com realidade diferente da propagada por Kim Jong-un. Para analistas, contato com ideias estrangeiras pode gerar dúvidas sobre regime.
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A decisão da Coreia do Norte de enviar tropas para lutar ao lado da Rússia na guerra na Ucrânia reforça a parceria de Pyongyang com Moscou. No entanto, milhares de soldados norte-coreanos deixarão o país pela primeira vez, rompendo o isolamento que vivem e entrarão em contato com ideias estrangeiras e diferentes modos de vida.
Embora seja difícil confirmar os números exatos, setores de inteligência do Ocidente afirmam que mais de 10.000 soldados norte-coreanos já foram enviados para Kursk, na fronteira russa com a Ucrânia.
Ainda que estejam viajando para uma zona de guerra, eles provavelmente poderão observar a relativa prosperidade de cidades russas durante sua longa jornada entre a fronteira oriental da Rússia, na Ásia, e a fronteira ocidental, na Europa. Também é provável que recebam melhores alimentos e salários do que em sua terra natal.
"Muitos desses soldados são apenas humildes garotos do interior ou oficiais subalternos que verão o mundo além das fronteiras da Coreia do Norte pela primeira vez. Isso certamente os fará entender que seu país é isolado e extremamente pobre", avalia Andrei Lankov, professor russo de história e relações internacionais da Universidade Kookmin, de Seul, na Coreia do Sul.
Lankov também afirma que "mesmo que muito do que eles irão ver esteja nas linhas de frente, vilarejos danificados por batalhas e assim por diante, eles ainda poderão observar o interior da Rússia antes de chegarem lá. E, inevitavelmente, começarão a se perguntar por que seu país não é tão desenvolvido quanto a Rússia".
Retorno com restrições
Aqueles que sobreviverem à guerra voltarão para casa com uma visão de mundo que contradiz a propaganda do regime, que insiste que a Coreia do Norte é uma das nações mais felizes e avançadas do mundo. Analistas, no entanto, acreditam que esses soldados evitarão expressar críticas, mesmo para seus familiares e amigos. A polícia secreta da Coreia do Norte é famosa por tratar questionamentos ao regime ou à sociedade como traição, aplicando punições severas.
"Esses soldados cresceram sabendo o que não podem dizer, e não serão heróis suicidas, falando abertamente sobre suas experiências. Eles também se beneficiarão da aura de heróis da nação, e Kim Jong-un [líder norte-coreano] os recompensará generosamente", analisa Lankov.
"Haverá um impacto sobre esses soldados devido ao que eles veem e fazem na Rússia, mas não podemos esperar que isso seja politicamente significativo, ao menos não nas próximas décadas", complementa.
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Mais repressão à influência estrangeira
Por várias décadas, o governo da Coreia do Norte trabalhou para isolar seu povo de qualquer influência estrangeira. E essa campanha ficou ainda mais forte nos últimos anos, com as autoridades reprimindo duramente qualquer pessoa flagrada com filmes ou músicas estrangeiras e aplicando longas penas de prisão a cidadãos que tentam fugir para a China. Roupas ou penteados também são usados como pretexto para prender pessoas no país.
Na Rússia, porém, os oficiais não conseguirão manter os soldados norte-coreanos completamente protegidos da influência estrangeira, diz Dan Pinkston, professor de relações internacionais no campus de Seul da Universidade de Troy.
"Há relatos de que os soldados norte-coreanas foram transportadas de avião das instalações de treinamento, no extremo oriente russo, e é possível que tenham sido transportados assim simplesmente para não ver as cidades russas dos trens enquanto atravessavam o país", afirma Pinkston, acrescentando que é muito provável que seja a primeira vez que muitos deles tenham andado de avião.
"Eles podem perceber muito rapidamente o atraso da Coreia do Norte, embora eu imagine que os oficiais tentarão manter os homens separados da população o máximo possível para limitar suas interações", complementa.
Capitães serão generais
Considerando o histórico do regime em relação a cidadãos que já estiveram no exterior, inclusive trabalhadores enviados para canteiros de obras e campos de exploração madeireira na Rússia ou em restaurantes e fábricas na China, também é provável que, ao retornar à Coreia do Norte, os soldados passem por um período de avaliação e reeducação.
De acordo com Lankov, ao retornar, os soldados devem ser "monitorados de perto". "Isso pode ser mais difícil enquanto eles estiverem na Rússia, vivenciando as condições do campo de batalha, mas aqueles que voltarem estarão cientes de que, se falarem sobre o que viram, isso pode ser perigoso para eles."
No entanto, Lankov acredita que a experiência de vida fora da Coreia do Norte e "a prosperidade evidente" de outros países tende a se perpetuar dentro deles. "Não espero que eles iniciem uma revolução imediatamente, é claro, mas os capitães que agora servem na Ucrânia se tornarão generais em alguns anos e continuarão a ter seus questionamentos. Com o tempo, essas dúvidas sobre o sistema norte-coreano podem se tornar significativas", conclui.
Guerra da Coreia, 70 anos depois
Combates na península coreana duraram mais de três anos. De um lado, o sul, apoiado pela ONU. Do outro, o norte, reforçado por China e URSS. Guerra acabou em 1953, com milhões de mortos e a divisão das Coreias cimentada.
Foto: AP
Fronteira da Guerra Fria
Em 27 de julho de 1950, as tropas da comunista Coreia do Norte atravessam o Paralelo 38, iniciando uma verdadeira campanha de ocupação. Em poucos dias, praticamente todo o país estava sob seu controle. É o início de uma guerra que durará 37 meses, custando 4,5 milhões de vidas humanas, segundo certas estimativas.
Foto: AFP/Getty Images
Antecedentes
Depois de ser ocupada pelo Japão de 1910 a 1945, a Coreia estava dividida desde o fim da Segunda Guerra Mundial. O território acima do 38º paralelo norte ficou sob controle soviético, o do sul, na mão dos EUA. Em agosto de 1948, Seul proclama a República da Coreia. Em reação, o general Kim Il-sung cria no norte a República Popular Democrática da Coreia, em 9 de setembro do mesmo ano.
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Reforço da ONU
Seguindo o avanço dos norte-coreanos sobre o Paralelo 38, a partir de julho de 1950 as Nações Unidas decidem dar apoio militar à Coreia do Sul, por pressão dos EUA. São enviados para a península 40 mil soldados de mais de 20 países, entre os quais 36 mil norte-americanos. A sorte parece ter virado: logo os Aliados conseguem ocupar quase todo o país.
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Codinome Operação Chromite
Em 15 de setembro de 1950, tropas ocidentais sob o comando do general Douglas MacArthur desembarcam perto da cidade portuária de Incheon, no sudoeste, capturando uma base central de suporte do Norte. Pouco depois, Seul está novamente na mão dos Aliados, que em outubro também ocupam Pyongyang. O fim da guerra parece próximo. Mas aí a China envia tropas de apoio aos norte-coreanos.
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Ajuda de Mao
Em meados de outubro iniciava-se a intervenção chinesa. De início, a ajuda parte apenas de unidades de pequeno porte. No final do mês ocorre a primeira mobilização em grande escala na Coreia do Norte do "exército de voluntários" de Mao. Em 5 de dezembro, Pyongyang – única capital comunista ocupada por tropas ocidentais durante a Guerra Fria – está novamente nas mãos de norte-coreanos e chineses.
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Pró e contra a bomba atômica
Em janeiro de 1951 começa uma grande ofensiva da Coreia do Norte, com apoio chinês. Cerca de 400 mil chineses e 100 mil norte-coreanos forçam as tropas aliadas a recuar fortemente. Em abril, o general MacArthur é destituído de seu posto, depois que o presidente Harry Truman lhe ordenara usar bombas atômicas contra a China. Seu sucessor é o general Matthew B. Ridgway.
Foto: picture-alliance/dpa
Guerra de exaustão
Em meados de 1951, mais ou menos na altura da linha de demarcação que separava o Norte e o Sul antes da guerra, as forças oponentes chegam a um impasse. A partir daí, começa uma encarniçada guerra de exaustão, que durará até o fim das operações de combate, dois anos mais tarde – embora as negociações de paz já tivessem sido iniciadas em julho de 1951.
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Batalha de ideologias
O conflito entre as Coreias é considerado a primeira "guerra por procuração" entre o Ocidente capitalista e o Oriente comunista. A maior parte dos soldados lutando nas tropas da ONU vinha dos Estados Unidos. No lado oposto, os norte-coreanos contaram com o reforço de centenas de milhares de chineses e russos.
Foto: AFP/Getty Images
Coreia do Norte em ruínas
Desde o início, foi uma guerra de ataques aéreos e bombardeios. Durante os três anos de combates, as forças aéreas das Nações Unidas realizaram mais de 1 milhão de operações. Ao todo, os americanos lançaram cerca de 450 mil toneladas de bombas, inclusive de napalm, sobre a Coreia do Norte. A destruição foi extensa: ao fim da guerra, quase todas grandes cidades estavam arrasadas.
Foto: AFP/Getty Images
Estimativas conflitantes
Quando, em 1953, as tropas aliadas se retiram da península coreana, o saldo é de milhões de mortos. Os dados sobre o número de soldados caídos são conflitantes. Calcula-se que morreram cerca de meio milhão de militares coreanos, assim como 400 mil chineses. Os Aliados registram 40 mil vítimas, 90% delas americanos.
Foto: Keystone/Getty Images
Troca de prisioneiros
Ainda durante os combates, de meados de maio a início de abril de 1953, ocorreu a primeira troca de presos entre os dois lados. Até o fim do ano, mais detentos seriam repatriados. A ONU devolveu mais de 75 mil norte-coreanos e quase 6.700 chineses. O outro lado soltou 13.500 pessoas, entre as quais 8.300 sul-coreanos e 3.700 soldados dos EUA.
Foto: Keystone/Getty Images
Cessar-fogo
Após mais de dois anos, as negociações de cessar-fogo iniciadas em 10 de julho de 1951 culminam no Armistício de Panmunjom. A divisão da península está sedimentada: o 38º paralelo norte é definido com fronteira entre as Coreias do Norte e do Sul. Mas como um tratado de paz nunca foi assinado, do ponto de vista do direito internacional os dois países se encontram até hoje em estado de guerra.
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Terra de ninguém
O idílio na cidade fronteiriça de Panmunjom é enganoso. Até hoje, a fronteira ao longo do Paralelo 38 é a mais rigorosamente vigiada do mundo. Ao longo da linha estipulada no acordo de armistício de 1953, o Norte e o Sul são separados por uma zona desmilitarizada de cerca de 250 quilômetros de extensão e 4 quilômetros de largura. Aqui, soldados de ambos os lados se defrontam diariamente.