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"Nunca imaginei comer do lixo"

João Pedro Soares de Boa Vista
24 de junho de 2019

Desde o início do ano, cresce progressivamente o número de refugiados venezuelanos vivendo nas ruas de Roraima. Das mais de 2.600 pessoas nessa condição, 30% são menores de idade.

Brasilien venezolanische Flüchtlinge in Pacaraima
Foto: DW/Y. Boechat

Quando embarcou com o marido e os três filhos para São Paulo, Yulibel Bonalde esperava dar fim a um suplício que durou cinco meses. Foi o tempo que a família venezuelana viveu nas ruas de Boa Vista (RR). Graças ao apoio de uma organização religiosa, eles conseguiram vaga em um programa de interiorização que visa a desafogar o fluxo migratório, conduzindo migrantes para outros estados. Agora, eles tentarão recomeçar a vida na maior cidade da América Latina.

Assim que for possível se estabelecer na capital paulista, a prioridade será encontrar vagas em uma escola para as crianças, que estão sem estudar desde que deixaram a Venezuela. "Fizeram ele pular de ano quando mais novo, porque era muito adiantado em relação aos colegas", conta Yulibel, referindo-se a Ender, o mais velho, de 11 anos. Em Boa Vista, ele catava latas e pedia dinheiro na Rodoviária Internacional para ajudar os pais.

A família integrava, até semana passada, a estatística de 2.603 venezuelanos desabrigados na capital de Roraima, sendo 30% menores de idade. Os dados são da Organização Internacional para as Migrações (OIM), órgão das Nações Unidas, e foram coletados entre os dias 21 e 24 de maio.

O indicador mais que dobrou desde o início do ano e vem aumentando progressivamente desde março. A situação resulta da dificuldade na interiorização dos 5.500 venezuelanos vivendo nos abrigos instalados pelas Forças Armadas e o Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), que atuam no contexto da Operação Acolhida.

Criada em março do ano passado, ainda no governo Michel Temer, a iniciativa tinha o objetivo de oferecer condições mais dignas de vida à crescente população migrante que começava a povoar as ruas da cidade. Os 11 abrigos de Boa Vista são geridos, em sua ampla maioria, por organizações sem fins lucrativos parceiras do Acnur. Em Pacaraima, na fronteira, há outros dois.

Nessas unidades, os migrantes têm a certeza das três refeições diárias, recebem visitas médicas duas vezes por semana e contam com apoio para manter seus filhos na escola. A realidade contrasta com a rotina dos que estão nas ruas, a qual consiste em ficar em filas para comer e dormir, além de fugir da chuva e da polícia nas praças.

Sem expansão da capacidade dos abrigos desde outubro do ano passado, o alcance da operação se tornou insuficiente. O fluxo migratório se manteve intenso — mesmo com a fronteira fechada por 78 dias neste ano. Entre janeiro e abril, a Polícia Federal contabilizou um saldo migratório de 31.371 novos migrantes, já excluídos os retornos para o país vizinho.

Como paliativo, as Forças Armadas montaram uma estrutura ao lado da Rodoviária Internacional de Boa Vista para oferecer segurança e proteção das chuvas para a população desabrigada. Todos os dias, perto das 17h, começa a disputa pelo lugar na fila de distribuição de senhas, que dão direito a uma barraca de campismo para passar a noite. Como só há cerca de 400 unidades, confusões são frequentes.

A prioridade é dada às famílias com crianças. Aos homens, resta dormir em pedaços de papelão. Apesar das lonas instaladas para o início do período chuvoso, os ventos levam água em todas as direções. Como as barracas entregues são feitas para duas pessoas, e há famílias com até cinco filhos, não é raro que crianças também passem as noites ao relento.

Todos os dias, os migrantes têm que deixar o espaço reservado para passarem a noite às 6h da manhã. "Quando não está chovendo, vamos à praça e ficamos ali até a polícia vir nos expulsar. Aí, caminhamos sem rumo", relata Yulibel, às lágrimas. "Se chove, disputamos as marquises com os outros".

Nesse mesmo horário, começam a chegar à Igreja de Nossa Senhora da Consolata os voluntários que passam a manhã inteira na cozinha. Quase todos são venezuelanos que viveram situações difíceis na chegada ao Brasil e, agora, dedicam parte importante de seu tempo para ajudar seus conterrâneos.

Venezuelana em Roraima: "Quando não está chovendo, vamos à praça e ficamos ali até a polícia vir nos expulsar"Foto: DW/J. Soares

Fila por comida

"Sei o que é ficar com fome, morei três semanas na rua quando cheguei aqui", conta José Gregório Buerte, de 27 anos. O clima era descontraído no dia em que a reportagem visitou a cozinha da Igreja. Os voluntários estavam especialmente contentes por terem tido frango para juntar ao habitual arroz naquele dia.

O projeto, chamado Mexendo a Panela, é mantido graças a doações mobilizadas por Áurea Cruz. Dona de uma pizzaria na cidade, ela trabalha em jornada tripla para cumprir com suas obrigações e angariar recursos para que siga sendo possível levar comida à Rodoviária todos os dias. Conseguir a proteína animal com regularidade é o maior desafio.

"Resolvi ajudar para a situação das pessoas de rua não virar paisagem. Acho que os cristãos de Roraima são privilegiados, por poderem ajudar quem realmente precisa", afirma Áurea.

Perto do meio-dia, chega um carro do Exército para levar as enormes panelas. A essa altura, já há centenas de pessoas perfiladas à espera da refeição que não podem obter de outra forma. Entre os que esperam, predomina um olhar distante, que parece indicar desesperança. A exceção são as crianças, que mantêm a alegria. "Que venha a comida!", exclama uma delas, saltitante.

Antes de dar início à distribuição da comida, um major passa algumas instruções ao microfone, em espanhol. "Lembramos que só poderá pegar comida quem estiver com um recipiente. Não adianta insistir", alerta. "Também não é permitido sair com comida no bolso e nas mãos".

Para se adequar à norma e poder comer, muitos fazem de garrafas pet cortadas seus pratos. Ao entrarem no refeitório, as famílias encontram um ambiente de dignidade, onde poderão comer sentadas à mesa. Também nesse caso, a prioridade é das mulheres e crianças.

Tão logo as pessoas identificam a presença de um jornalista, forma-se uma aglomeração em torno para apresentarem reclamações. Além de reclamarem da falta de banheiros em boas condições e da pouca liberdade de circulação dada pelos militares, chamam especial atenção para o risco de contágio de doenças infecciosas, mostrando uma menina de cinco anos com pneumonia.

"Quando chegam famílias com crianças de colo aqui, são transferidas em poucos dias para um abrigo. Nós, que temos filhos maiores, somos ignorados. Tem crianças que estão aqui há oito meses”, reclama uma mãe. "Até os homens solteiros conseguem vaga antes de nós".

Porta-voz da Operação Acolhida, a coronel Carla Beatriz afirma que a prioridade no encaminhamento aos abrigos é dada aos grupos mais vulneráveis, constituído por recém-nascidos e mulheres em fase de amamentação ou nos últimos meses de gestação. "Se abrem vagas em abrigos de solteiros, encaminhamos solteiros. Se abrem em abrigos familiares, encaminhamos famílias", explica. 

Ocupações

Se a mudança para um abrigo é disputada por tantos, há quem despreze essa opção. Percebendo a dificuldade de conseguir uma vaga, alguns grupos ocuparam prédios públicos abandonados da cidade. No edifício onde funcionava a Secretaria de Gestão Estratégica e Administração (Segad), vivem hoje 400 pessoas.

Alguns grupos ocuparam prédios públicos abandonados em Boa VistaFoto: DW/J. Soares

A ocupação começou em março do ano passado, com cerca de 160 venezuelanos. As 52 salas do prédio foram transformadas em quartos, e agora só podem chegar novas pessoas caso sejam parentes dos que já estão instalados ou se mudar. O prédio não tem energia elétrica, e lençóis são usados no lugar das portas que faltam. Mesmo nessas condições, a organização do grupo impressiona. Como há poucos banheiros, o uso é dividido por quartos, assim como a escala da limpeza.

Das 30 crianças em idade escolar, 80% estão matriculadas em escolas públicas. Enquanto estão no prédio, são monitoradas por dois jovens que cuidam para que elas não corram o risco de ser atropeladas na rua. Um dos responsáveis por manter essa organização é Argenis Marcano, de 39 anos, que trabalhava como motorista de ônibus na Venezuela. Questionado se os moradores da ocupação desejam se mudar para um abrigo, onde teriam a comida garantida, ele devolve a pergunta aos que o rodeiam. Todos respondem que não.

"Para termos esse bom ambiente familiar, é preciso compromisso com a disciplina e organização. Quem entra aqui sabe que exigimos isso. Drogas, álcool e brigas são proibidas. No início, tivemos que expulsar duas pessoas por desrespeitarem as regras. Só assim poderemos exigir respeito”, comenta. Ele afirma que foi justamente essa conduta que possibilitou um acordo com o governo do estado para a permanência no local. Além da questão da energia, a principal dificuldade para os moradores da ocupação, hoje, é a mesma da maioria dos venezuelanos que estão em Boa Vista: emprego.

"Estou há três semanas procurando emprego em todos os lugares, e ouço sempre que os venezuelanos são ladrões. Infelizmente, por um pagam todos", lamenta Luís Medina, de 26 anos, com o filho de dez meses no colo. A fala do jovem que dorme com a família na Rodoviária encontra reverberação em outros tantos que estão saturados da busca por trabalho em vão.

Com uma população de quase 400 mil habitantes, Boa Vista não apresenta condições de absorver os migrantes no mercado de trabalho formal. Com sorte, alguns arranjam bicos como pedreiros ou na área de faxina. A coronel Carla Beatriz afirma que a Operação Acolhida está mobilizando esforços para intensificar o processo de interiorização, tentando contato com empresas de outros estados para que ofereçam empregos aos venezuelanos. Porém, o desemprego alto entre os próprios brasileiros e o preconceito de empregadores vêm mantendo as portas fechadas. Até março, 5.250 pessoas tinham conseguido a transferência.

Enquanto esperam que a situação melhore para voltar à Venezuela, os migrantes esperam poder viver com dignidade. "Aqui, estou passando por coisas que nunca imaginei, como pegar comida do lixo e colocar meu filho para catar latas", desabafa Yulibel, aos prantos. "Ainda assim, estamos melhores do que na Venezuela. Antes de meu marido perder o emprego, o salário não chegava nem para comprar um quilo de arroz. Saquearam nossa casa e levaram tudo o que tínhamos. Não quero voltar tão cedo", diz.

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