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O canto e a contagem das sereias

Simone de Mello31 de março de 2006

Teórico de cultura Friedrich Kittler volta a Odisseu e às sereias para investigar relações entre som e número.

'Musik und Mathematik', de Friedrich Kittler

Friedrich Kittler – Musik und Mathematik I. Hellas 1: Aphrodite. München: Wilhelm Fink Verlag 2006.

"Música e matemática – de onde vêm as duas palavras? Do mesmo lugar de onde vêm todas as palavras que dão a pensar. Da boca dos gregos – de onde mais, se não de lá? Em meio aos nossos idiomas correntes – do alemão ao árabe e hindu, passando pelo latim – surge o apelo pela língua materna de todos nós. Kithara, o mais grego dos instrumentos musicais, deu aos Alpes sua zither, aos indianos sua sitar e nos deu os sons de guitarra elétrica no Café Belgrad. No grego arcaico, falado e escrito há três milênios e meio, não se registram nem μoύσα [musa] e nem μαθείν ['mathein', aprender, saber], mas em Homero sim. Então recomecemos de novo, assim como todos os livros desde então, com esta saga."

De Homero à era Turing – em campo não menos vasto que esse, o teórico alemão de cultura e mídia Friedrich Kittler, se propôs a vasculhar a relação entre som e número, artes e ciências, o incesto originário entre música e matemática na história do Ocidente.

No primeiro volume deste projeto (Hellas / Aphrodite), recém-lançado pela editora Wilhelm Fink, de Munique, Kittler destila de Homero, da literatura grega clássica e de Pitágoras todas as nuances que possam detalhar a relação entre musa e saber.

O fato de a aritmética, geometria, astronomia e música serem ciências irmãs na Grécia Antiga não é exatamente o que move a argumentação de Kittler, talvez o mais criativo e influente teórico que marcou a recepção do pós-estruturalismo na Alemanha. No princípio eram as sereias: uma máxima que vale tanto para a investigação do vínculo entre música e matemática como para o movimento da teoria de Kittler.

Não apenas da boca de gregos: a primeira correlação entre cantar e saber veio da boca das sereias, no 12º canto da Odisséia:

"Quem fruiu pleno prazer antes de voltar para casa sabe mais. A ele se revelou a música. No coração de todas as aventuras divinas, no ápice de incontáveis sofrimentos, o sofrimento se transforma em saber, algo que as sereias chamam pelo nome. Aprender sofrendo, παθείν μαθείν ['pathein mathein'] – finalmente se tornar verdade."

Sedutora também é a argumentação de Kittler, com sua predileção pela linguagem coloquial, apenas o convidativo acesso a um complexo enredamento teórico pontuado por referências dos mais diversos repertórios. De Pink Floyd a Heidegger, dos gregos antigos a Borges, passando pelo Alcorão e Polansky, Kittler mostra relações entre gregos e troianos através de uma econômica colagem de citações, sem perder a lábia de um narrador.

Friedrich KittlerFoto: picture-alliance/ dpa/dpaweb

Conhecido por ter substituído nas ciências humanas alemãs o "espírito" humano pelo midiático e emancipado a técnica como determinante da cultura, o germanista Friedrich Kittler sempre parte do código das mídias e opera com a materialidade da linguagem em sua teoria.

No primeiro volume de Musik und Mathematik, ele recorre aos originais gregos e resgata dos textos o teor imagético e conceitual diluído nos milênios da aculturação sofrida pelos antigos.

Libertar a história de histórias avulsas é a pretensão deste aprofundado leitor de Heidegger, Lacan e Foucault. No caso da recepção alemã dos gregos antigos, que começa bem antes de Goethe e prossegue até bem depois de Nietzsche, são muitas as camadas arqueológicas a serem abstraídas até se chegar ao puro canto das sereias. Daí também a ousadia do projeto.

Professor de Estética e História da Mídia na Universidade Humboldt, em Berlim, e membro do grupo de pesquisadores Bild Schrift Zahl (Imagem Escrita Número), Friedrich Kittler representa um marco na reflexão sobre cultura e mídia na Alemanha.

Em 1985, Kittler se lançou como teórico de destaque com Aufschreibesysteme 1800–1900 (Sistemas de notação 1800–1900), onde investiga como os discursos se constituem a partir das transformações técnicas, ilustrando sua teoria com o período compreendido entre o início da alfabetização sistemática na Europa e o começo da armazenagem técnica de dados.

Em Grammophon Film Typewriter (1986) e Draculas Vermächtnis (Testamento de Drácula, 1993), ele deu continuidade a uma teoria de mídia que influencia uma nova geração de pensadores na Alemanha.

Indagado pela revista Literaturen sobre a motivação de resgatar os gregos antigos e especialmente Afrodite, após tantos anos de dedicação à técnica, Kittler declarou: "Eu gostaria que os jovens se dessem melhor do que nós em sua vida amorosa. Eu não gostaria que ninguém que venha a descobrir que é gay tente se matar três vezes, como Foucault".

"Imagine só um milagre desses: uma cultura que não tenha jesuítas, nem rabinos, nem nada. O mais delirante da Grécia me parece ser a liberdade – mas não a liberdade que George Bush tem em mente quando fala de democracia e livre empresariamento, mas sim a liberdade de amar. E a liberdade das festas, a liberdade da poesia".

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