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SociedadeArgentina

O acalorado debate sobre linguagem neutra na Argentina

3 de agosto de 2022

Buenos Aires proibiu o uso de linguagem neutra nas escolas, determinando que professores se atenham a normas gramaticais do espanhol. Educadores protestam e apontam haver uma guerra cultural em torno do tema.

Alunos de escola de Buenos Aires
Professores não podem mais usar linguagem neutra nas escolas de Buenos AiresFoto: Patricio Murphy/Zuma/picture alliance

Compactos 90 segundos. Um vídeo curto do Tiktok que se tornou viral e talvez até tenha sido encenado, o que basicamente não importa. Não há maneira muito melhor de explicar a controvérsia sobre o uso da linguagem neutra na Argentina — e como a polêmica divide a sociedade e até mesmo muitas famílias.

Um pai está com a filha em Puerto Madero, o distrito portuário da capital Buenos Aires, para almoçar. Ela envia uma mensagem de áudio em linguagem neutra a uma amiga, até que o homem, para quem a jovem aponta a câmera durante todo o tempo, explode. "Você não pode falar assim. Não se diz milanese, pizze, Puerto Madere", corrige ele.

Ao mesmo tempo, muitos argentinos estão indignados com uma medida anunciada em junho pela secretária da Educação de Buenos Aires, Soledad Acuña. A Resolução nº 2566/2022 regula o uso da linguagem neutra nas escolas particulares e públicas da capital e veta o uso por professores de termos que fujam das regras gramaticais do espanhol ao se comunicarem com alunos e pais.

Soledad Acuña é secretária da Educação da metrópole argentina há quase sete anos. Com o tempo, tornou-se bastante resistente a críticas, algo especialmente útil neste momento. O ministro da Educação da Argentina, Jaime Perczyk, comparou a proibição à ditadura franquista na Espanha, quando os canhotos foram forçados a escrever com a mão direita nas escolas. Cinco queixas de organizações de direitos humanos foram apresentadas ao governo da cidade de Buenos Aires.

No entanto, a política de 47 anos pergunta: "Como conseguir que um grande número de crianças que não conseguem ler nem entender um texto possam fazer isso? Acho que a linguagem neutra confunde quem está apenas aprendendo a ler e escrever porque muitas palavras não podem ser pronunciadas", argumenta Acuña.

Ela conta com uma apoiadora de peso: a Real Academia Española (RAE), responsável pela preservação do idioma. A instituição, fundada em 1713, classifica a gramática masculina, comumente usada em espanhol, como "firmemente estabelecida", dizendo que isso "não envolve discriminação sexual". 

A Resolução nº 2566/2022 aponta que, segundo a RAE, "o uso de @ ou das letras «e» e
«x» como supostas marcas de gênero inclusivo é alheio à morfologia do espanhol".

Impactos da pandemia como justificativa

A secretária da Educação da capital argentina se diz movida por uma razão em particular: "O coronavírus deixou feridas na educação. As Nações Unidas não falam de uma tragédia para esta geração à toa. Após dois anos de pandemia, a educação deve ser uma prioridade, não há dúvida sobre isso. No centro de nossas decisões estão os estudantes e seu aprendizado."

De fato, as escolas argentinas estão entre as instituições de ensino que ficaram fechadas por mais tempo em todo o mundo após o início da pandemia. Em testes educacionais padronizados, 7 mil alunos do ensino médio não acertaram sequer 20% das questões da prova de idioma.

Acuña está convencida de que tomou a decisão certa. "Trata-se apenas do ensino proporcionado pelos professores nas salas de aula, não há regras nem proibições sobre a maneira como crianças e adolescentes falam uns com os outros. Aqueles que criticam a decisão o fazem, na minha opinião, por ignorância”, argumenta.

"A linguagem neutra confunde quem está apenas aprendendo a ler e escrever", argumenta secretária da Educação de Buenos Aires, Soledad AcuñaFoto: privat

Professores protestam

São declarações como essa que deixam Andrea Bohus no limite, pois ela certamente não pode ser acusada de ignorância. Ativa no sindicato dos professores Ademys,  a psicóloga social de 40 anos diz ser uma professora de escola primária de corpo e alma e se vê forçada a acatar a resolução. Para ela, no entanto, a proibição da linguagem neutra na sala de aula é uma decisão tomada por tecnocratas.

"Nós, como professores, temos o dever de ensinar de forma que isso cause o mínimo de dano possível aos grupos envolvidos. Aqueles que usam a linguagem neutra podem se identificar e não mais se sentir excluídos", diz. "É uma forma de violência e discriminação tornar as pessoas, sejam adultos, jovens ou crianças, invisíveis."

Professores que não cumprirem a determinação podem ser alvo de uma ação disciplinar do governo municipal. De acordo com o sindicato, ninguém foi punido até o momento.

Andreas Bohus também se ressente por ter tomado conhecimento da decisão pela mídia – como tem sido sempre o caso nos últimos 15 anos, observa a professora.

"Essa resolução é um ataque à profissão docente. E é um ataque a uma pessoa que ousa (e é preciso ousar primeiro) dizer como ela se sente e se percebe. Portanto, é contra a liberdade de expressão, é contra os direitos de adultos, jovens e crianças, e é contra o direito de ter uma identidade. É um ataque contra tudo", classifica.

Bohus refuta ainda o argumento dos maus resultados em testes educacionais padronizados. Será que é realmente o uso de uma linguagem neutra a razão do baixo desempenho nos exames e não, por exemplo, o baixo investimento em educação, com escolas públicas em estado deplorável e merenda miserável? A professora faz um apelo: "Deveriam revogar essa resolução e, em vez disso, aumentar o orçamento da educação de Buenos Aires, que vem ficando menor a cada ano na última década.”

Guerra cultural e intolerância em vez de diálogo

Na Argentina, os ânimos estão acirrados quando se trata da linguagem neutra. Semelhantemente à temática do aborto, que levou pessoas às ruas por meses, os dois lados da moeda são praticamente irreconciliáveis.

Para o professor Dario Álvarez Klar, fundador e diretor da rede educacional Itinere, trata-se de uma espécie de guerra cultural, e a solução não deve ser sobre um ou outro lado ganhar.

"É preciso encontrar uma espécie de equilíbrio em que se aceite que nem todos pensam o mesmo. Não é: ‘quem usa a linguagem neutra é progressista e quem não usa é antiquado'. Nem o contrário: ‘só falam assim porque está na moda e isso gera uma boa imagem'. Na Argentina de hoje, deveríamos ter debates completamente diferentes: sobre intolerância, sobre a dificuldade de dialogar e apenas conversar."

Com longa experiência como diretor de escola, Álvarez Klar também critica a decisão do governo municipal, pois uma quase proibição da linguagem neutra não resulta em nada, além de ser muito difícil de ser aplicada.

"Fazer uma recomendação soaria completamente diferente. Também depende sempre do contexto; em algumas áreas, a linguagem neutra pode não fazer muito sentido. Mas as escolas têm uma grande vantagem: os professores conhecem a classe e podem assim, de forma independente, encontrar uma maneira de se dirigir a todos os alunos e integrá-los sem discriminar ninguém”, observa.

A realidade já ultrapassou a linguagem

Apesar de tudo, a Argentina é pioneira na América Latina quando se trata dos direitos das pessoas LGBTQ. Em 2012, o governo argentino foi o primeiro a aprovar uma lei que permitia a mudança de gênero oficialmente sem a necessidade de primeiro consultar um médico. Há um ano, 1% de todos os empregos públicos devem ser ocupados por pessoas transgêneros. E um dos filhos do presidente da Argentina, Alberto Fernández, se identifica abertamente como não binário.

O que a Resolução nº 2566/2022 prevê foi, portanto, há muito ultrapassado pela realidade, na visão de Álvarez Klar. "Ela mascara uma realidade que existe há muito tempo. A linguagem neutra não é só uma necessidade e não pode esperar pelo sinal verde para ser usada. A verdade é que as academias de línguas muitas vezes autorizam o uso de mudanças nos idiomas anos após elas terem sido estabelecidas. Não podemos sempre ficar esperando que uma palavra esteja no dicionário para usá-la”, considera o especialista em educação.

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