Em suas análises, jornais alemães tentaram entender o que motivou os protestos que ocorreram nas grandes cidades brasileiras em junho de 2013.
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Süddeutsche Zeitung – O gigante acordou, 19/06/2013
O desenvolvimento do Brasil era uma história de sucesso há até cinco dias. Mas agora uma onda de indignação, como se fosse vinda do nada, cresce nas grandes cidades brasileiras.
Tudo começou em 13 de junho em São Paulo porque o preço da passagem de ônibus havia sido aumentado em 20 centavos. Isso soa pouco, mas é muito para muitos passageiros, o Brasil está cada vez mais caro.
Claro que isso foi só o estopim. Na segunda-feira houve protestos em várias cidades, de Fortaleza a Porto Alegre. Uma rebelião desse tipo a nação não via desde os tempos da ditadura, entre 1964 e 1985, ou do impeachment do chefe de Estado cleptomaníaco Fernando Collor de Melo, em 1992. "Os 20 centavos são apenas a gota que fez tudo transbordar. Tudo se acumulou ao longo de anos", diz um manifestante.
O nome dele é Leandro Ramos, ele tem 20 e poucos anos e é fotógrafo. "Precisamos de mais justiça social e mais justiça", diz Ramos. "A democracia exige mais de nós, cidadãos. A Turquia é um exemplo para nós."
A revolta em Istambul foi um motivo, assim como os 20 centavos e os estádios caros da Copa do Mundo também foram. Depois dos egípcios, dos nova-iorquinos, dos espanhóis, dos gregos e dos chilenos, de repente também os brasileiros foram em massa às ruas, e isso que eles preferem festejar. A maioria desses rebeldes não vem das favelas, mas da classe média.
Die Zeit, Cidadãos irados no Rio, 20/06/2023
O que aconteceu, qual o objetivo dos protestos, quem são os líderes? É o que se perguntam não apenas os observadores, mas também os próprios manifestantes.
Quem ouve as palavras de ordem ou os debates entre os participantes das marchas, quem lê os cartazes feitos à mão ou acompanha os debates em fóruns na internet fica com uma impressão confusa.
A ira popular se volta contra uma miscelânea de reclamações. Por que se investe tanto dinheiro em futebol e Jogos Olímpicos, se hospitais e escolas estão desmoronando? Por que os preços das passagens de ônibus sobem em São Paulo e no Rio se essas grandes cidades há muito estão se sufocando com o trânsito? Por que os brasileiros pagam impostos tão altos se quase não há serviços públicos que funcionam? Basta de políticos podres e autoridades corruptas que colocam o dinheiro dos impostos nos próprios bolsos!
Os protestos não são uma revolta dos pobres e dos trabalhadores. Parece que um novo cidadão irado brasileiro nasceu.
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Die Tageszeitung, "Eu não preciso de Copa do Mundo", 20/06/2013
Os manifestantes cumpriram a sua promessa. "Se nada mudar, o Brasil vai parar", anunciavam, desde o início dos protestos, há cerca de duas semanas. Na tarde de segunda-feira, centenas de milhares tomaram as ruas de diversas cidades. Eles protestavam contra o desperdício de dinheiro público, uma política de Estado falha e políticos corruptos. Esses foram os maiores protestos em 20 anos no país que é sede da Copa das Confederações, um torneio de teste para a Copa do Mundo de 2014 no Brasil.
Na noite de segunda para terça-feira, a ira se transformou em violência. Cenas fantásticas foram vistas no centro do Rio de Janeiro: centenas de manifestantes tomaram a Assembleia Legislativa, os poucos policiais que estavam no prédio nada podiam fazer.
Nas majestosas escadarias da entrada do prédio, pessoas encapuzadas empurravam barreiras de proteção, enquanto outras agitavam alegremente a bandeira nacional. Tiros foram disparados, e carros e barricadas estavam em chamas nas ruas próximas.
Trata-se de muito mais do que um aumento de preços, diz uma manifestante. "Simplesmente não dá mais para pagar o custo de vida." Os cartazes são claros: "O Brasil finalmente acordou", "Não é por 20 centavos, é por direitos". Ou "Eu não preciso de Copa, quero educação e saúde."
Frankfurter Allgemeine Zeitung, Ira brasileira, 20/06/2023
E agora, Brasil? Ao longo de duas décadas não houve protestos dignos de nota no maior país da América do Sul, ao menos não protestos que tenham atraído pessoas para as ruas de forma tão massiva em quase todas as grandes cidades. Mas agora se mostra o tamanho da ira acumulada ao longo dos anos. É também inegável que as manifestações de massa de cidadãos que protestaram contra seus governos inicialmente em países árabes, depois europeus, sejam um modelo para os manifestantes em São Paulo, Rio de Janeiro ou Brasília. Sem a "onda de indignação" do outro lado do Atlântico, o protesto contra um pequeno aumento das tarifas de ônibus no Brasil dificilmente teria ganhado uma dimensão que, hoje, ameaça provocar uma crise no Estado.
as/bl (ots)
Glossário dos protestos de junho de 2013
"O gigante acordou", MPL, black blocs, "padrão Fifa", Mídia Ninja, "não é só por 20 centavos": relembre as palavras e expressões que dominaram o noticiário sobre os protestos de junho de 2013.
Foto: Nelson Antoine/AP/picture alliance
20 centavos
Em 2 de junho de 2013, entrou em vigor um reajuste de 20 centavos nas passagens de ônibus, trens e metrô em São Paulo, com a nova tarifa passando para R$ 3,20. Nos meses anteriores, cidades como Natal (RN), Porto Alegre (RS) e Goiânia (GO) já haviam sido palco de protestos contra reajustes. Mas foram os protestos de São Paulo que deram impulso para um movimento nacional.
Foto: picture-alliance/AP
MPL
Os primeiros protestos de junho de 2013 em São Paulo, que seriam o embrião das manifestações que tomaram o país, foram organizados pelo braço paulistano do Movimento Passe Livre (MPL), um grupo descentralizado e sem liderança clara. Com a bandeira da gratuidade no transporte público, o MPL tinha membros ligados à esquerda, mas se definia como "apartidário" e "independente".
Foto: Miguel Schincariol/AFP/Getty Images
"Saímos do Facebook"
O primeiro protesto do MPL, em 3 de junho, teve pouca adesão. Mas isso mudou com as redes sociais, com convocações que passaram a atrair diretamente participantes com princípios ou bandeiras semelhantes. Quando o movimento ganhou força, manifestantes exibiram nos protestos cartazes com frases como "saímos do Facebook".
Foto: Reuters
Black blocs
O terceiro grande protesto em SP, em 11 de junho, chegou ao fim após alguns manifestantes atirarem coquetéis molotov contra um terminal de ônibus. No dia seguinte, o termo "black bloc" começou a aparecer na imprensa para descrever esses manifestantes encapuzados que promoviam vandalismo. O termo descreve uma tática de confronto associada a movimentos anarquistas da Alemanha Ocidental dos anos 80.
Foto: picture alliance / ZUMA Press
"Retomar a Paulista"
As manifestações em SP entre os dias 6 e 11 de junho provocaram críticas de autoridades, e parte da imprensa passou a exigir providências para garantir que vias não fossem bloqueadas. Em 13 de junho, o jornal "Folha de S.Paulo" publicou um editorial com o título "Retomar a Paulista". "É hora de pôr um ponto final nisso", dizia o texto. O cenário estava montado para a repressão do dia 13 de junho.
Foto: Nelson Almeida/AFP/Getty Images
"Sem violência!"
Em 13 de junho, sem advertência, PMs dispararam gás e balas de borracha contra manifestantes em SP, inclusive pessoas que tentavam fugir gritando "sem violência!". Nas horas seguintes, PMs atacaram jornalistas, moradores e clientes de bares. A noite terminou com mais de 230 presos. Em vez de dissuadir os protestos, no entanto, a violência da PM acabou por alimentá-los.
Foto: picture-alliance/dpa
"Não é só por 20 centavos"
O então governador de SP, Geraldo Alckmin, defendeu a ação da polícia em 13 de junho. No entanto, choveram críticas de grupos da sociedade civil e até de setores da imprensa sobre os excessos. Protestos foram organizados no exterior em apoio aos manifestantes no Brasil. Novas manifestações foram convocadas. "Não é por centavos, é por direitos", dizia um panfleto distribuído na capital.
Foto: Marcelo Camargo/ABr
"O gigante acordou"
A repressão de 13 de junho alimentou o movimento. Enormes manifestações tomaram conta do país em 17 de junho, levando cerca de 250 mil pessoas às ruas. A noite do dia 17 foi palco de algumas das imagens mais emblemáticas das jornadas de junho de 2013, como a invasão do telhado do Congresso Nacional e a depredação da Alerj. Manifestantes entoaram gritos como "o povo acordou" e "o gigante acordou".
Foto: Marcelo Camargo/ABr
"Padrão Fifa"
As manifestações de 17 de junho e 20 de junho no país passaram a incluir pautas que iam do "passe livre", cobranças por melhorias em serviços públicos e por medidas para conter a violência urbana e a corrupção (tema que recebeu atenção em 2012 com o julgamento do Mensalão) até reclamações sobre os custos da Copa. Cartazes exigindo saúde e educação "padrão Fifa" tomaram conta das manifestações.
Foto: Y.Chiba/AFP/GettyImages
Mídia Ninja
Em 18 de junho, na Avenida Paulista, um grupo incendiou um painel da Coca-Cola. A cena foi capturada por celulares, que transmitiram tudo ao vivo nas redes sociais. Foi a primeira transmissão de impacto da Mídia Ninja, uma "teia" de colaboradores criada em 2011 e ligada ao coletivo Fora do Eixo. A transmissão, mesmo com todas as limitações da época, foi acompanhada por 100 mil pessoas.
Foto: MidiaNINJA
"Sem partido!"
Em 20 de junho, o Brasil foi palco dos maiores protestos das jornadas de 2013. Mas essas manifestações também foram marcadas por uma virada antipartidária. Militantes de legendas de esquerda foram agredidos em SP e RJ sob gritos de "sem partido!". Suas bandeiras foram tomadas, rasgadas e queimadas. A violência levou o MPL a cancelar a convocação de novos atos.
Foto: Reuters
"Ocupa Cabral"
Em 21 de junho, manifestantes montaram um acampamento em frente à residência do então governador do Rio, Sérgio Cabral, no bairro do Leblon. O movimento acabou tendo diferentes etapas, com protestos em frente à casa do político sendo registrados até outubro. O Rio também foi palco de protestos violentos ao longo de junho, que incluíram atos de vandalismo contra a sede da Assembleia Legislativa
Foto: picture-alliance/dpa
Constituinte
Em 24 de junho, em meio à crise, a então presidente Dilma Rousseff propôs a adoção de cinco "pactos nacionais". A ideia mais chamativa – e controversa – envolveu a convocação de um plebiscito para que o eleitorado fosse consultado sobre a convocação de uma constituinte que trataria exclusivamente da reforma política. O plano foi abandonado em 24 horas, diante da má repercussão e críticas.
Foto: Reuters/Ueslei Marcelino
Pulverização
Após o MPL de SP desistir de convocar novas manifestações, o movimento começou a perder força. Em SP e outros locais, houve uma pulverização, com protestos menores e de pautas diversas. Em 26 de junho, em SP, houve protestos distintos que expressaram insatisfação contra a chamada "cura gay", a contratação de médicos estrangeiros e até mesmo de manifestantes que pediam uma "intervenção militar".