Ao documentar extensivamente a vida na RDA, Harald Hauswald teve todos os seus passos monitorados pela Stasi, a polícia secreta da ditadura comunista. Seu trabalho ganha uma retrospectiva em Berlim.
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De casais de idosos de rosto petrificado até punks de cabelo espetado, as imagens em preto-e-branco do fotógrafo alemão Harald Hauswald documentaram a vida cotidiana na Alemanha Oriental, possivelmente com mais abrangência do que qualquer outro fotógrafo.
Mais de 250 fotografias feitas por ele entre o fim dos anos 70 e meados dos anos 90 podem ser vistas até 23 de janeiro de 2021 na Amerika Haus de Berlim, na exposição Harald Hauswald: Voll das Leben! (A vida em cheio!). A retrospectiva é promovida pela galeria C/O Berlin, especializada em fotografia e outras mídias visuais.
Depois de se mudar da Saxônia para Berlim Oriental em 1977, Hauswald passou a capturar tudo e todos com suas lentes, inclusive cenas de ruas desoladas na capital da República Democrática Alemã (RDA). Assim, acabou eternizando um país que não se encaixava com a imagem de próspero Estado socialista propalada por seus líderes.
Como músico, tinha um acesso sem precedentes à vida de muitos que, no movimento de contracultura, se rebelavam contra o regime. Mas esse acesso tinha um preço: Hauswald era o fotógrafo mais monitorado da Alemanha Oriental, a polícia secreta Stasi rastreava todos os seus passos, sendo informada até se ele fumava um cigarro.
Mostra com dimensão política
Um dos curadores da exposição, Felix Hoffmann, da C/O Berlin, passou semanas lendo o dossiê de Hauswald no museu da Stasi na capital alemã, onde os documentos, antes altamente secretos, estão acessíveis ao público. O arquivo de Hauswald tem 1.300 páginas ricas em detalhes.
"Nesses arquivos da Stasi, é realmente possível ler quando ele tomava um café e por quem se apaixonava. Ainda me espanta que ele não tenha ficado louco, pois eles chegavam a entrar no apartamento dele, levavam coisas embora. Havia até uma lista do que tomaram, como livros e material fotográfico", comenta Hoffmann à DW.
O curador quis evitar a impressão de leveza despreocupada que poderia decorrer de uma ênfase exagerada nas peculiaridades alemãs-orientais, como as roupas antiquadas ou o burlesco Trabi, o carro popular da Alemanha Oriental, já que, "mais de 30 anos depois, pode-se olhar para trás e pensar: 'Ah, que engraçado, assim era a RDA.'"
Em vez disso Hoffmann desejava que os visitantes se confrontassem com as duras realidades políticas da vida no lado oriental, especialmente a de Hauswald, que, como pai solteiro, teve até a filha levada embora pelas autoridades.
Em 1987, ele publicara na República Federal da Alemanha (RFA) um livro com o problemático título Ost-Berlin (Berlim Oriental), quando a designação oficial no Estado comunista era "Berlin, Hauptstadt der DDR" (capital da RDA).
"A Stasi esquadrinhou o livro inteiro e escreveu comentários sobre cada foto publicada por Harald. E três meses depois, levaram a filha de Harald da escola diretamente para uma espécie de prisão", explica o organizador da mostra, que se comoveu ao ler sobre o episódio, no dossiê: "Eu entendi que não se trata apenas de uma história sobre um fotógrafo da RDA, onde vemos belas fotos em preto e branco, mas que deveria ser vista como uma exposição política."
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O observador observado
Hoffmann descreve Hauswald como um "observador observado": "A Stasi tirava fotos dele e ele tirava fotos de um país." Na exposição de Berlim, os visitantes primeiramente acedem a um espaço dedicado ao arquivo da Stasi sobre Hauswald, preparando-os para serem confrontados com a forma como o fotógrafo viveu e trabalhou, e teve cada passo monitorado.
Não se sabe por que as autoridades passaram a vigiar o fotógrafo no fim dos anos 70. Nascido numa pequena cidade perto de Dresden, de início não tinha nenhum motivo óbvio para ser colocado sob suspeita. Hoffmann especula que tivesse algo a ver com seu interesse de longa data pela cena musical e as conexões que mantinha com gente que trabalhava no lado oriental com música da RFA.
Entre 1985 e 1987, Hauswald publicou reportagens fotográficas em jornais e revistas do lado ocidental, sob pseudônimo. Contudo, as autoridades da Stasi estavam bem cientes dessa atividade. Por isso, sugere Hoffmann, havia mais de 40 informantes monitorando seus passos: "Eles tentaram descobrir como ele era pago e localizar o dinheiro."
No entanto, Hauswald costumava empregar um sistema de escambo:. "Ele publicava as fotos na Alemanha Ocidental e, em troca, ganhava uma câmera ou material fotográfico", explica o curador.
Em 1990, quando a RDA foi dissolvida, Harald Hauswald integrou o grupo fundador de uma das principais agências de fotografia do país, a Ostkreuz, reunindo fotógrafos de todo o país. A agência ganhou fama por sua fotografia em estilo documentário, sem retoques.
Como curadores da retrospectiva, Hoffmann, Ute Mahler e Laura Benz, da Ostkreuz, vasculharam centenas de milhares de negativos, para selecionar as fotos que melhor representassem o conjunto da obra de Hauswald, num processo que durou quase três anos.
Até o fim de 2020, a Associação de Fotografia da Ostkreuz pretende garantir que 7.500 rolos de negativos de Hauswald sejam conservados. Cerca de 6.000 imagens individuais serão digitalizadas, como parte de um projeto financiado pela Fundação Federal para o Estudo da Ditadura Comunista na RDA. O observador observado certamente forneceu insights essenciais sobre esse significativo período histórico.
Adaptação: Isadora Pamplona
Arquitetura alemã-oriental em Berlim
Quem quiser saber mais sobre a história de Berlim Oriental deve partir da praça Alexanderplatz e seguir pela avenida Karl Marx. Num espaço relativamente curto, uma série de construções conta a história da era comunista.
Foto: picture-alliance/dpa
Marco na Alexanderplatz
A mais alta construção da Alemanha também define a silhueta de sua capital. Inicialmente controversa, a torre de televisão da praça Alexanderplatz tornou-se um símbolo político de Berlim Oriental. Sua inauguração, em 1969, não só melhorou as transmissões na Alemanha Oriental como também evidenciou a vontade do regime de demonstrar modernidade e eficiência. Hoje a torre é patrimônio histórico.
Foto: DW/E. Jahn
Relógio universal
Há poucos metros da torre, também na Alexanderplatz, está o Relógio Universal Urania. Sobre uma coluna de alumínio gira um cilindro com 24 segmentos, que mostra a hora em várias cidades do mundo. As esferas rotativas sobre o cilindro simbolizam o planeta. Assim como antes da queda do Muro, o relógio é um popular ponto de encontro.
Foto: DW/E. Jahn
Transformação urbana
Mas a transformação da Alexanderplatz em praça central começou anos antes. Em 1964 foi inaugurada a Haus des Lehrers (Casa do Professor), o primeiro edifício da praça. Ao lado de um centro de convenções e contando com biblioteca, restaurante e salas de reuniões, o local era ponto de encontro de pedagogos. Há alguns anos, após uma reforma, foi convertido em prédio de escritórios.
Foto: DW/E. Jahn
Arte no prédio
O painel na fachada do edifício chama a atenção até hoje. Com 125 metros de comprimento, o mosaico "Unser Leben" (nossa vida), do artista Walter Womacka, rodeia todo o prédio e conta com cerca de 800 mil pedras. Um exemplo de realismo socialista, a obra combina o ideal de vida comunista com cenas do cotidiano da Alemanha Oriental.
Foto: DW/E. Jahn
A avenida da Alemanha Oriental
Da Alexanderplatz parte uma avenida de mais de dois quilômetros de extensão no sentido leste. Originalmente chamada de avenida Stalin, ela foi renomeada para avenida Karl Marx em 1961. Suas primeiras quadras são dominadas por edifícios pré-fabricados, conhecidos por Plattenbauten e construídos entre 1959 e 1965. Também aqui ficavam as tribunas de onde os líderes acompanhavam as paradas cívicas.
Foto: DW/E. Jahn
Cinema de boa qualidade
Um pouco mais adiante foram construídos locais de convívio social. Até hoje, o cinema Kino International, inaugurado em 1963, é palco de grandes estreias cinematográficas. Sua fachada de vidro e seu ótimo sistema de som continuam atraindo muitos visitantes. Especialmente durantes os festivais de cinema, como a Berlinale, os ingressos para as suas sessões são muito disputados.
Foto: DW/E. Jahn
Culinária dos países irmãos
Em frente ao cinema fica o Café Moscou, que perdeu muito do glamour original. Durante o regime comunista, o local era um restaurante que servia a culinária de sete nações, dando aos clientes a oportunidade de provar especialidades dos países irmãos. O Sputnik, um presente da embaixada soviética, ainda paira sobre o letreiro na fachada do prédio, cujas salas, hoje, são alugadas para eventos.
Foto: DW/E. Jahn
Um futuro melhor
A mais antiga e imponente parte da avenida Karl Marx começa na altura da Strausberger Platz, onde pomposos edifícios podem ser vistos em ambos os lados da ampla avenida. Numa Berlim devastada pela guerra, os chamados "palácios dos trabalhadores" deveriam simbolizar, para os cidadãos da Alemanha Oriental, a promessa que o socialismo traria um futuro melhor.
Foto: DW/E. Jahn
Moscou como modelo
A partir de 1951, Henselmann Hermann, até então diretor da Escola Bauhaus em Weimar, passou a ser o arquiteto responsável pela mais famosa avenida da Alemanha Oriental. Embora ele estivesse ligado ao modernismo, os líderes do partido impuseram suas ideias do neoclassicismo soviético. Mais de 70% dos tijolos usados nas construções foram retirados das ruínas da Berlim do pós-Guerra.
Foto: DW/E. Jahn
Inauguração no aniversário do Stalin
Em dezembro de 1952, os primeiros moradores se mudaram para os cobiçados apartamentos na Stalinallee. As novas moradias eram bem mais confortáveis, com grandes terraços, elevadores, pisos de parquê, aquecimento central, sistema de interfone e uma linha telefônica – um dos maiores objetos de desejo da Alemanha Oriental.
Foto: DW/E. Jahn
Só ficou o letreiro
No térreo dos novos edifícios foram inaugurados cafés e lojas, incluindo a livraria Karl Marx. Durante décadas, ela apresentou aos leitores de Berlim Oriental nomes como Thomas Mann, Christa Wolf e Bertolt Brecht. O local também serviu de locação para o filme "A vida dos outros". Devido ao aluguel elevado, a livraria encerrou suas atividades em 2008, deixando apenas o letreiro da fachada.
Foto: DW/E. Jahn
Símbolo do terror
Seguindo adiante, a avenida muda de nome e se torna Frankfurter Allee. Depois de quatro quilômetros chega-se a Lichtenberg, o bairro que abrigava a sede da Stasi, o serviço secreto da Alemanha Oriental. A casa 1, onde ficava o escritório do ministro Erich Mielke, é hoje um museu e um centro de pesquisa voltado para o passado da instituição.
Foto: DW/E. Jahn
O coração de um sistema de espionagem
Ao longo de vários andares, uma exposição mostra os métodos de monitoramento da Stasi, além de contar a história da resistência na Alemanha Oriental. O ponto alto da visita é o escritório original de Erich Mielke, onde ele organizou, entre 1957 e 1989, o monitoramento dos cidadãos do país. Muitas pessoas atribuem um grande valor simbólico ao fato de essas salas serem hoje de livre acesso.