O caso dos reféns israelenses esquecidos há quase uma década
Felix Tamsut
22 de janeiro de 2024
Judeu de ascendência etíope é prisioneiro do Hamas em Gaza desde 2014; outro, beduíno, desde 2015. Ambos têm problemas mentais. Sociedade de Israel nunca deu atenção aos casos – até que ataques do 7/10 mudaram o cenário.
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Avera Mengistu e Hisham al-Sayed são mantidos reféns na Faixa de Gaza desde 2014 e 2015, respectivamente. Mas, ao contrário dos cerca de 240 israelenses sequestrados pelo Hamas nos ataques terroristas de 7 de outubro de 2023, a campanha pela libertação dos dois nunca ganhou muito destaque.
Os casos de Mengistu e Sayed – e principalmente a semelhança entre ambos – contam uma história mais ampla sobre como o governo de Israel enxerga seus reféns.
Quem é Hisham al-Sayed
Hisham al-Sayed é cidadão israelense. Beduíno da cidade de Hura, no sul do país, em 2015 ele cruzou a fronteira de Gaza, e desde então tem sido mantido refém pelo Hamas.
Não era a primeira vez que Sayed entrava no enclave palestino. Em ocasiões anteriores, ele fora devolvido a Israel. Da última vez, porém, o grupo fundamentalista islâmico, que controla Gaza desde 2007, escolheu um curso de ação diferente.
Considerado uma organização terrorista pela União Europeia, Estados Unidos e outros países, o Hamas justifica que Sayed é um combatente israelense. Mas a organização de direitos humanos Human Rights Watch (HRW) garante que não é o caso, trata-se de um civil.
"Hisham cruzou a fronteira para Gaza devido à sua doença", afirmou seu pai, Sha'aban al-Sayed, referindo-se aos problemas de saúde mental do filho. A família ficou sem saber de seu paradeiro por três meses após o desaparecimento. Até que o Hamas divulgou um comunicado anunciando que ele era refém em Gaza.
"Como família, isso nos atinge onde mais dói", disse o pai à DW.
Quem é Avera Mengistu
Avera Mengistu é outro prisioneiro do Hamas em Gaza. Judeu israelense de ascendência etíope, ele é natural da cidade de Ashkelon, no sul de Israel.
Em 2014, Mengistu cruzou a fronteira para o enclave por conta própria, mas foi capturado pelo Hamas. Como no caso de Sayed, o grupo argumenta que ele é um soldado israelense – enquanto a HRW garante que Mengistu é civil, não combatente.
As semelhanças não param por aí. Segundo a ONG de direitos humanos, Mengistu também sofre de problemas "sérios" de saúde mental.
"Avera atravessou uma das fronteiras mais seguras do mundo, sob os olhos dos serviços de segurança", lembra Gil Elias, um parente. "Estamos falando de uma pessoa com problemas mentais que se perdeu."
Vídeos dão sinais de vida
Ambas as famílias tiveram vislumbres de esperança ao longo dos anos, por meio de vídeos de seus parentes no cativeiro do Hamas.
Um vídeo de Mengistu divulgado em janeiro de 2023 mostrava-o pedindo ao governo israelense que negociasse sua libertação. "Eu o reconheci imediatamente", diz Gil Elias. "Ele parecia estar em boa forma física, pelo que pudemos perceber."
Para a família Sayed, no entanto, imagens divulgadas pelo Hamas lhes deram motivos para se preocupar com a condição física de Hisham. Num vídeo disponibilizado em junho de 2022, o árabe israelense é visto deitado na cama, conectado a equipamentos médicos.
O pai Sha'aban acredita que o vídeo tem como objetivo pressionar as famílias e o governo israelense: "Tudo isso faz parte da guerra psicológica do Hamas."
Para cada família, um culpado
Embora existam muitas semelhanças entre os dois casos, a diferença mais significativa é a forma como as críticas são expressas por cada família e quem elas dizem ser o culpado.
Gil Elias lembra como a família Mengistu confiou no governo israelense para trazer Avera de volta para casa. Os parentes não falaram publicamente sobre o caso durante um ano.
"Estamos falando de uma família firmemente sionista", que, segundo ele, fez o que o governo lhe disse para fazer e permaneceu em silêncio. "Essa ingenuidade é o que tem mantido Avera em Gaza por mais de nove anos."
Enquanto o parente de Mengistu atribui a culpa ao governo israelense, a família Sayed afirma que o Hamas, e somente o Hamas, é responsável pela situação de seu filho. Para eles, o grupo age contra a religião do Islã ao manter Hisham e Avera como reféns.
"No Islã, os pecados dos doentes mentais não contam", diz Sha'aban al-Sayed. "Se eles só estão dispostos a libertar doentes mentais se receberem algo em troca, estão agindo contra o Islã. Eles deveriam parar de dizer que são uma organização muçulmana. Eu digo isso como um muçulmano."
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Duas comunidades discriminadas em Israel
É aí que as diferenças terminam. As famílias mantêm contato regular entre si, e ambas descrevem as relações como respeitosas e calorosas.
Mas os casos de Mengistu e Sayed também representam histórias mais amplas de suas respectivas comunidades em Israel: tanto os beduínos quanto os etíopes sofrem com a discriminação estrutural na sociedade israelense.
Não à toa, os apelos pela libertação de Mengistu e Sayed quase não foram ouvidos durante os muitos anos em que os dois têm estado presos em Gaza.
Até que os ataques terroristas do Hamas em 7 de outubro de 2023 trouxeram um desdobramento inesperado: o fato de o grupo ter feito mais de 240 reféns transformou a questão numa prioridade nacional. O caso deles comoveu a sociedade, e a campanha por sua libertação foi amplamente notada nas redes sociais e nas ruas de Israel.
Famílias se sentem menos abandonadas
De repente, as famílias Sayed e Mengistu não estavam mais sozinhas. "No início, ninguém estava interessado em nós. O Holocausto que ocorreu em 7 de outubro – e insisto em chamá-lo de Holocausto – intensificou interesse em nosso caso", diz Sha'aban al-Sayed.
Gil Elias descreve uma sensação semelhante, afirmando que o fato de o Hamas manter tantos cidadãos israelenses como reféns "aumentou as chances de Avera".
"Hoje eu sinto o abraço caloroso que recebemos. Avera pode não ser o principal motivo desse abraço, mas as pessoas entendem seu caso com muito mais clareza agora."
Recentemente, Avera Mengistu e Hisham al-Sayed foram adicionados à lista de nomes representados pelo Fórum de Famílias de Reféns e Pessoas Desaparecidas, o que significa que ambos estão incluídos na campanha mundial pela libertação dos reféns israelenses.
Gil Dickmann, cujo primo Yarden Gat foi sequestrado pelo Hamas em 7 de outubro, resumiu os sentimentos de muitos israelenses em seu perfil no Instagram.
"Gil [Elias] já está passando por isso há nove anos. Se estivéssemos ao lado dele e de sua família, talvez todos nós tivéssemos sido poupados desse pesadelo de mais de 100 dias."
O parente Gil Elias afirma que o caso de Mengistu representa algo muito mais amplo que um simples refém mantido por um grupo terrorista: "Eu sempre digo que o caso de Avera é o teste de cidadania da sociedade israelense. E é um teste em que fomos reprovados."
A longa história do processo de paz no Oriente Médio
Por mais de meio século, disputas entre israelenses e palestinos envolvendo terras, refugiados e locais sagrados permanecem sem solução. Veja um breve histórico sobre o conflito.
Foto: PATRICK BAZ/AFP/Getty Images
1967: Resolução 242 do Conselho de Segurança da ONU
A Resolução 242 do Conselho de Segurança das Nações Unidas, aprovada em 22 de novembro de 1967, sugeria a troca de terras pela paz. Desde então, muitas das tentativas de estabelecer a paz na região referiram-se a ela. A determinação foi escrita de acordo com o Capítulo 6 da Carta da ONU, segundo o qual as resoluções são apenas recomendações e não ordens.
Foto: Getty Images/Keystone
1978: Acordos de Camp David
Em 1973, uma coalizão de Estados árabes liderada pelo Egito e pela Síria lutou contra Israel no Yom Kippur ou Guerra de Outubro. O conflito levou a negociações de paz secretas que renderam dois acordos 12 dias depois. Esta foto de 1979 mostra o então presidente egípcio Anwar Sadat, seu homólogo americano Jimmy Carter e o premiê israelense Menachem Begin após assinarem os acordos em Washington.
Foto: picture-alliance/AP Photo/B. Daugherty
1991: Conferência de Madri
Os EUA e a ex-União Soviética organizaram uma conferência na capital espanhola. As discussões envolveram Israel, Jordânia, Líbano, Síria e os palestinos – mas não da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) –, que se reuniam com negociadores israelenses pela primeira vez. Embora a conferência tenha alcançado pouco, ela criou a estrutura para negociações futuras mais produtivas.
Foto: picture-alliance/dpa/J. Hollander
1993: Primeiro Acordo de Oslo
Negociações na Noruega entre Israel e a OLP, o primeiro encontro direto entre as duas partes, resultaram no Acordo de Oslo. Assinado nos EUA em setembro de 1993, ele exigia que as tropas israelenses se retirassem da Cisjordânia e da Faixa de Gaza e que uma autoridade palestina autônoma e interina fosse estabelecida por um período de transição de cinco anos. Um segundo acordo foi firmado em 1995.
Foto: picture-alliance/dpa/A. Sachs
2000: Cúpula de Camp David
Com o objetivo de discutir fronteiras, segurança, assentamentos, refugiados e Jerusalém, o então presidente dos EUA, Bill Clinton, convidou o premiê israelense Ehud Barak e o presidente da OLP Yasser Arafat para a base militar americana em julho de 2000. No entanto, o fracasso em chegar a um consenso em Camp David foi seguido por um novo levante palestino, a Segunda Intifada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/R. Edmonds
2002: Iniciativa de Paz Árabe
Após Camp David, seguiram-se encontros em Washington e depois no Cairo e Taba, no Egito – todos sem resultados. Mais tarde, em março de 2002, a Liga Árabe propôs a Iniciativa de Paz Árabe, convocando Israel a se retirar para as fronteiras anteriores a 1967 para que um Estado palestino fosse estabelecido na Cisjordânia e em Gaza. Em troca, os países árabes concordariam em reconhecer Israel.
Foto: Getty Images/C. Kealy
2003: Mapa da Paz
Com o objetivo de desenvolver um roteiro para a paz, EUA, UE, Rússia e ONU trabalharam juntos como o Quarteto do Oriente Médio. O então primeiro-ministro palestino Mahmoud Abbas aceitou o texto, mas seu homólogo israelense Ariel Sharon teve mais reservas. O cronograma previa um acordo final sobre uma solução de dois estados a ser alcançada em 2005. Infelizmente, ele nunca foi implementado.
Foto: Getty Iamges/AFP/J. Aruri
2007: Conferência de Annapolis
Em 2007, o então presidente dos EUA George W. Bush organizou uma conferência em Annapolis, Maryland, para relançar o processo de paz. O premiê israelense Ehud Olmert e o presidente da ANP Mahmoud Abbas participaram de conversas com autoridades do Quarteto e de outros Estados árabes. Ficou acordado que novas negociações seriam realizadas para se chegar a um acordo de paz até o final de 2008.
Foto: picture-alliance/dpa/S. Thew
2010: Washington
Em 2010, o enviado dos EUA para o Oriente Médio, George Mitchell, convenceu o premiê israelense, Benjamin Netanyahu, a implementar uma moratória de 10 meses para assentamentos em territórios disputados. Mais tarde, Netanyahu e Abbas concordaram em relançar as negociações diretas para resolver todas as questões. Iniciadas em setembro de 2010, as negociações chegaram a um impasse dentro de semanas.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Milner
Ciclo de violência e cessar-fogo
Uma nova rodada de violência estourou dentro e ao redor de Gaza no final de 2012. Um cessar-fogo foi alcançado entre Israel e os que dominavam a Faixa de Gaza, mas quebrado em junho de 2014, quando o sequestro e assassinato de três adolescentes em mais violência. O conflito terminou com um novo cessar-fogo em 26 de agosto de 2014.
Foto: picture-alliance/dpa
2017: Conferência de Paris
A fim de discutir o conflito entre israelenses e palestinos, enviados de mais de 70 países se reuniram em Paris. Netanyahu, porém, viu as negociações como uma armadilha contra seu país. Tampouco representantes israelenses ou palestinos compareceram à cúpula. "Uma solução de dois Estados é a única possível", disse o ministro francês das Relações Exteriores Jean-Marc Ayrault, na abertura do evento.
Foto: Reuters/T. Samson
2017: Deterioração das relações
Apesar de começar otimista, o ano de 2017 trouxe ainda mais estagnação no processo de paz. No verão do hemisfério norte, um ataque contra a polícia israelense no Monte do Templo, um local sagrado para judeus e muçulmanos, gerou confrontos mortais. Em seguida, o plano do então presidente dos EUA, Donald Trump, de transferir a embaixada americana para Jerusalém minou ainda mais os esforços de paz.
Foto: Reuters/A. Awad
2020: Tiro de Trump sai pela culatra
Trump apresentou um plano de paz que paralisava a construção de assentamentos israelenses, mas mantinha o controle de Israel sobre a maioria do que já havia construído ilegalmente. O plano dobrava o território controlado pelos palestinos, mas exigia a aceitação dos assentamentos construídos anteriormente na Cisjordânia como território israelense. Os palestinos rejeitaram a proposta.
Foto: Reuters/M. Salem
2021: Conflito eclode novamente
Planos de despejar quatro famílias palestinas e dar suas casas em Jerusalém Oriental a colonos judeus levaram a uma escalada da violência em maio de 2021. O Hamas disparou foguetes contra Israel, enquanto ataques aéreos militares israelenses destruíram prédios na Faixa de Gaza. A comunidade internacional pediu o fim da violência e que ambos os lados voltem à mesa de negociações.
Foto: Mahmud Hams/AFP
2023: Terrorismo do Hamas e retaliações de Israel
No início da manhã de 7 de outubro, terroristas do grupo radical islâmico Hamas romperam barreiras em alguns pontos da Faixa de Gaza, na fronteira com Israel, e, em território israelense, feriram e mataram centenas de pessoas, além de sequestrarem mais de uma centena. Devido a isso, Israel declarou "estado de guerra" e iniciou uma série de bombardeios, deixando partes da Cidade de Gaza em ruínas.