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O drama de um padre que ajuda venezuelanos em Pacaraima

Yan Boechat de Pacaraima
1 de setembro de 2018

Antes querido pela comunidade local, Jesus de Bobadilla sente a ira dos moradores por oferecer ajuda humanitária a refugiados no norte de Roraima. Também imigrante, ele estima ter perdido metade de seus fiéis.

Jesus de Bobadilla
Nascido na Espanha, Jesus de Bobadilla tem sentido a raiva da população de Pacaraima por ajudar os venezuelanosFoto: DW/Y. Boechat

A paróquia da pequena cidade de Pacaraima, no extremo norte de Roraima, vem perdendo fiéis na mesma proporção com que imigrantes venezuelanos cruzam a fronteira brasileira. Desde que a crise migratória teve início, há pouco mais de dois anos, metade do rebanho se foi.

O responsável por manter as ovelhas de Pacaraima nos caminhos de Deus, no entanto, parece não se importar muito com a debandada. "Que se vayan todos", diz, em espanhol mesmo, o padre Jesus de Bobadilla, o pároco local. Nascido no Marrocos e criado na Espanha, Bobadilla está em guerra com Pacaraima desde que começou a acolher os imigrantes que têm chegado em números cada vez maiores a Roraima.

"A cada xingamento, a cada acusação, a cada mentira me sinto mais forte, é como se eu colocasse uma medalha no peito por cada difamação que recebo", diz ele, de sorriso leve, quase tranquilo, quase nervoso. Dono de olhos azuis claros e um sorriso tímido, o padre se transformou no maior inimigo dos moradores de Pacaraima.

"Esse padre é um safado, recebe milhões das ONGs e não passa nem um tostão para os brasileiros, só para os venezuelanos", diz Flávio Siqueira, gerente de uma empresa de ônibus que leva para Boa Vista os imigrantes recém-chegados a Pacaraima.

Sueli Ramos, sua colega responsável pela emissão dos bilhetes, conta que abandonou a igreja há quase um ano. "Esse padre é bêbado, a gente nem sabe o que ele faz com esses venezuelanos lá dentro", conta ela, que teve dois dos seus quatro filhos batizados pelo pároco.

"Já, já aquela igreja vai ficar vazia, ninguém aceita mais o que esse padre está fazendo", conta ela, que diz ter tido uma relação próxima com o padre Jesus até o início da crise migratória. "Ele fez coisas boas, reformou a capela, mas agora só quer saber desse pessoal que vem para cá roubar."

Não muito longe dali, a comerciante Lucimara Azevedo defende a saída do padre da paróquia de Pacaraima. "Ele só pensa nele e nesses venezuelanos, não pensa em nós, que acompanhamos ele por tanto tempo", diz ela. "Já pedimos a saída, mas o bispo de Boa Vista é pior que ele, apoia esse absurdo".

Desde o ataque de brasileiros contra imigrantes venezuelanos, em 18 de agosto, tanto o Exército quanto a Polícia Federal (PF) ofereceram proteção ao padre. Diante da recusa, recomendaram que Bobadilla evite sair sozinho pelas ruas de Pacaraima e tome cuidado nas viagens que faz a Boa Vista. "Minha segurança é o impacto da minha obra, eles sabem que me matar causaria um problema enorme para eles, o que fazemos aqui é reconhecido internacionalmente", diz ele. "Não fosse isso, já estaria morto."

Em todos os dias úteis, a paróquia oferece cerca de 1,3 mil cafés da manhã aos imigrantes venezuelanosFoto: DW/Y. Boechat

Todos os dias da semana, com exceção de sábado e domingo, a paróquia de Pacaraima oferece cerca de 1,3 mil cafés da manhã aos imigrantes venezuelanos que não conseguem seguir viagem após cruzar a fronteira. O trabalho começou com os índios da etnia Warao, os primeiros a imigrar para Roraima com o agravamento da crise venezuelana. Em seguida, o serviço foi estendido aos novos imigrantes que iam chegando e se instalando na cidade.

"Nós nunca perguntamos de onde as pessoas são, se elas são do bem ou do mal, se são ladrões ou usuários de drogas, simplesmente acolhemos todos", diz Bobadilla, ele mesmo um dos que acordam antes de o sol nascer para servir o café da manhã entre as cinco e as sete horas da manhã.

Há nove anos em Pacaraima, o padre mantinha uma boa relação com a comunidade local. Mas as coisas foram mudando com o aumento da crise migratória e a ampliação dos serviços de acolhimento que a paróquia passou a oferecer. Além do café da manhã, o padre trouxe a Pastoral do Migrante para a cidade e abriu uma espécie de escritório de informações para os que chegam ao Brasil sem entender ao certo o que precisam fazer para se estabelecer no país.

"As pessoas daqui estão sendo contaminadas por uma xenofobia incentivada pelas forças políticas locais e despejam sua frustração nos alvos errados", diz Bobadilla. "Eu entendo a raiva de ter sua cidade invadida, da sujeira, da insegurança, mas não se pode descontar tudo isso em quem está mais vulnerável."

Para muitos dos moradores da cidade, em especial os empresários locais, Bobadilla é um dos principais responsáveis pelo o que ocorre em Pacaraima. "Esse padre quer fazer socialismo com o capitalismo", diz Cleber Soares, presidente da Associação Comercial da cidade. Os comerciantes locais se recusam a ajudar o padre com doações e quase todo o alimento que ele oferece aos imigrantes vem por meio de doações do Exército, da Igreja, da ONU e de ONGs que atuam em Roraima.

"A igreja tem muito dinheiro, por que eles não financiam o que esse padre faz?", questiona Soares, que acusa a paróquia de Pacaraima de ter atraído para a cidade um número crescente de criminosos. "A maior parte dos que estavam aqui, dos que foram expulsos, eram bandidos, vieram para roubar mesmo, e o padre os defendia."

Poucos dias após a expulsão de 1,2 mil venezuelanos de Pacaraima, a paróquia voltou a ficar cheia de refugiadosFoto: DW/Y. Boechat

O próprio pároco foi vítima do aumento da violência na cidade. No ano passado, dois venezuelanos que frequentavam o café oferecido por ele diariamente invadiram a Casa Paroquial e o fizeram de refém. "Colocaram uma faca no meu pescoço e ameaçaram me matar, por sorte havia algum dinheiro aqui", conta.

Bobadilla acredita que a própria Igreja tem parcela de culpa na onda de xenofobia que tomou conta da cidade. "Nós não explicamos o suficiente, nós não demos atenção na mesma medida aos problemas locais, focamos com muita intensidade na crise e não nos demos conta que essas pessoas aqui também se sentem abandonadas pelo poder público", diz.

Bobadilla é também um imigrante. Até os 44 anos viveu em Madri, na Espanha, onde trabalhou como corretor de imóveis de alto luxo. Cansado da vida que levava, decidiu vir para o Brasil visitar um amigo que vivia no Rio de Janeiro, conhecer o Carnaval e passar uma temporada sabática. Viveu quase dois anos viajando pelo país, principalmente pelas regiões Norte e Nordeste. Foi vivendo com os ribeirinhos na cidade de Caracaraí, em Roraima, que o fez decidir entregar sua vida à Igreja.

"Sou de família religiosa, tenho primas freiras, mas a vocação só surgiu tarde na minha vida", explica. Foi para Manaus e por dois anos ficou no seminário da cidade. Já padre, voltou para Roraima para novamente viver com os ribeirinhos. "Lá eles gostam muito de mim, toda vez que vou a Caracaraí é uma festa danada."

Bobadilla quase nunca se incomoda com as críticas que recebe de seus detratores. A única coisa que realmente o tira do sério é a acusação de que ele seria um comunista querendo implantar um modelo de governo aos moldes do chavismo venezuelano na cidade.

"Comunista, eu? Ora bolas, sou de direita", diz ele, que relembra os anos em que viveu na Espanha sob a ditadura do general Francisco Franco. "Meu pai era coronel do Exército, era franquista, e eu mesmo reconheço as coisas boas que ele fez para a Espanha."

Bobadilla se diz contra qualquer ditadura e afirma admirar a Teologia da Libertação. Radicalmente contrário ao fechamento da fronteira entre o Brasil e a Venezuela, ele, no entanto, reconhece que algo precisa ser feito para controlar o fluxo migratório.

"A violência não vai resolver essa questão. Veja como o café já está cheio novamente", diz, cinco dias após a expulsão de 1.200 venezuelanos por moradores de Pacaraima. "As pessoas precisam entender que a força da fome é maior que a força do medo. Nada para a força da fome."

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