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HistóriaAlemanha

O crime do nazismo contra as crianças da "Vergonha Negra"

Stefan Neumann
9 de janeiro de 2021

A partir de 1937 foram esterilizadas compulsoriamenrte centenas de filhos de alemãs com soldados das colônias francesas. Uma história que começa com o Tratado de Versalhes e desemboca no desvario racista dos nazistas.

Foto antiga mostra criança negra entre crianças brancas na Alemanha
Estão documentados 436 casos de esterelização de crianças fruto de relações inter-raciais, mas o número real deve ser bem mais altoFoto: DOCDAYS Productions GmbH

Josef Kaiser tinha 16 anos de idade em 1937, quando dois homens da Gestapo o agarraram e levaram ao Hospital Municipal de Ludwigshafen. Lá ele foi esterilizado contra a vontade. Sua irmã teve o mesmo destino, assim como centenas de jovens cujo único "defeito" era serem filhos de uma alemã com um soldado das colônias francesas.

Essa brutal ingerência era o clímax de uma dinâmica iniciada 17 anos antes, com a ocupação aliada na Renânia, imposta à Alemanha pelo Tratado de Versalhes, após a derrota na Primeira Guerra Mundial. Dos 100 mil soldados enviados em janeiro de 1920 pela França para a região, cerca de um quinto provinha dos territórios coloniais. Como o pai de Josef, natural de Madagascar.

No clima político inflamado da República de Weimar, sua presença logo gerou tensões. Após a perda de suas próprias colônias, os alemães percebiam essa imposição como uma monstruosa humilhação.

"A Vergonha Negra"

Com entusiástica participação de organizações estatais e civis, iniciou-se uma campanha de propaganda racista, sob o título "A Vergonha Negra". Em panfletos e artigos, os soldados coloniais eram apresentados como "feras selvagens", que se lançavam sobre a população alemã, estuprando e assassinando.

Em salas como esta, crianças foram esterelizadas à força no verão de 1937Foto: DOCDAYS Productions GmbH

Não só círculos nacionalistas ou conservadores avançavam essa campanha: racismo e eugenia estavam profundamente arraigados na sociedade alemã. Políticos social-democratas, como o presidente do Reich Friedrich Ebert ou o ministro do Exterior Adolf Köster, tachavam a mobilização de tropas francesas "da mais baixa camada cultural" como um "crime espiritual" contra o povo alemão.

A estratégia política contava que esse racismo também fosse comunicável no estrangeiro, para ao mesmo tempo desacreditar as estipulações do Tratado de Versalhes: com base em preconceitos comuns, pretendia-se restabelecer a solidariedade internacional com a Alemanha.

Respaldados pelo material de propaganda do Ministério do Exterior, publicaram-se por todo o mundo artigos difamadores sobre os soldados coloniais. Como o do deputado trabalhista britânico Edmund Dene Morel, acusando a França de soltar contra a população alemã "negros selvagens" e "bárbaros primitivos", cuja "incontrolável bestialidade" já resultara em numerosos estupros. Mas, embora a propaganda tenha persistido por bastante tempo, o pretendido "sucesso" de política externa não se concretizou.

Da difamação às esterilizações forçadas

Caricatura publicada na capa da revista satírica "Kladderadatsch" retratava homens como macacos selvagensFoto: Universitätsbibliothek Heidelberg

Apesar dos intensos esforços de difamação, houve numerosas relações amorosas entre soldados coloniais e alemãs. Para os nacionalistas, isso era uma afronta, já que um de seus mantras principais era a "violação da mulher alemã".

Na campanha de agitação, o corpo feminino simbolizava o "corpo do povo", a meta era manter ambos "puros". A propaganda oficial não tardou a reagir: a conduta das mulheres foi condenada como "vergonha branca". A partir daí, os frutos dessas relações passaram a ser chamados simplesmente de "bastardos da Renânia".

Estes cresceram com a vivência da exclusão: sua mera existência e a cor escura de sua pele permaneceram para os nacionalistas e revanchistas uma lembrança constante da derrota bélica, e de sua impotência diante das determinações do Tratado de Versalhes.

Já em 1923 as autoridades da República de Weimar começaram com o cadastramento sistemático das crianças. Em 1927, um funcionário governamental requeria a seus superiores no Ministério da Saúde que estudassem a possibilidade de esterilização "através de uma intervenção totalmente indolor". A solicitação foi rejeitada: a legislação impossibilitava medidas compulsórias, até pelo fato de, enquanto filhos de alemãs, as crianças também serem integrantes do Reich.

Apesar dos intensos esforços de difamação, houve numerosas relações amorosas entre soldados coloniais e mulheres alemãsFoto: DW

Tratava-se apenas de um adiamento, contudo: com a tomada de poder pelos nacional-socialistas, o cadastramento dos menores foi ampliado. Alguns foram medidos e fotografados para a pérfida ideologia racial nazista. Em 1937, uma ordem secreta de Adolf Hitler fundou a "Comissão 3" da Gestapo, que acabou por organizar a esterilização ilegal dos jovens. Estão documentados 436 casos, mas o número real deve ser bem mais alto.

Crime sem castigo

Em 1947, dois anos após o fim do domínio nazista, o cruel episódio foi objeto de um processo. Os réus eram três médicos responsáveis, todos membros da Associação Médica Nacional-Socialista (NSDÄB), acusados de lesões corporais intencionais com consequente perda da fertilidade.

Durante o julgamento, nenhum deles mostrou consciência de ter agido errado. Como defesa, alegaram simplesmente ter agido "por ordem do Führer". Não é de espantar que a persecução criminal tenha sido primeiro suspensa, e mais tarde definitivamente encerrada.

Os três acusados encontaram sem problema seu caminho na sociedade alemã do pós-guerra, um deles chegou a ser eleito, poucos anos mais tarde, presidente da Câmara dos Médicos do estado do Sarre.

Para suas vítimas, ficou até o fim da vida a sensação de serem uma indesejada mancha de vergonha. "Eu não tive juventude e, por causa dessa operação, também nenhum futuro mais", desabafou certa vez Josef Kaiser.

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