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Literatura

Notas pessoais de um escritor após uma feira do livro

Ricardo Domeneck
27 de março de 2018

Depois de uma passagem pela Feira do Livro de Leipzig, o colunista Ricardo Domeneck comenta os prazeres e desprazeres de visitar eventos do mundo editorial – importantes, porém cansativos.

Jovens fantasiados de personagens na entrada da Feira do Livro de Leipzig
Jovens fantasiados de personagens na entrada da Feira do Livro de LeipzigFoto: picture-alliance/dpa/J. Kalaene

Entre os últimos dias 15 e 18 de março estive pela terceira vez na Feira do Livro de Leipzig. Trata-se de um evento bastante antigo e de longa tradição, realizado, de uma forma ou de outra, desde o século 17. É o segundo maior evento editorial da Alemanha, depois da Feira do Livro de Frankfurt.

Este ano, 197 mil visitantes e 2.635 expositores passaram pelos pavilhões em Leipzig, na Saxônia, entrando pelo imponente arco de vidro inaugurado em 1991 e projetado pelo arquiteto britânico Ian Ritchie em colaboração com o grupo hamburguês Gerkan, Marg & sócios.

Estive por lá pela primeira vez para o lançamento de uma antologia de poetas germânicos e lusófonos em 2009 e retornei em 2013 para o lançamento da minha própria antologia de poemas, com tradução de Odile Kennel, lançada pela Verlagshaus Berlin.

Desta vez, o convite veio da Embaixada de Portugal e do Instituto Camões, que trazia uma comitiva de escritores da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa para leituras: os portugueses Hélia Correia (Prêmio Camões em 2015), Almeida Faria, Rui Cardoso Martins, Isabela Figueiredo, Marta Chaves e Miguel-Manso; o brasileiro Bernardo Carvalho; os cabo-verdianos Arménio Vieira (Prémio Camões em 2009) e Filinto Elísio; assim como o angolano Kalaf Epalanga. Houve leituras no Fórum dos Tradutores e no estande da Embaixada de Portugal.

Como todo ano desde o início deste século, alguns prêmios importantes foram entregues a escritores. O Prêmio da Feira do Livro de Leipzig foi, na categoria "Belletristik”, para Esther Kinsky, pelo romance Hain, editado pela Suhrkamp; na categoria Ensaio, para Karl Schlögel, por Das sowjetische Jahrhundert. Archäologie einer untergegangenen Welt [O século soviético: arqueologia de um mundo desaparecido]; e na categoria Tradução, para Juri Durkot e Sabine Stöhr pela tradução do romance Internat [Internato], do ucraniano Serhiy Zhadan.

O Prêmio para Compreensão Mútua na Europa foi para a jornalista norueguesa Åsne Seierstad, pelo livro Einer von uns. Die Geschichte eines Massenmörders [Um de nós: história de um genocida], sobre o terrorista de extrema-direita Anders Breivik, autor dos atentados de 22 de julho de 2011 na Noruega, com um carro-bomba em Oslo que deixou oito mortos e o massacre de 69 jovens militantes do Partido dos Trabalhadores norueguês na ilha de Utøya.

Não tenho dúvidas de que seja importante ou ao menos inevitável participar de eventos como este. Mas é muito cansativo. Desconfortável. E em muitos aspectos até ligeiramente traumatizante para um escritor.

Claro, talvez seja maravilhoso estar sob os holofotes, para um grande mágico das vendas de páginas aos milhares. Mas para os que estão acostumados a certa calma, a outra velocidade de apreensão das coisas e das palavras, a sensação é de que a palavra "feira" é realmente a mais adequada. Como naquelas feiras de rua em Pinheiros, onde o vendedor de pepinos tenta gritar mais alto do que o vendedor de cebolas, enquanto a máquina de garapa mói a cana-de-açúcar, e os vizinhos brigam na tenda do pastel.

Os estandes são abertos. Durante as leituras, por exemplo, no Fórum de Tradutores, o estande da França logo em frente havia tido a ideia estapafúrdia de convidar seus visitantes a rodar uma roleta com palavras em francês, uma espécie de Roletrando fazendo seu trac-trac-trac, enquanto poetas e romancistas tentavam pronunciar cuidadosos suas palavrinhas suadas.

Nos corredores e cafés improvisados pelos pavilhões, adolescentes suados perambulavam vestidos como personagens dos livros de Harry Potter, Senhor dos Anéis, e só orixás sabem de que outras séries de livros de fantasia. Percebi que estava mal informado sobre os últimos sucessos do gênero. Só me perguntava: "Que criatura azul é essa?”

Não que eu tenha qualquer coisa contra livros de fantasia ou ficção científica. Vida longa às obras de Ursula K. Le Guin e Stanislaw Lem, de quem, aliás, hoje é aniversário do óbito. Mas havia uns segundos em que eu me sentia no meio de uma vertigem e me perguntava se estava em um manicômio. É que sempre me atinge algo de tristeza ao ver estes jovens tão atolados em mundos fictícios, por sentir neles um desejo tão forte de não ser quem são, não estar onde estão, não viver no mundo e corpo que são seus. Não me parece sempre uma necessidade saudável de fantasia.

Enfim, chegava ao hotel estafado tanto física quanto psicologicamente. O prazer que restava era o de encontrar pelos corredores, de surpresa, com colegas do nosso trabalho quieto e solitário de escrita, como a suíça Nora Gomringer, o ucraniano Andriy Lyubka, o tcheco Ondřej Buddeus, ou poder ler com meu editor e amigo Jo Frank, ainda que a roleta do estande francês estivesse fazendo meu sangue borbulhar de raiva.

Sim, eu sei. Esses não são realmente eventos literários, mas eventos do mercado editorial. Importantes, incontornáveis. Eu sei. Mas não vejo a hora da próxima leitura em uma sala minúscula com apenas dez ou 20 pessoas realmente interessadas em palavras, e não necessariamente em livros.

Na coluna  Bibliothek, publicada às terças-feiras, o escritor Ricardo Domeneck discute a produção literária em língua alemã, fala sobre livros recentes e antigos, faz recomendações de leitura e, de vez em quando, algumas incursões à relação literária entre o alemão e o português. A coluna Bibliothek sucede o Blog Contra a Capa.

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