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Cartas do Rio: O alemão do morro

31 de janeiro de 2018

Já foi moda entre os gringos, mas, mesmo assim, o colunista nunca pensou em se mudar para uma favela do Rio. E ficou surpreso e fascinado quando conheceu um alemão que já vive há dez anos no Complexo da Maré.

Brasilien Favela Maré Rio de Janeiro
O Morro do Timbau, na favela da Maré: lar do alemão Timo Bartholl há uma décadaFoto: Getty Images/AFP/V. Almeida

Meu caminho até Timo Bartholl passa por uma igreja evangélica, uma creche e jovens com havaianas nos pés e kalashnikovs nas mãos. Eu caminho pela favela Morro do Timbau, que faz parte do Complexo da Maré. Ele é composto por 15 favelas e tem 130 mil habitantes. A Maré, como é conhecida, é o maior bairro marginalizado do Rio.

E tem a fama de ser também um dos mais perigosos. Duas quadrilhas de traficantes, uma milícia e a polícia travam nela um conflito complicado e brutal. Por isso, para muitos a Maré virou sinônimo de guerra das drogas, miséria e crime. Durante a minha caminhada, eu passo por várias bocas de fumo, nas quais jovens portam fuzis novos em folha. Isso me impressiona, claro.

Para Timo Bartholl, tudo isso é cotidiano. Ele vive há dez anos no Morro do Timbau. Esse alemão natural de Schleswig-Holstein comprou aqui um pequeno apartamento, administra com um coletivo o mercado de alimentos Roça e fabrica uma cerveja excepcional. Bartholl, de 40 anos, ainda organiza com outros moradores o bloco carnavalesco Se benze que Dá! e noites de cinema para crianças. "Tenho amigos entre os 8 e os 80 anos", diz Bartholl, que fez doutorado em geografia na UFF. Ele é tão bem integrado na favela que recebeu até uma certidão dos vizinhos: "Cidadão Maréense".

Mas o que leva um estrangeiro a viver voluntariamente num bairro perigoso e pobre, em particular a Maré? Há brasileiros que nunca botaram um pé numa favela. Muitos não fariam isso nem se fossem pagos. A classe alta brasileira, que lucra com essa reserva de mão de obra barata, vê as favelas com uma mistura de ignorância, desprezo e temor. Ela cultiva uma relação feudal bastante cômoda com a classe baixa. Fica indignada com os traficantes, mas nunca com a pobreza. E quando os tiroteios recomeçam em algum lugar, tem aqueles que comentam: "A única solução é matar todos!" 

Timo Bartholl se mudou para a Maré em 2008. Era o ano em que algo parecia estar mudando na cidade. O governo do estado começara a colocar as Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) em algumas favelas centrais da zona sul. Depois de décadas de negligência total, o Estado queria mostrar serviço, afinal o mundo inteiro estava olhando para o Rio por causa da Copa do Mundo e dos Jogos Olímpicos. Nas favelas com UPPs, a situação, de fato, começou a se acalmar, as armas sumiram das ruas e os tiroteios diminuíram (porém, aumentaram na periferia).

Atraídos pelos aluguéis baixos, logo os primeiros estrangeiros se mudaram para as favelas. Aos poucos passou a ser chique morar por lá. Bares ao gosto dessa nova clientela abriram. A favela do Vidigal virou o símbolo desse fenômeno: pessoas jovens de países ricos morando em bairros pobres do Rio. Mas também houve críticas. A mais comum era que, por causa dos gringos, os aluguéis subiam e os antigos moradores eram expulsos. Hoje essa acusação perdeu o sentido. O fracasso das UPPs e o retorno da violência catapultaram o Rio para dez anos atrás.

Eu mesmo nunca considerei me mudar para uma favela. Eu visitei muitas favelas para fazer matérias jornalísticas, fiz amizades, fui a festas – e perdi o típico olhar gringo, que é uma mistura entre receio e fascinação com a pobreza e o perigo. Mas sempre me incomodei com os montes de lixo, a canalização a céu aberto, o cocô de cachorro nos caminhos, a gritaria dos pastores evangélicos, o funk ensurdecedor de um lado e o Roberto Carlos do outro, o aperto, o calor, a poeira, o concreto. Embora adorasse a hospitalidade, a musicalidade, a resiliência e os corações abertos das pessoas, não entendia por que havia gringos que procuravam voluntariamente viver nessas condições.

Bartholl vê tudo isso de outro jeito, talvez menos burguês. Ele conheceu a Maré por meio de companheiros de estudos que faziam trabalhos educacionais na favela. Bartholl se uniu a eles e passou a dar aulas gratuitas de inglês. Sua decisão de se mudar para a Maré, depois, não teve nada que ver com alguma moda, mas com a convicção de que com o trabalho de base pode-se mudar alguma coisa. De fato, a Maré nunca estava em voga. Por aqui não há vistas maravilhosas como as do Vidigal, não há bares descolados e a praia é bem longe. Também nunca foi feita uma tentativa séria de conectar o bairro com o asfalto. Até hoje, tudo é precário: educação, saúde, segurança. "A Maré é complexa", diz um ditado bem apropriado. Por tudo isso, quando conheci o Bartholl, fiquei bastante fascinado com a escolha dele de viver aqui. Ele explicou que não conseguia mais se imaginar morando em Santa Teresa. 

O jornalista Philipp Lichterbeck mora no Rio de Janeiro há mais de 5 anosFoto: Privat

Na Maré, Bartholl tenta colocar em prática suas convicções políticas. Com três amigas, ele fundou o Coletivo Roça!. A ideia é comprar alimentos de pequenos agricultores da redondeza, que produzem de forma sustentável. Os clientes na Maré são pessoas que querem se alimentar de forma mais saudável. Além disso, o coletivo fabrica cerveja, seis tipos diferentes, 80 litros em cada preparação. É, até hoje, a única cerveja da Maré – e ela vende bem. Quando eu chego, a Roça está sendo ampliada. A intenção é ter mais espaço, diz Bartholl. A produção atual, uma Witbier, está no estágio final de produção, e várias geladeiras estão cheias de garrafas.

Subimos o Morro do Timbau até a moradia de Bartholl, que fica num dos pontos mais altos da favela. Da janela da cozinha pode-se ver a favela vizinha, a Nova Holanda. Ela está nas mãos de uma quadrilha rival, e os tiroteios entre a Nova Holanda e o Morro do Timbau são frequentes. O apartamento de Bartholl, que fica no meio da linha de fogo, já foi atingido por uma meia dúzia de balas perdidas. Numa janela há buracos de bala, e ele rebocou a parede em vários locais.

Para muitas pessoas, isso já seria motivo de sobra para se mudar. Mas Timo Bartholl se mantém firme e aguenta a situação. Assim como dezenas de milhares de moradores da favela, que não têm nada que ver com o tráfico de drogas. A favela é uma grande comunidade, diz Bartholl. Ele aprecia a solidariedade e a espontaneidade das pessoas. É como num vilarejo, diz, todos se ajudam. Foi assim que ele conseguiu superar a distância inicial dos moradores em relação a ele, o gringo: "Eu ajudei nas tarefas, bem simples!"

Também por isso, Bartholl acha ruim a fixação da mídia na violência e nas drogas. "Sou contra o que os traficantes fazem", diz. "Mas por isso devo achar bom que a polícia militar atire contra nós de helicóptero? Ou que o Bope mate inocentes? Ou que a escola feche toda hora porque há uma operação policial?" Concordo com Bartholl. O poder encara a favela apenas como um problema policial quando, na verdade, é um problema social – como o grande Bezerra da Silva ("A Voz do Morro") cantava faz muitos anos.

"Nessas condições", diz Bartholl, "é admirável que os moradores da favela tenham, todos os dias, disposição, esforço e coragem para ir ao trabalho e educar os seus filhos". A questão central, portanto, não é por que ele, um alemão, vive numa favela, mas como lugares marginalizados e desfavorecidos como favelas podem existir se, ao mesmo tempo, há locais incrivelmente ricos e privilegiados ao lado delas.

Philipp Lichterbeck queria abrir um novo capítulo em sua vida quando se mudou de Berlim para o Rio, em 2012. Desde então, ele colabora com reportagens sobre o Brasil e demais países da América Latina para os jornais Tagesspiegel (Berlim), Wochenzeitung (Zurique) e Wiener Zeitung. Siga-o no Twitter em @Lichterbeck_Rio.

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