Doze meses após Cunha autorizar abertura de processo contra Dilma, ex-deputado está na cadeia, ex-presidente segue rotina discreta e país é tomado por mais uma crise entre poderes, desta vez entre Judiciário e Congresso.
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No dia 2 de dezembro de 2015, o então presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB-RJ) autorizou a abertura de um pedido de impeachment contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Nos dias seguintes, publicações e analistas se debruçaram sobre as chances da iniciativa. A revista britânica The Economist avaliou que, "ironicamente", a abertura do processo aumentaria a chances de Dilma permanecer no poder. "O momento trabalha a seu favor", disse a publicação. Analistas especularam que Cunha duraria menos do que a presidente.
No campo oposto, setores do empresariado avaliaram que um processo bem-sucedido e tranquilo poderia significar um recomeço para a economia. Investidores celebraram. O dólar caiu; a bolsa subiu. Membros da oposição afirmaram que a crise política e econômica só se resolveria "com a saída de Dilma”.
Um dos autores do pedido de impeachment, o jurista Hélio Bicudo, que ajudou a conferir prestígio ao documento, afirmou à época que estava "satisfeito" com a decisão de Cunha.
Reviravoltas
Hoje, no aniversário do pedido, Bicudo engrossa outro movimento: o "Fora Temer!". "Se houver um pedido com contorno jurídico consistente eu acompanho", disse esta semana após mais um escândalo envolvendo um ministro do presidente Michel Temer. E a nova posição de Bicudo não é o único fato que poderia surpreender algum observador que tivesse se mantido alheio a todos os acontecimentos do último ano.
Cunha, que nos meses seguintes à aceitação do pedido viveu o auge da sua influência, foi afastado, perdeu o mandato e, finalmente, foi preso. Deixou a residência oficial da Câmara e hoje ocupa uma cela em Curitiba. Ainda tenta influenciar, só que de outra forma: com ameaças envolvendo uma eventual delação de ex-colegas.
Já o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que em dezembro de 2015 era encarado como uma figura que poderia desatar os nós da crise política, passa a maior parte de seu tempo ocupado com a Justiça. Na última quarta-feira (30/11), ele prestou depoimento ao juiz Sérgio Moro.
Já Dilma, que em dezembro do ano passado disse ter reagido com "indignação" à decisão de Cunha, acabou sendo afastada cerca de cinco meses depois. Fora do Planalto e da Alvorada, ela tem dividido sua residência entre Porto Alegre e Rio de Janeiro. Concede entrevistas regulares, mas tem se mantido afastada das decisões do PT.
Temer e a crise renovada
Esperada por alguns, uma possível lua de mel entre a população e o novo governo, tal como havia ocorrido após o impeachment de 1992, simplesmente não ocorreu, apontam analistas. O atual governo é alvo frequente da imprensa por causa do envolvimento de seus membros com casos de corrupção. Em seis meses, Temer perdeu seis ministros em casos ruidosos.
O presidente conseguiu estabilizar a relação entre o Executivo e o Congresso, mas sofre com a desconfiança da população. Ainda em 2015, ao ver os números de popularidade de Dilma, Temer afirmou que "ninguém vai resistir três anos com esse índice baixo". À época, ela tinha apenas 7% de aprovação. Com Temer no poder, pesquisas recentes apontam que sua popularidade está abaixo de 15%.
O presidente também vem sendo alvo de protestos regulares. Por enquanto, quase todos são organizados por movimentos sociais contrários às reformas propostas pelo novo governo. Mas uma convocação para este domingo (04/12) deve mudar esse cenário. Será o primeiro protesto contra o governo organizado por grupos – muitos deles conservadores – que haviam pedido a saída de Dilma.
Na última segunda-feira, parlamentares da oposição entregaram o primeiro pedido de impeachment contra Temer. Por enquanto, o pedido parece ter pouca chance de prosperar dada sua base no Congresso, mas o governo não está imune à instabilidade. "Hoje a crise não é mais entre o Executivo e um Congresso rebelde, mas entre um Congresso alinhado com o Planalto e o Judiciário", afirma o cientista político Ricardo Costa Oliveira, da Universidade Federal do Paraná.
Após meses de tensão, a iniciativa recente da Câmara de desfigurar o pacote anticorrupção colocou em pé de guerra procuradores e juízes e senadores e deputados, além do governo Temer. Diante da ofensiva do Congresso, membros do MP e do Judiciário passaram a acusar os políticos de sabotar a Lava Jato.
Numa tentativa de emparedar o governo, membros da força-tarefa da operação ameaçaram renunciar coletivamente se o pacote desfigurado for adiante e acusaram o Congresso de tentar instaurar uma "ditadura da corrupção".
Os procuradores também passaram a convocar a população a engrossar o coro contra a classe política, adicionando mais um elemento explosivo à crise. "A sociedade deve ficar atenta para que o retrocesso não seja concretizado", disse o procurador-geral da República, Rodrigo Janot.
Apoio à Lava Jato
Segundo o cientista político Rodrigo Prando, da Universidade Mackenzie, um elemento que permaneceu inalterado no último ano foi o apoio da população à Lava Jato. "Os políticos perderam ainda mais o pudor em vez de entenderem que a população está mais angustiada e revoltada. Isso pode se voltar contra o governo."
Na economia, os sinais de recuperação prometidos por apoiadores do impeachment também não vieram. Diante da instabilidade renovada, e da expectativa sobre a delação de executivos da Odebrecht, o dólar voltou a subir e a bolsa caiu na véspera do aniversário de um ano da decisão de Cunha.
A divulgação do resultado trimestral do PIB na última quarta-feira – que registrou recuou de 0,8% - também ajudou a desanimar quem apostou numa melhora da economia com a saída de Dilma. Já a taxa de desemprego atingiu 11,8% em outubro – há um ano era de 6,9%.
Entenda a Operação Lava Jato
A Polícia Federal apura, desde 2014, um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. Entenda a maior investigação sobre corrupção já conduzida no país.
Foto: AFP/Getty Images
O início
A Operação Lava Jato foi deflagrada pela Polícia Federal em 17 de março de 2014. Começou investigando um esquema de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro e descobriu a existência de uma imensa rede de corrupção envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e políticos. O nome vem de um posto de gasolina em Brasília, um dos alvos da PF no primeiro dia de operação.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Brandt
O esquema
Executivos da Petrobras cobravam propina de empreiteiras para, em troca, facilitar as negociações dessas empresas com a estatal. Os contratos eram superfaturados, o que permitia o desvio de verbas dos cofres públicos a lobistas e doleiros, os chamados operadores do esquema. Eles, por sua vez, eram encarregados de lavar o dinheiro e repassá-lo a uma série de políticos e funcionários públicos.
Foto: Reuters/S. Moraes
As figuras-chave
O esquema na Petrobras se concentrava em três diretorias: de abastecimento, então comandada por Paulo Roberto Costa; de serviços, sob direção de Renato Duque; e internacional, cujo diretor era Nestor Cerveró. Cada área tinha seus operadores para distribuir o dinheiro. Um deles era o doleiro Alberto Youssef (foto), que se tornou uma das figuras centrais da trama. Todos os citados foram condenados.
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As empreiteiras
As grandes construtoras do país formaram uma espécie de cartel: decidiam entre si quem participaria de determinadas licitações da Petrobras e combinavam os preços das obras. Os executivos da estatal, por sua vez, garantiam que apenas o cartel fosse convidado para as licitações. Entre as empresas investigadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. Vários executivos foram condenados.
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Os políticos
O núcleo político era formado por parlamentares de diferentes partidos, responsáveis pela indicação dos diretores da Petrobras que sustentavam a rede de corrupção dentro da estatal. Os políticos envolvidos recebiam propina em porcentagens que variavam de 1% a 5% do valor dos contratos, segundo os investigadores. O dinheiro foi usado, por exemplo, para financiar campanhas eleitorais.
Foto: J. Sorges
De Cunha a Dirceu...
A investigação só entrou no mundo político em 2015, quando a Lava Jato foi autorizada a apurar mais de 50 nomes, entre deputados, senadores e governadores de vários partidos. Desde então, viraram alvo de investigação políticos como os ex-parlamentares Eduardo Cunha (foto) e Delcídio do Amaral, ambos cassados, os senadores Renan Calheiros, Fernando Collor e o ex-ministro José Dirceu.
Foto: Reuters/A. Machado
... e Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é réu em dez processos relacionados à Lava Jato, sendo acusado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça. As denúncias indicam que Lula teria recebido benefícios das empreiteiras OAS e Odebrecht, envolvendo imóveis no Guarujá e São Bernardo do Campo. Em 2018, ele foi preso e teve uma nova candidatura à Presidência barrada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Dana
As prisões
A Lava Jato quebrou tabus no Brasil ao encarcerar altos executivos de empresas e importantes figuras políticas. Entre investigados e aqueles já condenados pela Justiça, estão o executivo Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht; Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara; Sérgio Cabral, ex-governador do Rio; os ex-ministros José Dirceu (foto) e Antonio Palocci, entre outros.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/H. Alves
As delações
Os acordos de delação premiada são considerados a força-motriz da operação. Depoimentos como o de Marcelo Odebrecht (foto) chegam com potencial para impactar fortemente a investigação. O acordo funciona assim: de um lado, os delatores se comprometem a fornecer provas e contar o que sabem sobre os crimes, além de devolver os bens adquiridos ilegalmente; de outro, a Justiça reduz suas penas.
Foto: Getty Images/AFP/H. Andrey
O juiz
Responsável pela Lava Jato na 1° instância, o ex-juiz federal Sergio Moro logo ganhou notoriedade. Em manifestações, foi ovacionado pelo povo e chegou a ser chamado de "herói nacional". Mas também foi acusado de agir com parcialidade política. Em 2018, deixou o cargo e aceitou ser ministro do presidente Jair Bolsonaro, cuja candidatura foi beneficiada pela prisão de Lula no ano anterior.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Expansão internacional
Se começou num posto de gasolina em Brasília, a Lava Jato ganhou proporções internacionais com o aprofundamento das investigações. Segundo dados do Ministério Público Federal levantados a pedido da DW Brasil, a investigação já conta com a cooperação de pelo menos outros 40 países (veja no gráfico acima). Além disso, 14 países, fora o Brasil, investigam práticas ilegais promovidas pela Odebrecht.
Um terremoto político
Ao longo de cinco anos, a Lava Jato influenciou o impeachment de Dilma Rousseff, enfraqueceu o governo Michel Temer e contribuiu para a derrocada de velhos caciques do PT, MDB e PSDB. Em 2018, Lula, então favorito para vencer as eleições presidenciais, foi preso e teve a candidatura barrada. As investigações também fortaleceram um discurso antissistema que beneficiou a campanha de Bolsonaro.
Foto: picture-alliance/dpa/ZUMAPRESS/C.Faga
Críticas e revelações
A Lava Jato também acumulou acusações de parcialidade e de abusos em seus métodos. Em 2019, os procuradores da força-tarefa foram duramente criticados por tentarem criar uma fundação para gerenciar uma multa bilionária da Petrobras. No mesmo ano, conversas reveladas pelo site "The Intercept" apontaram suspeita de conluio entre Moro e os procuradores na condução dos processos, o que é proibido.