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Nova Orleans renasce, mas com a alma arranhada

Richard Walker, de Nova Orleans (mp)28 de agosto de 2015

Dez anos após a passagem do furacão Katrina, comunidade negra se sente excluída do chamado "renascimento" da cidade, num processo de gentrificação que estaria, aos poucos, acabando com a diversidade que a tornou famosa.

Foto: DW/R. Walker

Nova Orleans dez anos após o Katrina

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É início da noite em Nova Orleans, e uma pequena multidão se encontra onde, há dez anos, o dique se rompeu e inundou o bairro de Lower Ninth Ward. Para os moradores, o local é o "marco zero".

O sol ainda bate forte, e as pessoas se protegem à sombra de um toldo instalado apenas para a ocasião. Em alguns instantes, uma placa será inaugurada em alusão ao acontecimento que mudou as suas vidas para sempre.

No carnaval, Al Johnson sobe em um pequeno palco usando um terno azul claro e uma coroa dourada brilhante. Ele canta uma canção que fala da casa que ele perdeu naquele dia, a cinco quadras dali:

"2349 Tennessee Street... I loved it and it loved me.The home I loved is not there anymore. That's why I'm calling it, I'm naming it, Lower Ninth Ward Blues."

Os discursos ali entoam um refrão comum. Na verdade, não só a casa de Al Johnson, mas residências de um incontável número de pessoas não foram destruídas pelo furacão. Mas sim por uma falha humana: o rompimento de diques construídos por pessoas que lhes garantiram que ali é seguro.

Mas as falhas humanas não terminam somente na "aparente fragilidade" dos diques. Isso é o que revolta muitos que estão nesse encontro e outros que não estão presentes. Robert Richardson mostra uma placa: "Nossas raízes aqui são profundas." Ele está certo. Sua família se mudou para Lower Nine em 1953, assim como fizeram outros tantos trabalhadores negros após a guerra.

As raízes de Robert não foram arrancadas pela inundação, mas pela longa batalha travada após o furacão Katrina. "Foi uma luta. Eles queriam colocar tudo abaixo. Simplesmente limpar toda a área. Como uma limpeza étnica", afirma.

Al Johnson no encontro com a comunidadeFoto: DW/R. Walker

O caminho de casa

Soa como uma reivindicação estranha, mas, observando os dados, é possível entender por que as pessoas estão revoltadas. Dez anos após a inundação, a população negra do Lower Ninth Ward – um bairro reconhecido como predominantemente composto por afro-americanos – é 60% menor do que era antes do Katrina. Nova Orleans como um todo perdeu dezenas de milhares de moradores negros. Se a cidade está de fato "renascendo", como é dito muitas vezes, tal renascimento os exclui.

A Common Ground Relief foi uma das organizações que se uniram na luta, mobilizando milhares de voluntários para ajudar as pessoas a resgatar o que sobrou de suas casas destruídas. A maioria dos proprietários de residências em Lower Nine não tinha seguro contra inundações, ficando dependentes da ajuda externa.

"Era dito para elas que a comunidade estava protegida por diques federais. As companhias de seguro diziam que, se uma pessoa vive a mais de 300 metros de distância de um dique, não precisa de seguro contra inundações", afirma Thom Peper, diretor da ONG.

Mas eles não estavam seguros, e aqueles que sobreviveram à inundação não foram capazes de voltar, mesmo após anos. Eles se dispersaram aos milhares – muitos para outros bairros, alguns para outras cidades ou Estados.

O governo manifestou a promessa de ajudar no retorno das famílias com o programa Road Home. O plano foi apresentado como o maior esforço público do gênero na história dos Estados Unidos, separando 10 bilhões de dólares para ajudar as pessoas no estado da Louisiana a construírem suas casas.

Bairro tem sido modificado por novas construçõesFoto: DW/R. Walker

Segregação e discriminação

Mas, para os moradores do bairro, o Road Home era cheio de obstáculos. Muitos não tinham mais o título de propriedade das suas casas – que foi passado de geração a geração – reduzindo qualquer possibilidade de reivindicação. Outros estavam completamente perdidos na burocracia. Mas a grande barreira era o mecanismo no qual o Road Home propriamente dito se baseava.

Cashauna Hill, da organização Direito à Moradia da Grande Nova Orleans, assumiu o caso. "Nossos consultores começaram a notar que proprietários de áreas reconhecidamente brancas foram escolhidos para receber o benefício ao invés dos moradores negros das comunidades afro-descendentes – mesmo quando se tratavam de casas construídas na mesma época ou com dimensões semelhantes", conta.

A razão era que o pagamento não era baseado no custo da reconstrução, mas no valor que a residência tinha antes do Katrina. Segundo Hill, além de ser irrelevante para a tarefa em questão, o mecanismo ignora que os valores das propriedades nos Estados Unidos são profundamente afetados pela questão racial.

"Devido ao fato de, na história deste país, a segregação e a discriminação racial serem autorizadas e endossadas pelo governo, as residências em bairros afro-americanos são avaliadas com menor valor do que as casas de brancos em áreas brancas", explica Hill.

Em 2008, a ONG moveu uma ação alegando discriminação racial. Foi bem-sucedida até certo ponto. Em 2011, o governo pagou, acrescentando fundos adicionais de 60 milhões de dólares. Para alguns, isso fez a diferença. Para outros, não foi suficiente ou foi simplesmente chegou tarde demais.

Seis anos se passaram. Aqueles que criaram raízes em outros lugares não suportariam sofrer outra ruptura. Para a ativista Vanessa Gueringer, isso fez parte de um padrão de ações com a seguinte ideia: "Nós não queremos você, nós vamos fazer tudo o que pudermos para dificultar cada passo em direção ao seu retorno."

Moradores relembram a catástrofeFoto: Reuters/C. Barria

Medo e desemprego

O governo anunciou diversas mudanças no programa, que são vistas com bons olhos pela ONG de Hill. Mas, após dez anos, será que mais pessoas vão voltar? Para Gueringer, pouco provável. "As pessoas que não voltaram não voltam mais. Eu tenho muitos amigos que estão bem em outros lugares, onde suas crianças estão em escolas excelentes, e eles têm bons empregos."

Bons empregos que são difíceis de serem encontrados em Nova Orleans, especialmente para afro-americanos. Apenas 48% dos homens negros na cidade estão empregados atualmente. Isso contribui para uma outra etapa da "batalha pós-Katrina": uma crise crônica de acesso a tudo. Cashauna Hill diz que os afro-americanos estão sofrendo os efeitos desta crise no mercado de locação de imóveis da cidade.

O preço do aluguel disparou nos últimos dez anos, parcialmente impulsionado pelo Katrina. Hill diz que quase a metade das residências para aluguel da cidade foi danificada pelas inundações, e várias foram inviabilizadas para o mercado. A cidade destruiu os quatro maiores empreendimentos residenciais públicos na recuperação da catástrofe, varrendo milhares de casas do mapa da cidade.

Ao invés de reconstruir novos conjuntos habitacionais, a cidade deu cupons aos inquilinos para alugarem no mercado privado – onde, segundo a ONG, as pessoas são vítimas não somente das condições do mercado em si, mas também de discriminação.

"É totalmente legal os proprietários das casas discriminarem pessoas que tem o cupom", observa Hill. Dada a estimativa de que 96% dos detentores de cupons são negros, tais casos acabam parecendo uma discriminação endossada pelo Estado.

O medo da supervalorização

Voltando para Lower Ninth Ward, a construção de condomínios no terreno da antiga escola Holy Cross trouxe uma ideia temida à região: a supervalorização. O bairro está ganhando novas instalações urbanas – como áreas esportivas e uma unidade do corpo de bombeiros. No ultimo ano, o bairro viu a construção de infraestruturas essenciais, que faltavam há muito tempo.

Ao mesmo tempo em que os equipamentos são saudados pela comunidade, também paira um sentimento de que aquilo tudo não está sendo construído para ela. O receio é que as construções sirvam somente para atrair novos moradores brancos com poder aquisitivo, votos e vozes que são mais ouvidas do que a dos atuais moradores da região.

Vanessa Gueringer teme que as pessoas que conseguiram retornar tenham que, de uma hora para outra, ser obrigadas a deixar a comunidade pelo aumento do preço do aluguel ou dos impostos. É o medo de que o renascimento de Lower Ninth Ward seja como o renascimento de Nova Orleans, um fenômeno voltado para as vidas de outras pessoas, não para as delas.

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