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O desamparo das vítimas da microcefalia

Karina Gomes28 de janeiro de 2016

Falta de acompanhamento adequado por especialistas põe em risco o futuro das crianças que sofrem da doença. Para médico, governo foca apenas no combate ao mosquito transmissor e negligencia tratamento dos doentes.

Foto: picture-alliance/dpa/R. Fabres

As mensagens não param de chegar. Pelo Whatsapp, Viviane Lima, mãe de duas adolescentes com microcefalia, recebe relatos da angústia de mulheres que tiveram filhos afetados pelo vírus zika.

"São mães carentes que só conseguiram uma sessão de fisioterapia para o bebê pelo SUS para daqui cinco meses. Mães que de repente se veem com uma criança especial em casa e nem sabem se terão comida para o almoço. As mães carentes estão desamparadas", alerta a funcionária pública, que vive em Manaus (AM) e criou o grupo Mães de Anjos Unidas!, que apoia vítimas da microcefalia.

Para chegar à adolescência saudáveis e ativas, Ana Victória, 16, e Maria Luíza, 14, passaram por centenas de sessões de fisioterapia e reabilitação e por consultas com neurologistas, com a cobertura de um plano privado de saúde. Boa parte dos 3.448 bebês que estão com suspeita de microcefalia, a maioria no Nordeste, não tem essa opção.

"O Brasil não está preparado para acompanhar as gestantes com suspeita de zika e dar o acompanhamento devido aos bebês que nascem com a doença", afirma Otto Baptista, presidente da Federação Nacional dos Médicos (Fenam). "Não existe estrutura adequada e suficiente."

De acordo com o mais recente boletim do Ministério da Saúde, divulgado nesta quarta-feira (27/01), há 270 casos confirmados de microcefalia, e seis deles têm relação comprovada com o vírus transmitido pelo mosquito Aedes aegypti. Cerca de 400 suspeitas de microcefalia foram descartadas.

Longa espera

Gleyse Kelly, de Recife, aguarda desde novembro do ano passado o resultado do exame que vai determinar a causa da microcefalia da filha Maria Giovanna, de 3 meses. O laudo deveria ficar pronto em 20 dias. "Até agora não deram nenhuma resposta", conta a agente de arrecadação, que depende do SUS.

O Ministério da Saúde também anunciou nesta quarta que serão distribuídos 500 mil testes de diagnóstico de PCR, por biologia molecular, capaz de relacionar a doença ao vírus zika, aos 27 laboratórios públicos que fazem o exame.

"O governo não está nos dando amparo nenhum. Se não formos atrás, acredito até que ficaremos sem assistência", diz Gleyse, que pretende parar de trabalhar depois do fim da licença-maternidade para acompanhar as terapias da filha. "Ela responde bem às estimulações que eu faço em casa. A única diferença que vejo nela em relação a outras crianças é o tamanho da cabeça. Ela é bem esperta."

Gleyse tenta conseguir acesso ao Benefício de Proteção Continuada, que garante um salário mínimo a pessoas com deficiência e idosos sem aposentadoria. "O processo tem sido muito burocrático. O INSS demora muito para avaliar os casos. Algumas mães tentam há mais de um ano e ainda não conseguiram", conta.

Nesta quarta-feira, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome aprovou a liberação do benefício aos responsáveis por crianças com microcefalia que tenham renda familiar per capita inferior a 220 reais, o que corresponde a um quarto de um salário mínimo.

Gleyse também reclama das filas nas unidades de saúde. "Muitas mães vêm do interior, tem superlotação. O atendimento é muito demorado e, com a grande quantidade de exames, temos que exceder as horas de jejum. É muito difícil."

Despreparo para um surto

Baptista avalia que a disponibilidade de opções de diagnósticos ligados à tomografia computadorizada e ressonância magnética durante o pré-natal e o desenvolvimento da criança está aquém do esperado.

"Já é difícil isso acontecer sem um surto de microcefalia, imagine agora que milhares de mães necessitam desse suporte técnico. A cabeça desse bebês pode se calcificar precocemente, então os exames e a orientação de neurologistas são essenciais para melhorar a qualidade de vida deles", explica o presidente da Fenam, que alerta para o número reduzido de especialistas neuropediatras.

"Em muitos lugares não tem, só em grandes centros. Conforme a região, essas mães terão uma dificuldade enorme para buscar acompanhamento médico."

As equipes interdisciplinares que oferecem fisioterapia e reabilitação, além de atendimento psicológico às mães, também não são suficientes. Associações da sociedade civil que atendem crianças especiais, como Apae e Pestalozzi, podem não ter estrutura para absorver a demanda, prevê Baptista.

"O caos no SUS já está instalado. Até mesmo nos grandes centros não há uma quantidade suficiente de equipes interdisciplinares", afirma. "O foco está apenas no diagnóstico e no combate ao Aedes aegypti, mas a continuidade do tratamento não recebe a atenção necessária. Diante do aumento progressivo de casos de microcefalia, não existe a mínima posição do governo."

Questionado pela DW Brasil, o Ministério da Saúde informou que criou um documento com "diretrizes de estimulação precoce" para crianças com "atraso no desenvolvimento neuropsicomotor decorrente de microcefalia" e que vai capacitar cerca de 7,5 mil profissionais. O SUS conta com 1.543 serviços de reabilitação em diferentes áreas, que devem ser melhor estruturados, como previsto no Plano Nacional de Enfrentamento à Microcefalia, lançado em 2015.

Viviave Lima com as três filhas: Ana Victória, 16 (à direita), e Maria Luíza, 14 (à esquerda), têm microcefaliaFoto: Bruno Kelly

"Não vejo mudanças"

O governo também falha em outras áreas que envolvem o desenvolvimento de crianças especiais, como a educação. As filhas de Viviane Lima, que, além da microcefalia, têm dislexia e hiperatividade, foram reprovadas na escola pública em 2015 por falta de acompanhamento específico.

"Não se pode cobrar nota de pessoas com deficiência. Deve haver relatórios com a evolução do desempenho. Além disso, elas precisam de um auxiliar de classe que as ajude durante as aulas. O sistema de ensino não oferece isso, mas elas precisam ir à escola regular, assim como outros alunos da idade delas", diz.

Quando a primeira filha de Viviane nasceu pouco se falava sobre microcefalia no Brasil. Em 15 anos, ela disse que viu pouca coisa mudar. "Não vejo o Ministério da Saúde falar em fazer políticas públicas e lançar projetos para assistir as crianças e as mães. Elas também precisam de ajuda psicológica. Muitas estão sem saber o que fazer. Eu acredito que a situação possa mudar, mas eu ainda não vejo mudança", diz a criadora do grupo Mães de Anjos Unidas!.

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