O controverso legado da troica em Portugal
3 de fevereiro de 2015A peixeira Graça Santos, de 52 anos, não tem papas na língua. Em meio ao trabalho no famoso Mercado do Bolhão, no Porto, ela fala mal dos políticos portugueses, para ela corruptos, incompetentes e preguiçosos. Segundo Graça, o país foi arruinado pela estupidez e pelo egoísmo, e por isso teve que recorrer ao resgate da União Europeia, liberado somente em maio de 2014.
“Os ricos não foram prejudicados”, opina a vendedora, enquanto recebe mais peixes. “Mas nós, os pobres, tivemos que fazer grandes sacrifícios para sobreviver com dignidade.”
O português teve de engolir, de um lado, as reduções na renda, cortes nas pensões e aposentadorias, e aumento de impostos. De outro, viu privatização de empresas, aumento na carga de trabalho semanal e na idade mínima para a aposentadoria, redução drástica de benefícios sociais e deterioração do serviço nacional de saúde.
O governo liberal de direita não deixou de usar nenhuma das alternativas de arrocho sugeridas pela troica em troca do resgate da economia portuguesa. Graça sentiu na pele os efeitos das medidas: com a queda brusca nas vendas, ela teve também que assumir os cuidados da sua mãe doente.
“Minha mãe tem 80 anos e sofre de diabetes. A sua pensão não é suficiente para a compra dos seus medicamentos. Eu tenho que lhe dar dinheiro para que ela possa comprar comida.”
Dois pesos e duas medidas
O balanço dos três anos da troica em Portugal é controverso: o desempenho da economia não melhorou; o índice de desemprego não fica abaixo dos 13% e a dívida pública subiu para mais de 130% do PIB. Além disso, uma boa parte da "nova" classe média portuguesa voltou à pobreza, e 120 mil trabalhadores com boa formação migraram no ano passado.
“O documentarista Pedro Neves fez com oito colegas um livro de fotografias e um filme sobre a fase difícil do país. O “Projeto Troica”, que também está disponível em DVD, foi financiado por “Crowdfundig”.
"O pior é que esta crise ainda não passou”, reclama o diretor de 38 anos. "É claro que os mais vulneráveis economicamente são os mais atingidos." Ele conta que filmou com um homem que teve o seguro social do Estado reduzido em 20 euros. “Desde então ele vive nas ruas porque não consegue mais pagar o aluguel do seu quarto.”
Esperança de recuperação
No entanto, o presidente da Associação de Comércio e Indústria do Porto, Nuno Botelho, é otimista. Ele garante que a economia vai crescer novamente. O escritório de Botelho é no antigo Palácio da Bolsa, um exuberante prédio perto do rio Douro, decorado com madeira exótica e pinturas a óleo nas paredes. Antigamente as ações eram negociadas na bela sala de cerimônias.
Ele diz que as empresas de médio-porte estão em casa no Porto e no Norte do país. A indústria têxtil produz para marcas de primeira linha da Europa; a indústria de calçados tem expressão mundial e concorre até mesmo com as marcas italianas. Mais da metade da receita de exportação portuguesa vem do Porto e região.
“Eu admito francamente que antes existia desperdício. Não tão grande quanto foi sugerido, mas existia. Sob este ponto de vista, a política austera foi positiva”, opina. Apesar das dificuldades do período, segundo ele, empresas continuam ativas e até mesmo novas foram abertas. Portugal, afirma, está de volta aos trilhos também graças à troica.
Contra o perdão a Atenas
Por isso Botelho não compreende as últimas reivindicações da Grécia. Concorda que é necessário respeitar a soberania do povo, mas as pessoas não podem reivindicar um tratamento especial. Ele rejeita rigorosamente a possibilidade de corte na dívida: “Se a Grécia quer sair do euro, pode fazê-lo. Se eu não quero pertencer a um grupo específico, eu tenho de sair.”
Quanto mais fortes são as exigências gregas para a renegociação da dívida, mais pesadas são as críticas portuguesas. Eles defendem esta posição sempre – nas esquinas, nos cafés, mas é claro também na mídia, nos programas interativos de rádio e televisão.
“Não deve haver nenhum corte na dívida. Eu preciso também pagar cada centavo de volta. Assim, os gregos também têm de pagar o que devem”, diz a vendedora de peixe do Mercado do Bolhão.
Graça Santos considera importante a anunciada luta contra a corrupção e evasão fiscal na Grécia. Para ela, a vitória eleitoral do Syriza é um sinal de esperança. A exemplo da Grécia, afirma, os partidos estabelecidos no poder em Portugal levaram o país a novas crises sem apresentarem alternativas de conforto ao povo.
Para a vendedora, é a hora de a Europa – e Portugal – dar uma guinada para a esquerda. E sobre um possível perdão da dívida grega, é categórica: "Nunca!"