Google mostra que grande parte das buscas pelo Estado asiático vem do Brasil. Polarização provocada pelo pequeno país, isolado do mundo e menor que o Acre, leva brasileiros a traçarem paralelos, apontam especialistas.
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No disputado noticiário nacional, tomado por escândalos de corrupção, aumento da violência e casos de estupro, um assunto distante desperta o interesse dos brasileiros: a ameaça representada pela Coreia do Norte.
Desde de o início da série mais recente de testes nucleares e de mísseis conduzidos pelo pequeno país asiático, o Google mostra que os brasileiros estão entre os que mais pesquisam termos relacionados ao assunto.
Esse interesse mexeu com o cotidiano de Thiago Mattos. Ele cursou o último ano de graduação em Relações Internacionais na vizinha e rival Coreia do Sul e nunca foi tão solicitado para dar palestras sobre sua experiência.
"As pessoas querem saber como é de fato a vida das pessoas na Coreia do Norte – se elas são mandadas para campos de concentração, por exemplo –, se o país pode mesmo provocar uma Terceira Guerra Mundial, ou têm interesses gerais na cultura de lá", diz Mattos sobre os motivos dos convites.
Ele transformou a experiência asiática em tema de pesquisa de mestrado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e se prepara para compor um pequeno time de especialistas na península coreana.
A guerra lá e aqui
Como a maioria dos cidadãos do mundo, o brasileiro também pode estar tentando entender como um país menor que o estado do Acre e tão isolado se atreve a desafiar a maior potência bélica do mundo, os Estados Unidos.
É o que Paulo Watanabe, professor de Segurança Internacional da Universidade Estadual Paulista (Unesp), chama de "conflito tradicional”, ou um Estado ameaçando diretamente outro Estado, o que não acontece desde a Guerra Fria.
Verdades e mitos sobre a dinastia Kim
Família governa a Coreia do Norte desde a fundação do país, há quase sete décadas, com um culto quase divino às personalidades de Kim Il-sung, Kim Jong-il e Kim Jong-un.
Foto: picture alliance / dpa
Um jovem líder
Kim Il-sung, o primeiro e "eterno" presidente da Coreia do Norte, assumiu o poder em 1948 com o apoio da União Soviética. O calendário oficial do país começa no seu ano de nascimento, 1912, designando-o de "Juche 1", em referência ao nome da ideologia estatal. O primeiro ditador norte-coreano tinha 41 anos ao assinar o armistício que encerrou a Guerra da Coreia (foto).
Foto: picture-alliance/dpa
Idolatria
Após a guerra, a máquina de propaganda de Pyongyang trabalhou duro para tecer uma narrativa mítica em torno de Kim Il-sung. A sua infância e o tempo que passou lutando contra as tropas japonesas nos anos 1930 foram enobrecidas para retratá-lo como um gênio político e militar. No congresso partidário de 1980, Kim anunciou que seria sucedido por seu filho, Kim Jong-il.
Foto: picture-alliance/AP Photo
No comando até o fim
Em 1992, Kim Il-sung começou a escrever e publicar sua autobiografia, "Memórias – No transcurso do século." Ao descrever sua infância, o líder norte-coreano afirmou que ao 6 anos participou de sua primeira manifestação contra os japoneses e, aos 8, envolveu-se na luta pela independência. As memórias permaneceram inacabadas com a sua morte, em 1994.
Foto: Getty Images/AFP/JIJI Press
Nos passos do pai
Depois de passar alguns anos no primeiro escalão do regime, Kim Jong-il assumiu o poder após a morte do pai. Seus 16 anos de governo foram marcados pela fome e pela crise econômica num país já empobrecido. Mas o culto de personalidade em torno dele e de seu pai, Kim Il-sung, cresceu ainda mais.
Foto: Getty Images/AFP/KCNA via Korean News Service
Nasce uma estrela
Historiadores acreditam que Kim Jong-il nasceu num campo militar no leste da Rússia, provavelmente em 1941. Mas a biografia oficial afirma que o nascimento dele aconteceu na montanha sagrada coreana de Paekdu, exatamente 30 anos após o nascimento de seu pai, em 15 de abril de 1912. Segundo uma lenda, esse nascimento foi abençoado por uma nova estrela e um arco-íris duplo.
Foto: picture-alliance/AP Photo
Problemas familiares
Kim Jong-il teve três filhos e duas filhas com três mulheres, até onde se sabe. Esta foto de 1981 mostra Kim Jong-il sentado ao lado de seu filho Kim Jong-nam, fruto de um caso com a atriz Song Hye-rim (que não aparece na foto). A mulher à esquerda é Song Hye-rang, irmã de Song Hye-rim, e os dois adolescentes são filhos de Song Hye-rang. Kim Jong-nam foi assassinado em 2017.
Foto: picture-alliance/dpa
Procurando um sucessor
Em 2009, a mídia ocidental informou que Kim Jong-il havia escolhido seu filho mais novo, Kim Jong-un, para assumir a liderança do regime. Os dois apareceram juntos numa parada militar em 2010, um ano antes da morte de Kim Jong-il.
Foto: picture-alliance/AP Photo/V. Yu
Juntos
Segundo Pyongyang, a morte de Kim Jong-il em 2011 foi marcada por uma série de acontecimentos misteriosos. A mídia estatal relatou que o gelo estalou alto num lago, uma tempestade de neve parou subitamente e o céu ficou vermelho sobre a montanha Paekdu. Depois da morte de Kim Jong-il, uma estátua de 22 metros de altura do ditador foi erguida próxima à de seu pai (esq.) em Pyongyang.
Foto: picture-alliance/dpa
Passado misterioso
Kim Jong-un manteve-se fora de foco antes de subir ao poder. Sua idade também é motivo de controvérsia, mas acredita-se que ele tenha nascido entre 1982 e 1984. Ele estudou na Suíça. Em 2013, ele surpreendeu o mundo ao se encontrar com Dennis Rodman, antiga estrela do basquete americano, em Pyongyang.
Foto: picture-alliance/dpa
Um novo culto
Como os dois líderes antes dele, Kim Jong-un é tratado como um santo pelo regime estatal totalitário. Em 2015, a mídia sul-coreana reportou sobre um manual escolar que sustentava que o novo líder já sabia dirigir aos 3 anos. Em 2017, foi anunciado pela mídia estatal que um monumento em homenagem a ele seria construído no Monte Paekdu.
Foto: picture alliance/dpa/Kctv
Um Kim com uma bomba de hidrogênio
Embora Kim tenha chegado ao poder mais jovem e menos conhecido do público que seu pai e seu avô, ele conseguiu manter o controle do poder. O assassinato de seu meio-irmão Kim Jong-nam, em 2017, serviu para cimentar sua reputação externa de ditador impiedoso. O líder norte-coreano também expandiu o arsenal de armas do país.
Foto: picture-alliance/AP/A. Young-joon
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"Nos últimos anos, temos a Coreia do Norte como principal questionador do poder americano. Os norte-coreanos deixaram claro que, depois dos testes, estão em pé de igualdade com os Estados Unidos, ou querem ser considerados dessa forma", afirma.
Num cenário de guerra, o que significaria o fim de um dos lados, principalmente da Coreia do Norte, a repercussão seria imediata em todo o mundo – inclusive no Brasil. "Vai afetar a economia, principalmente a China. E a China é basicamente a raiz de todo comércio internacional, sobretudo quando se fala do Brasil. Existem riscos para a estabilidade aqui também", pontua Watanabe.
Por enquanto, o conflito é percebido com uma lógica binária: democracia x ditadura, racionalidade x irracionalidade, globalização x isolamento, capitalismo x comunismo. "Quando a gente olha para o momento atual do Brasil, essa polarização encontra bastante eco na nossa sociedade", comenta Cláudia Marconi, pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP).
A polarização separada por milhares de quilômetros de distância estimula os brasileiros a traçarem paralelos com a política local. "Foi como o que aconteceu com o ‘vai pra Cuba', tão usado nos momentos mais acirrados da crise política brasileira", arrisca Mattos, mencionando a expressão que virou símbolo do embate entre direita e esquerda.
Catástrofe nuclear e violência
José Paulo Fiks recorre à imprensa internacional para se manter atualizado. Psiquiatra e pesquisador do Programa de Atendimento e Pesquisa em Violência da Universidade Federal de Sao Paulo (Unifesp), ele se lembra da paranoia dos tempos da Guerra Fria quando viveu na Europa, na década de 1980.
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Na interpretação de Fiks, especialista em estudo de traumas, os brasileiros estão tentando entender o que se passa naquele universo fechado da Coreia da Norte, onde as informações divulgadas nunca podem ser comprovadas em qualquer fonte.
Embora não haja um trauma coletivo com experiências de guerra no Brasil, como na Coreia do Norte, a ditadura já reinou no país sul-americano. "Mas essa memória do medo da ditadura não existe aqui. A memória para esse tipo de terror de Estado, de terror político, é muito pequena", comenta Fiks.
O medo do brasileiro é do dia a dia, ao sair de casa. "Os nossos receptores cerebrais e sistemas de alarme estão mais voltados para essa realidade brasileira, típica da violência urbana latino-americana, a maior do mundo", ressalta o psiquiatra.
Diante da violência urbana, o medo se mostra de maneira distinta em diferentes níveis da sociedade brasileira. Estudos mostram que, quanto menor a renda, maior é o temor de se tornar vítima. Entre os brasileiros que ganham mais, esse medo é menor – carros blindados e casas vigiadas aumentam a sensação de segurança.
Mas quando a ameaça é de uma catástrofe nuclear, como a provocada após o recente teste de uma suposta bomba de hidrogênio pela Coreia do Norte, tudo muda. "Essa ameaça ativa uma percepção de que somos todos vulneráveis. O que não deixa de capturar os brasileiros", sugere Marconi.
Os encantos secretos da Coreia do Norte
Natural de Cingapura, o fotógrafo Aram Pan percorreu durante vários dias o território da ditadura comunista na Ásia. Mas se recusou a abordar política: para ele o que contam são belezas naturais e arquitetônicas.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Tranquila beleza de Pyongyang
O fotógrafo cingapurense Aram Pan viajou em 2013 à Coreia do Norte para realizar o projeto DPRK 360, em que buscou imortalizar o povo e a forma de vida desse hermético Estado asiático, expondo as imagens online. Esta foi tirada do Hotel Yanggakdo, onde Pan se hospedou durante sua estada na capital, Pyongyang.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Ao pé dos ídolos nacionais
O Grande Monumento Mansudae é um dos pontos turísticos mais visitados da capital norte-coreana. Turistas locais e internacionais costumam depositar flores aos pés das gigantescas estátuas dos líderes comunistas Kim Il-sung e Kim Jong-il, que se destacam em meio à esplanada extremamente bem cuidada.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Polícia robótica
Aram Pan conta que a policial da foto se manteve imóvel apenas os segundos necessários para registrá-la. Embora no país não circulem muitos automóveis, as cidades mantêm funcionários encarregados de manter a ordem no tráfego – para o que executam movimentos rítmicos, como robôs.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Metrô sob o signo do perigo
São 15h de um dia de agosto de 2013. Embora não seja horário de pico, o metrô da capital está abarrotado. As estações do meio de transporte urbano, que dispõe de duas linhas, foram construídas a vários metros de profundidade, a fim de resistirem a eventuais bombardeios.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
"Shiny happy people"
Cidadãos dançando felizes e despreocupados, numa ditadura comunista? Além de não interferir no que registra, Pan se recusa a discutir política. Ele pede aos que veem suas fotografias que não pensem nele, mas na gente e nas paisagens do país. "Ninguém viaja a um país para fotografar cárceres", argumenta, ao ser criticado por mostrar uma Coreia do Norte amável. A imagem foi feita perto de Wonsan.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Sol, areia e mar
Na costa norte-coreana, não há diferença visível entre os divertimentos dos cidadãos nas praias e os de qualquer democracia do mundo. Eles jogam voleibol, brincam na areia, entram de boia na água. Não faltam chuveiros para tirar a areia antes da volta para casa. Em muitas fotografias de Pan veem-se rostos sorridentes.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Chove sobre a cidade
Dia de chuva em Wonsan, na costa leste. Aram Pan brinca, afirmando que as pessoas sabem mais sobre o cosmos do que sobre a Coreia do Norte. E acrescenta que deseja contribuir com seu pequeno grão de areia para que isso mude.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
De guarda-chuva no palácio
Estas graciosas meninas são alunas do Palácio de Crianças de Mangyongdae, uma escola perto de Pyongyang. Dança, música, interpretação teatral e desenho são algumas das disciplinas ensinadas na conceituada instituição pública.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Talento genuíno
O fotógrafo de Cingapura conta que esteve cinco minutos observando este garoto desenhar e pode atestar que seu talento é genuíno. Alguns visitantes da página do DPRK 360 no Facebook duvidam da autenticidade das fotografias, que poderiam ser encenadas ou seriam meras atuações para os turistas. Aram Pan assegura que não é o caso.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Sensacional coordenação
O famoso Festival Arirang, de que participam até cem mil ginastas, é uma das maiores demonstrações de trabalho coordenado do mundo. A celebração iniciada em 2002, em honra do fundador da nação, Kim Il-sung, é outra das grandes atrações turísticas norte-coreanas.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Expressão da normalidade
Perto de Kaesong, cidade famosa por dispor de fábricas de investidores sul-coreanos, Aram Pan viu esta senhora que passeava com uma menina. Ele diz que a imagem expressa exatamente o que desejava mostrar da Coreia do Norte: gente comum e normal.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Maravilhas de natureza
Os arredores do monte Kumgang são muito frequentados pelos norte-coreanos, que lá vão para fazer piquenique enquanto admiram a paisagem. A região é umas das grandes apostas do regime: o país aspira transformar-se em polo turístico internacional, e maravilhas naturais como Kumgangsam deverão convencer até os mais céticos.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Vida noturna na capital
À noite, os moradores de Pyongyang tomam o bonde para voltar à casa. Aram Pan enfatiza a misteriosa beleza noturna da cidade, quando o silêncio toma conta dela e as luzes lhe conferem uma atmosfera inigualável.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Maior que o de Paris
Construído em 1982 em homenagem ao 70º aniversário do líder Kim Il-sung, o Arco do Triunfo de Pyongyang é uma dezena de metros mais alto do que seu equivalente em Paris, em cuja arquitetura é baseado. Também aqui a escuridão do céu e a iluminação urbana criam um clima mágico.
Foto: Aram Pan, All Rights Reserved
Um mundo sem política?
Enquanto o sol se põe na capital, vê-se, em primeiro plano, a Torre Juche, enorme obelisco de 170 metros de altura também erguido em 1982 em honra de Kim Il-sung. O fotógrafo Aram Pan não quer saber de conflitos, ideologias ou violações dos direitos humanos: para ele o que conta são as belezas naturais e arquitetônicas da Coreia do Norte, as quais quer mostrar ao mundo em seu projeto DPRK 360.