Nova CPMF agravaria desigualdade social, dizem economistas
18 de agosto de 2020Há quase um ano, falar em uma "nova CPMF" – a Contribuição Provisória sobre Movimentações Financeiras, que vigorou de 1997 a 2007 – era praticamente um tabu. O então secretário da Receita Federal, Marcos Cintra, acabou demitido por defender a volta do tributo, e o presidente Jair Bolsonaro fez questão de ressaltar na época que a ideia estava fora de cogitação.
Agora, uma "nova CPMF" passou a fazer parte do discurso do ministro da Economia, Paulo Guedes. Embora não tenha sido incluído na primeira parte da reforma tributária enviada ao Congresso pelo Executivo em julho, a expectativa é que o tributo seja proposto numa fase posterior.
Até o momento pouco se sabe sobre a proposta, apenas que seria um imposto de 0,20% sobre transações financeiras eletrônicas – quando extinta, a antiga CPMF era de 0,38% –, o que incluiria, por exemplo, a compra de um produto em um site ou uma transferência bancária. Não está claro se a cobrança se daria nas duas pontas do processo.
A intenção do governo é arrecadar 120 bilhões de reais para desonerar ao menos parte folha de pagamentos e ajudar a financiar o Renda Brasil, proposta de programa de renda mínima permanente do governo federal. O discurso tem sido o de que "se todos pagam, todos pagam menos". Se esse montante fosse atingido, seria a quarta maior fonte de receita do governo, atrás do imposto de renda, da receita previdenciária e da Cofins.
Apesar do discurso oficial de redução de tributação para todos, tributaristas e economistas ouvidos pela DW Brasil argumentam que este é um tipo de imposto que agrava a desigualdade social, além de criar distorções na economia e desincentivar o uso de tecnologias para pagamentos. Suas vantagens são a facilidade de arrecadação e a dificuldade de sonegá-lo.
"Nova CPMF" ou não
Diante da resistência da volta da CPMF, Guedes já declarou ser "maldade ou ignorância" comparar o novo tributo à antiga tributação. "Por enquanto temos só o que foi dito, mas o que já foi dito é que não incidiria só sobre transações, mas sobre pagamentos, e se todas essas transações estariam inclusas, só o dinheiro vivo estaria livre da [nova] CPMF, o que na verdade não tem nada de novo", avalia Juliana Damasceno, pesquisadora da área de Economia Aplicada do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (Ibre-FGV).
"A primeira vez que ouvi Guedes falando sobre transações digitais, não achei tão estapafúrdio, mas mesmo nisso há diferenças, uma coisa é tributar o serviço digital, o que você pode fazer com o IVA [Imposto sobre Valor Agregado]", diz Rachel Sá, economista da XP Investimentos, em referência à tributação de empresas como Netflix e Facebook. "Mas quando começaram a ventilar as primeiras ideias sobre o tributo, falando que ia ser um imposto sobre transação digital, ou seja, se você comprar qualquer coisa online você vai pagar, aí me parece muito mais uma CPMF".
Para o economista, advogado tributarista e consultor do Banco Mundial Eduardo Fleury, apesar de o governo dizer que não se trata de uma nova CPMF, o tributo deve incidir também sobre transferências feitas digitalmente. "Não existe outra base, outra coisa que eles possam achar que vão tributar 0,2% e vão conseguir 120 bilhões de reais".
Mesmo assim, para Fleury, a conta do governo não fecha. Segundo ele, para compensar o total que se arrecada sobre folha hoje, 250 bilhões de reais ao ano, seria necessária uma CPMF de 1%, percentual que pode variar a depender da quantidade de isenções. Para desonerar metade da folha – ventila-se que o governo queira isentar apenas salários mais baixos – a alíquota seria, portanto, de 0,5%, nas contas de Fleury. "Já seria uma alíquota bastante alta. A desoneração pode ser positiva? Pode, mas a custo da CPMF".
Segundo Sá, no ano em que a CPMF mais arrecadou, o montante, já atualizado pela inflação, foi de 72,5 bilhões de reais. "Claro que estamos falando de 15 anos atrás, não tenho dúvidas de que hoje temos mais transações, mas era uma alíquota de 0,38%, e mesmo se você pensar que as transações tenham dobrado, 145 bilhões de reais não cobre tudo o que o governo falou que quer cobrir".
Para diversos tributaristas e economistas este ainda é um cálculo difícil de se fazer, já que não há maior detalhamento da proposta. De toda forma, há questionamento da ideia de desonerar a folha como forma de incentivar a contratação, proposta já adotada durante o governo Dilma Rousseff e considerada sem efeito sobre a empregabilidade.
"Temos o exemplo do Chile, onde não teve aumento de emprego, mas de salários, e aqui no governo Dilma foi o mesmo", diz Fleury.
Já Damasceno teme que a recriação do tributo sirva como "bala de prata" para o ajuste fiscal e tire o foco da reforma tributária.
Distorções e desigualdade social
A CPMF é considerada um tipo de imposto ruim por ser regressivo. Em geral, chama-se de regressivos impostos que não são proporcionais à renda, principalmente os que incidem sobre consumo, porque os mais pobres gastam uma proporção relativamente maior da sua renda nisso.
Segundo o ministro da economia, contudo, o imposto não prejudicaria os mais pobres, já que são os ricos que mais fazem transações digitais, e seria uma forma de evitar sonegação. "Quando há uma afirmação como essa, parece que não vivemos num país onde os mais pobres parcelam uma geladeira, um sofá; isso é uma transação financeira", afirma Damasceno.
Ao mesmo tempo, a pesquisadora da FGV acredita que aqueles que têm mais dinheiro são os que têm maior capacidade de burlar o sistema, por exemplo, usando criptomoedas ou possuindo conta no exterior. "Tem relatórios da Receita Federal sobre sonegação da CPMF no passado, quando as instituições financeiras estavam permitindo que dinheiro de clientes VIPs [de altíssima renda] transacionasse por distribuidoras de valor e assim evitavam a cobrança do tributo".
Para Fleury, com a taxa básica de juros Selic na mínima histórica, a 2%, a alíquota de 0,2% cobrada seria proporcionalmente alta, o que traria outro efeito colateral: a elevação do custo do dinheiro. Ele ainda alerta para uma possível verticalização da economia, a depender da alíquota, especialmente em setores que já trabalham com uma margem pequena de lucro, como o supermercadista.
Além disso, segundo os economistas, por ser considerado ineficiente, nenhum país desenvolvido adota um imposto sobre transações financeiras desse tipo, que hoje vigora em poucos lugares, como é o caso da Venezuela.
Aprovação difícil no Congresso
De toda forma, não seria fácil aprovar o tributo. Uma pesquisa da XP Investimentos que ouviu 146 deputados, entre 20 e 31 de julho, revelou que a criação de um imposto sobre transações financeiras tem apoio de 20% dos parlamentares.
A proporção dos que aprovariam a medida sobe para 32% se os recursos forem usados para a desoneração da folha ou para o benefício do Renda Brasil. No entanto, pouco mais da metade dos deputados que não são de oposição avaliam que o Renda Brasil deveria ser financiado pelos recursos de outros programas sociais que seriam encerrados. Outros 16% avaliam que as despesas do programa de renda mínima deveriam ser excluídas do teto de gastos.
"O Paulo Guedes tem a ideia de resolver dois problemas: o primeiro é desonerar a folha até um salário e meio, e tentar entusiasmar a contratar pessoas de baixa renda. Depois, arranjar dinheiro para pagar a renda mínima, que é uma coisa que se descobriu eficaz – o auxílio emergencial casou uma redistribuição de renda jamais vista neste país – e há uma pressão para que esse benefício seja mantido", avalia Fleury.
"E ainda sobraria uma graninha para aquela promessa de campanha do Bolsonaro, de isentar pessoas físicas até a faixa de 4 mil reais ou 5 mil reais mensais de renda. O Guedes tenta mexer com esse xadrez para conseguir aprovação", acrescenta o advogado tributarista.