Nova resistência contra o Talibã nasce no Vale do Panjshir
Rodion Ebbighausen
20 de agosto de 2021
Após 20 anos de presença militar internacional, talibãs assumiram rapidamente o controle do Afeganistão. Único foco de resistência é região famosa por suas esmeraldas, berço do carismático comandante Ahmad Shah Massoud.
Anúncio
O Talibã assumiu o poder no Afeganistão no último fim de semana (14-15/08). No Vale do Panjshir, 150 quilômetros a nordeste de Cabul, forma-se a resistência. Lá se refugiaram dois ex-representantes de primeiro escalão do governo deposto de Ashraf Ghani: o vice-presidente Amrullah Saleh e o ministro da Defesa Bismillah Mohammadi.
Saleh reivindica para si a presidência, já que Ghani fugiu do país, e declarou: "Não vou jamais e sob nenhuma circunstância me curvar ao Talibã terrorista. Jamais vou trair a minha alma e o legado do meu comandante e líder, a lenda Ahmad Shah Massoud".
O Vale do Panjshir ("literalmente vale dos cinco leões") tem representado um papel militar decisivo na história afegã, pois sua localização geográfica o isola quase inteiramente do resto do país. O único acesso é por uma estreita passagem criada pelo rio Panjshir, um gargalo fácil de defender militarmente.
A maior parte dos 150 mil habitantes da região é da etnia tadjique, enquanto os talibãs são majoritariamente pachtos. O vale é, além disso, conhecido por suas esmeraldas, que no passado serviram para financiar a resistência contra os governantes. Antes da tomada do poder pelo Talibã, a província de Panjshir exigia insistentemente mais autonomia do governo central.
O vale preservou sua independência tanto durante a ocupação pela União Soviética (1980-1985) como no primeiro domínio talibã (1996-2001). Ao longo do governo sustentado pela Otan em Cabul de 2001 a 2021, ele era uma das regiões mais seguras de todo o país.
Ahmad Shah Massoud, líder carismático
A história da autonomia do Vale do Panjshir está estreitamente ligada ao carismático Ahmad Shah Massoud, famoso em todo o Afeganistão, que também foi o mentor do vice-presidente deposto Saleh. Nascido no vale em 1953, Ahmad Shah adotou o nome de guerra "Massoud" ("afortunado", "feliz").
Anúncio
Depois de partir para a resistência contra o governo comunista em Cabul e os ocupadores soviéticos, tornou-se um dos mais influentes comandantes mujahidin do país. Uma de suas máximas, que até hoje ainda ilustra numerosos cartazes trazendo seu retrato, era: "Dependência é vergonha".
Em seguida à retirada da União Soviética, em 1989, desencadeou-se a guerra civil no Afeganistão, que o Talibã acabou decidindo em favor próprio. No entanto, com sua Frente Unida (também conhecida como Aliança Norte), Massoud conseguiu manter o controle não só do Vale do Panjshir como de quase todo o nordeste afegão, até a fronteira com a China e o Tadjiquistão, escapando, assim, ao domínio talibã.
Apesar de também defender um islamismo conservador, Massoud tentou criar instituições democráticas e achava que as mulheres deveriam ter um papel igualitário na sociedade. Sua meta era um Afeganistão unido, em que as fronteiras étnicas e religiosas fossem menos visíveis. No entanto, durante os combates por Cabul, a organização Human Rights Watch acusou as tropas de Massoud de violações em massa dos direitos humanos.
Em 2001, apenas dois dias antes dos atentados nos Estados Unidos, o líder foi assassinado: dois terroristas que se apresentaram como repórteres haviam escondido uma bomba em sua câmera, presumivelmente agindo sob ordens do chefe do grupo fundamentalista Al Qaeda, Osama bin Laden, o qual, com a morte de Massoud, desejaria prestar um favor aos talibãs.
O grupo fundamentalista havia dado refúgio à Al Qaeda no Afeganistão, e foi a partir do país que Bin Laden organizou os atentados contra o World Trade Center e o Pentágono, em 11 de setembro de 2001.
Forma-se nova resistência aos talibãs
Diante desse histórico, volta a formar-se uma resistência na região. Ahmad Massoud, filho do lendário comandante e muito semelhante a ele em aparência e atitude, comanda uma milícia no Vale do Panjshir e, juntamente com o vice-presidente deposto, prometeu não se curvar perante o Talibã. No Twitter cursava uma foto de um encontro entre ambos.
Aparentemente, Massoud e Saleh pretendem fundar juntos um novo movimento de resistência. Já em abril, quando os Estados Unidos fecharam um acordo com o Talibã, os habitantes do vale mostraram-se indignados e começaram a reativar suas mílícias, como mostrou uma reportagem do jornal suíço Neue Zürcher Zeitung.
Sob condição de anonimato, um habitante da região declarou à agência de notícias AFP: "Não vamos permitir aos talibãs pisarem o Panjshir. Vamos lutar contra eles com toda nossa força e poder." No momento, contudo, está totalmente em aberto quão forte o movimento é e como o Talibã reagirá.
O especialista em assuntos do Sul Asiático Michael Kugelman, do centro de estudos americano Wilson Center, avaliou: "Se tomarmos os talibãs ao pé da letra, o Panjshir estaria seguro, pois a guerra no Afeganistão acabou. Os talibãs prometeram não empregar mais violência, o que implica deixar em paz os territórios não dominados por eles. Mas vamos ter que esperar para ver."
"Caso se forme uma resistência militar organizada na região, porém", ressalva Kugelman, "não descarto que os talibãs venham a investir contra ela. E se o fizerem, vão ter vitória rápida e fácil."
A intervenção dos EUA no Afeganistão
Há 20 anos, após o 11 de Setembro, os EUA enviavam seus primeiros soldados ao país. Reveja os principais acontecimentos desde então: da operação Liberdade Duradoura à retomada do país pelos fundamentalistas do Talibã.
Foto: Evan Vucci/AP Photo/picture alliance
Operação Liberdade Duradoura
Em outubro de 2001, menos de um mês após aos ataques de 11 de Setembro, o presidente George W. Bush lança no Afeganistão a operação Liberdade Duradoura, depois que o regime Talibã se recusa a entregar Osama bin Laden. Em semanas, os americanos derrubam o Talibã, que ocupava o poder desde 1996. Cerca de mil soldados são enviados ao país em novembro, aumentando para 10 mil um ano depois.
Foto: picture-alliance/DoD/Newscom/US Army Photo
Talibã se reagrupa
A invasão do Iraque em 2003 se torna a maior preocupação dos EUA e desvia a atenção do Afeganistão. O Talibã e outros grupos islamistas se reagrupam em seus redutos no sul e leste do Afeganistão. Em 2008, Bush concorda em enviar soldados adicionais ao país em meio a pedidos por uma estratégia efetiva contra o Talibã. Em meados de 2008, há 48.500 soldados americanos no país.
Foto: picture alliance/Photoshot
Obama é eleito
Em sua campanha, Barack Obama promete encerrar as guerras no Iraque e no Afeganistão. Mas nos primeiros meses de sua presidência, em 2009, há um aumento no número de soldados no Afeganistão para cerca de 68 mil. Em dezembro, o número cresce ainda mais, para 100 mil, com o objetivo de conter o Talibã e fortalecer instituições afegãs.
Foto: AP
Morte de Bin Laden
Osama bin Laden, líder da Al Qaeda que esteve por trás dos ataques de 11 de Setembro, é morto em maio de 2011 em seu esconderijo, durante uma operação de forças especiais americanas no Paquistão.
Foto: picture-alliance/dpa
Acordo com Afeganistão
O Afeganistão assina em setembro de 2014 um acordo bilateral de segurança com os EUA e texto similar com a Otan: 12.500 soldados estrangeiros, dos quais 9.800 norte-americanos, permaneceriam no país em 2015. Mas a situação de segurança piora. Em meio à ressurgência do Talibã, Obama diminui a velocidade de retirada em 2016, afirmando que 8.400 soldados permaneceriam no Afeganistão.
Foto: Reuters
Bombardeio de hospital em Kunduz
Em outubro de 2015, no auge do combate entre insurgentes islâmicos e o Exército afegão, apoiado por forças da Otan, um ataque aéreo dos EUA atinge um hospital dirigido pela organização Médicos Sem Fronteiras na província de Kunduz. O ataque deixa 42 mortos, inclusive 24 pacientes e 14 membros da ONG.
Foto: Getty Images/AFP
"Mãe de todas as bombas"
Em abril de 2017, forças americanas atingem posições do "Estado Islâmico" (EI) no Afeganistão com a maior bomba não nuclear já usada pelo país em combate, matando 96 jihadistas. Em julho, é morto o novo líder do EI no país.
Foto: Reuters/U.S. Department of Defense
"Estamos diante de um impasse"
Em fevereiro de 2017, um relatório do governo dos EUA mostra que as perdas entre as forças de segurança afegãs subiram 35% em 2016 em relação ao ano anterior. Pouco depois, o general americano à frente das forças da Otan, John Nicholson (esq., ao lado do secretário da Defesa John Mattis), alerta que precisa de mais milhares de soldados: “Acredito que estamos diante de um impasse."
Foto: Reuters/J. Ernst
Trump anuncia nova estratégia
Em 21 de agosto de 2017, o presidente Donald Trump anuncia nova estratégia para o Afeganistão, fazendo da caça a terroristas a principal prioridade. Trump não especifica um aumento do número de soldados como esperado, mas diz que os objetivos incluem "obliterar" o Estado Islâmico, "esmagar" a Al Qaeda e impedir o Talibã de dominar o Afeganistão.
Foto: picture-alliance/Pool via CNP/MediaPunch/M. Wilson
EUA negociam com rebeldes
Em julho de 2018, sob o governo do presidente Donald Trump, os EUA entram em negociação com o Talibã, sem envolver o governo afegão eleito ou os parceiros da Otan.
Foto: picture-alliance/dpa/AP Photo/Qatar Ministry of Foreign Affairs
Trump cancela encontro com Talibã
Em setembro de 2019, o presidente Trump cancela na última hora uma reunião marcada em sigilo com líderes do Talibã e do Afeganistão, após o grupo islamista assumir a autoria de um ataque em Cabul que matou um soldado americano e outras 11 pessoas.
Foto: Getty Images/M. Wilson
EUA e Talibã assinam acordo de paz
Em fevereiro de 2020, sob o regime Trump, os governos dos EUA e do Afeganistão anunciam a retirada completa das tropas americanas e de outros países da Otan. O pacto assinado pelo negociador especial dos EUA para a paz, Zalmay Khalilzad, e pelo líder político talibã mulá Abdul Ghani Baradar, prevê que o número de militares estrangeiros seria reduzido gradualmente, ao longo de 14 meses.
Foto: AFP/G. Cacace
Biden anuncia retirada total das tropas
Em 14 de abril de 2021, o presidente Joe Biden comunica à população americana que a guerra mais longa do país terá fim, com as tropas dos EUA e da Otan se retirando inteiramente do Afeganistão até 11 de setembro, 20º aniversário dos ataques terroristas em Nova York.
Foto: Andrew Harnik/AFP/Getty Images
EUA e Otan iniciam retirada
EUA e Otan iniciam formalmente, em 1º de maio de 2021, a retirada de todas as suas tropas do Afeganistão. A previsão era retirar até 11 de setembro entre 2.500 e 3.500 soldados americanos e cerca de outros 7 mil soldados da Otan. Estima-se que os EUA tenham gasto mais de 2 trilhões de dólares no país, em 20 anos, de acordo com o projeto Costs of War da Universidade Brown.
Foto: Michael Kappeler/dpa/picture alliance
Americanos entregam base ao governo afegão
Em 2 de julho de 2021, tropas dos EUA partem da base aérea de Bagram, ponto focal da guerra, e entregam o local ao governo afegão. Permanecem no país asiático alguns poucos soldados, numa pequena base na capital Cabul.
Foto: Rahmat Gul/AP/picture alliance
Talibã toma capitais regionais
Aproveitando o vácuo deixado pela retirada das tropas de paz internacionais do Afeganistão, guerrilheiros do Talibã tomam, no inicio de agosto de 2021, capitais regionais como Sheberghan, Kunduz e Zaranj, num duro golpe para o governo afegão, que lutava para defender as cidades mais importantes da ofensiva do grupo extremista.
Foto: Abdullah Sahil/AP Photo/picture alliance
EUA retiram seus cidadãos do Afeganistão
Em meados de agosto, Estados Unidos e outros países começam a retirar seus cidadãos do Afeganistão, enquanto forças militares americanas se esforçam para proteger e manter funcionando o aeroporto de Cabul. Com todos os voos comerciais cancelados, milhares de afegãos invadem a pista do aeroporto desesperados, tentando embarcar em qualquer aeronave que fosse decolar.
Foto: Wakil Kohsar/AFP
Talibã ocupa palácio presidencial
O Talibã toma a capital Cabul, em 15 de agosto de 2021, dissolvendo o governo e estendendo seu controle sobre todo o Afeganistão. A capital era um dos últimos redutos ainda sob a autoridade do presidente Ashraf Ghani. Assim como ocorreu com dezenas de outras cidades, ele é tomada sem resistência efetiva das tropas governamentais. Ghani foge do país.
Foto: Zabi Karim/AP/picture alliance
Biden defende retirada das tropas
Um dia depois da tomada de Cabul, o presidente dos EUA, Joe Biden, defende a decisão de pôr fim à presença americana no Afeganistão e condena líderes e políticos afegãos que abandonaram o país, abrindo caminho para a tomada de poder pelo Talibã. Biden culpa ainda o ex-presidente Donald Trump, por ter fortalecido o grupo rebeldes e deixado os talibãs em sua melhor situação militar desde 2001.