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O amargo sabor de ser uma candidata-laranja

Ivy Farias
3 de maio de 2018

Mulheres registradas por partidos somente devido a lei que exige 30% de candidaturas femininas relatam desde ameaças a prejuízos morais. Algumas concorrem sem ter chances, e outras têm mandato exercido por familiar.

Flaviane de Souza Oliveira
"Nunca imaginei que meu nome estivesse lá em Brasília", diz Flaviane de Souza Oliveira (centro), que foi candidata-laranjaFoto: Privat

Flaviane de Souza Oliveira, de 38 anos, concluiu o curso de Direito numa universidade particular do Paraná, mas, ao contrário de seus colegas, não vai se inscrever na Ordem dos Advogados do Brasil. Tampouco vai prestar concurso público. Desempregada, terá que esperar até 2019 para pôr em prática tudo o que aprendeu na faculdade, pois, mesmo tendo votado corretamente, não está em dia com a Justiça Eleitoral.

Ela é o que o Tribunal Superior Eleitoral e especialistas chamam de "candidatas-laranja", mulheres que são usadas apenas para cumprir a cota de candidaturas femininas prevista na legislação brasileira.

Aprovada em 1997, a Lei Eleitoral 9.504 estabelece que, para as candidaturas aos cargos do Legislativo, "cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% e o máximo de 70% para candidaturas de cada sexo". Ou seja, a chamada "lei de cotas" não determina que necessariamente o menor percentual seja de mulheres, mas é isso o que ocorre na prática.

Leia também: "Candidatas-laranja": a falácia da inclusão de mulheres na política brasileira

"Eu tinha 33 anos, e um senhor apareceu no meu salão de beleza pedindo ajuda para a comunidade. Eu nunca o tinha visto na vida, mas ele me convenceu a ajudá-lo", conta Oliveira. "Ele tirou cópias dos documentos e me levou uns papéis que assinei. Nunca mexi com isso, pois fiquei doente, tive que tirar um nódulo do seio, e esqueci."

Ela não se lembrava com exatidão do nome do partido e do cargo para o qual havia se candidatado: deputada estadual pelo PSDC em 2014. Apenas quando foi renovar o passaporte e buscou a quitação eleitoral, descobriu que a prestação de contas de sua candidatura não havia sido feita e que, por isso, seu título de eleitor estava cancelado.

"Nunca imaginei que meu nome estivesse lá em Brasília. Liguei para todas as pessoas que podia, falei com a minha professora de Direito Eleitoral e descobri que estava ferrada. Não recebi um real, mas mesmo assim tinha que prestar contas", explica ela, que soube da fraude somente no final de 2017.

"Estou com o nome sujo sem dever nada. Não posso prestar concurso público nem tirar minha OAB. Todas as minhas portas estão fechadas. Não posso votar, renovar passaporte, viajar, nada. Espero primeiro a justiça divina, pois sei que não tenho como mexer com peixe grande da política como eles. Não tenho condições de bancar advogados, nada. E, agora, o que me orientaram é esperar até o fim do mandato para que meu processo seja arquivado", afirma a advogada.

O caso dela não é raridade nas eleições brasileiras: de acordo com o TSE, em 2016, 89,3% dos candidatos sem nenhum voto eram mulheres. A promotora Vera Lúcia Taberti, de São Paulo, entrevistou mais de 300 mulheres que se candidataram em 2016 e tiveram poucos votos ou poucos recursos financeiros.

"Deparei-me com situações inesperadas, como a de uma mulher que entrou num diretório de um partido para pedir água e a convenceram a ser candidata", diz.

Em outro caso, uma mulher a procurou no Ministério Público dizendo que a mãe havia recebido uma intimação para prestar contas. "A senhora tinha esquizofrenia e não tinha qualquer condição de se candidatar. Os laudos que a filha trouxe provavam isso", conta.

"Separei uma vaga para você”

A advogada Karina Kufa, coordenadora da pós-graduação em Direito Eleitoral do IDP-SP, divide as candidatas-laranja em dois tipos. "Há as que concorrem sem ter chances, e as que se elegem, mas cujo mandato é exercido pelo marido, pai ou outro homem da família. De todo modo, é uma grave violência contra a mulher", afirma.

Para cumprir a chamada "lei de cotas", os partidos chegam a buscar mulheres na véspera do período de registro eleitoral. Foi o que aconteceu com Juliana Silveira*. Indicada por um parente, ela ocupava um cargo de confiança na prefeitura de Castanhal, na região metropolitana de Belém, em 2008, quando foi convocada a se candidatar.

"Quando chegou o período eleitoral, como não completaram a cota de mulheres, este meu familiar, que até hoje é deputado estadual, pediu que eu fosse visitá-lo em seu gabinete", conta. "Foi quando me disse que eu deveria me candidatar. As palavras dele foram exatamente estas: 'Separei uma vaga para você'."

Silveira alegou que estava na faculdade e não tinha qualquer condição de se candidatar. "Ele disse o seguinte: 'Você sabe, né? Lá fora tem muitas outras pessoas querendo esta vaga de emprego que você ocupa hoje'", diz. 

Ameaçada, a então estudante não tinha outra coisa a fazer senão concorrer. Registrou sua candidatura a vereadora pelo DEM no prazo limite e teve apenas nove votos.

"Ele não era apenas alguém que tinha poder sobre o meu cargo, mas também um grau de parentesco. Sinto vergonha? Sim. Mas precisava do emprego para pagar a faculdade", conta ela, que hoje é advogada e tem 37 anos. "Me desvinculei do partido e de qualquer relação familiar com ele."

Para Hannah Maruci Aflalo, cientista política e pesquisadora do Grupo de Estudos de Gênero e Política da USP, as candidatas-laranja representam uma falha na democracia brasileira.

"Se entendemos a democracia como governo do povo, que traz uma ideia de igualdade, o fato de termos partidos que burlam a lei ao invés de cumpri-la mostra que há algo muito errado", afirma.

"Eu posso ser soldado, mas não sou soldado besta"

Nem todas as candidaturas laranjas são oferecidas ou impostas às mulheres, como ocorreu com Oliveira e Silveira. A empresária Joelma Luz era filiada ao PTdoB quando decidiu se candidatar a deputada estadual no Espírito Santo, em 2006.

"Coloquei meu nome à disposição do partido. Trabalhei meu lado psicológico, conversei com a minha família, me preparei para a eleição. Mas, na hora de compor a chapa, deixaram bem claro que eu seria uma candidata fictícia, sem ter acesso ao fundo partidário e que estava ali só para ajudar o partido", conta Luz.

"Estava em pré-campanha e me preparei, mas quando vi que o jogo era diferente do que eu havia desenhado, decidi sair. Eu queria concorrer mas não haveria qualquer chance dentro do partido", diz. "Ainda fizeram pressão psicológica, dizendo que eu deveria ajudar o partido, que deveria ser ‘soldado e lutar a guerra'. Falei que era soldado, mas que não era soldado besta." 

Aos 46 anos, Luz não desistiu da vida política e hoje é filiada à Rede. "Sou assessora parlamentar de um prefeito. Ele inclusive me viu nos jornais na época que denunciei aquele abuso [da candidatura laranja]", conta.

"Agora faço parte da executiva e minha militância é para que a mulher seja incluída de forma igual na política. Nós temos um poder muito grande, e a mulher precisa compreender isso para fazer valer seu espaço. Aquela experiência amarga eu hoje tento transformar em doce para as outras", diz.

*O nome foi alterado a pedido da entrevistada.

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