Formada advogada após morte do marido, Rubens Paiva, defendeu demarcação de terras. Argumentos foram pilares da questão indígena na Constituição de 1988.
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No terceiro capítulo da última parte do livro Ainda estou aqui, do escritor Marcelo Rubens Paiva, e em alguns minutos das cenas finais do aclamado filme homônimo, a advogada Eunice Paiva (1929-2018) é retratada como uma mulher cujo papel para a história recente brasileira foi maior do que a de simplesmente a viúva que lutou para o reconhecimento da morte, cometida por agentes da ditadura, do seu marido, o político e engenheiro Rubens Paiva (1929-1971).
Graduada em direito aos 47 anos – depois da perda do marido –, Eunice se tornou uma das pioneiras da luta pelos direitos dos povos originários. "Aos poucos, ela se deu ao luxo de atuar numa área que não dava dinheiro, mas pela qual se apaixonou inexplicavelmente: o direito indígena", escreve Marcelo, no seu livro. "Passou a atender e a representar nações indígenas que tinham suas terras demarcadas não respeitadas."
"Eunice Paiva foi uma das figuras mais importantes na luta pelos direitos dos povos indígenas no Brasil, especialmente durante o período da redemocratização do país", avalia o historiador Carlos Trubiliano, professor da Universidade Federal de Rondônia (UNIR) e assistente técnico na Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
O ambientalista, filósofo e escritor Ailton Krenak, que autou com Eunice em algumas dessas questões e recentemente se tornou o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na Academia Brasileira de Letras, avalia que ela "animou o debate sobre a falta de uma política pública na promoção do reconhecimento e proteção das terras indígenas".
Debates
Um ponto simbólico dessa luta foi o artigo publicado em 1983 no jornal Folha de S. Paulo, intitulado Defendam os pataxós e escrito em parceria com a antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, hoje aposentada na Universidade de São Paulo (USP) e professora na Universidade de Chicago, nos Estados Unidos.
"Ambas trabalhavam na Comissão Pró-Índio de São Paulo, ONG fundada em 1978. O artigo foi um marco na luta indígena brasileira e serviu de modelo para outros povos indígenas, inclusive africanos, americanos e esquimós", contextualiza Marcelo, lembrando que os povos nativos eram "tratados como um estorvo na ditadura por fazendeiros aliados do regime".
Em 1985 Eunice publicou, com a antropóloga Carmen Junqueira, hoje professora emérita na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo, o livro O Estado contra o índio. Na obra elas traçam um panorama da legislação indigenista brasileira e apresentam as violações dos direitos humanos cometidas contra esses cidadãos.
"[No livro, ela] propunha perspectivas de soluções para a causa indígena, que se mostram relevantes ainda na atualidade", avalia a psicóloga Mariana Festucci Grecco, professora universitária, pesquisadora na USP e autora de artigo acadêmico sobre a trajetória de Eunice. "[Ela defendia a] criação de entidades de apoio à causa indígena e o fortalecimento da organização indígena, com a promoção da autonomia cultura e autodeterminação das nações e comunidades com colaboração recíproca, a inviolabilidade e a demarcação de suas terras, entre outros direitos."
Grecco comenta que a obra apresenta "como os povos indígenas sofreram a expropriação sistemática de suas terras, bem como o extermínio, ao longo de quatro séculos de história". "E como a legislação brasileira ainda era incipiente em proteger os direitos dos nossos povos originários", ressalta, lembrando que a primeira legislação específica a tratar do assunto foi o código civil instituído logo após a proclamação da República, situando "os direitos dos indígenas de maneira restrita e tutelada".
"Eunice e Carmen sinalizavam como ela era limitada em situar o indígena como pessoa e titular de direitos, já que o contextualizava como 'relativamente' capaz para o exercício de 'certos' atos da vida civil, ainda sob o regime de tutela", detalha a professora.
Constituição de 1988
Especialmente ao longo dos anos 1980, Eunice foi voz ativa na questão, influenciando os debates que culminariam na maneira como os indígenas passaram a ser oficialmente tratados pelo Estado a partir da Constituição de 1988. Marcelo escreve que, para sua mãe, "a luta era a mesma" do que a encarnada na questão dos desaparecidos políticos, torturados e mortos pela ditadura. "Se não conseguiu salvar o marido e tantos outros, tentaria salvar os índios, numa ditadura enfraquecida, com uma sociedade civil mais organizada e a imprensa livre", pontua ele.
Trubiliano ressalta que foi fundamental a contribuição de Eunice para a formulação do artigo 231 da Constituição, "um marco jurídico inédito no país, fundamental na garantia e na proteção dos direitos das populações indígenas, assegurando aos povos originários o reconhecimento de sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, além do direito às terras que tradicionalmente ocupavam".
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Eunice ativista
"Depois de […] se identificar com a dor, minha mãe se engajou com tudo: no Dia do Índio de 1984, participou de um debate da TV Cultura [a respeito do tema, com a participação de nomes como o de Krenak]", descreve o escritor. "Passou a ser apresentada como assessora jurídica da Comissão Pró-Índio. Participou de vários debates […]. Exigia a demarcação das terras indígenas. Denunciava que o governo não parecia estar disposto a cumprir o que exigia a lei. Governo militar, ainda. O que restava dele."
No livro em homenagem à sua mãe, Marcelo conta que, nessa época, líderes indígenas frequentavam a casa de Eunice, em São Paulo.
Em julho de 1984, a advogada representou o Brasil no Congresso Mundial das Populações Nativas em Estrasburgo, na França. "Ela passou a assessorar o Banco Mundial. Ficou amiga de antropólogos, especialistas em meio ambiente, em energia", conta o filho. "Passou a falar não mais como a viúva de Rubens Paiva, representante de familiares de desaparecidos, mas como autoridade em direito indígena representante do Banco Mundial."
Vida e preservação da Amazônia às margens do Tapajós
A Floresta Nacional do Tapajós, no Pará, é a primeira no Brasil a ser explorada de forma sustentável por comunidades tradicionais. É dali que sai o sustento de indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
Foto: Nádia Pontes/DW
Moradores da Floresta Nacional do Tapajós
A unidade de conservação Floresta Nacional (Flona) do Tapajós, no Pará, foi criada em 1974 e abrange uma área de 5.270 quilômetros quadrados. Cerca de mil famílias de comunidades ribeirinhas, indígenas e quilombolas convivem com a floresta, coletam sementes, pescam e recebem visitantes do mundo inteiro que buscam estar próximos da natureza.
Foto: Nádia Pontes/DW
A floresta é da comunidade
A Flona Tapajós foi a primeira no país a ser explorada de forma sustentável por comunidades tradicionais. O manejo florestal é feito desde 2005 e permite a retirada de no máximo quatro árvores por hectare. Coleta de sementes e óleo, como o da copaíba, mostrada na foto, ajudam a compor a renda das famílias.
Foto: Nádia Pontes/DW
Madeira de origem certificada
A madeira retirada da Flona Tapajós é certificada pelo Conselho de Manejo Florestal (FSC, na sigla em inglês). O trabalho é feito por 300 associados da Cooperativa Mista da Floresta Nacional do Tapajós (Coomflora). No galpão, construído com recursos do Fundo Amazônia e da cooperação alemã, são fabricados armários, bancos, portas, janelas e peças de design.
Foto: Nádia Pontes/DW
Novo biocentro
As sementes de andiroba armazenadas foram coletadas por extrativistas da Floresta Nacional do Tapajós, Pará. Elas serão processadas e se transformarão em óleo no recém-construído Ecocentro, uma central multiprocessadora de produtos retirados da floresta. A unidade foi construída com recursos do Fundo Amazônia.
Foto: Nádia Pontes/DW
Quintal amazônico
Na comunidade Jamaraquá, na Flona Tapajós, Donildo Lopes dos Santos extrai o látex da seringueira que cresceu perto de sua casa. Ele remove uma pequena parte da casca e cria as chamadas "estradas de seringa", por onde escorre a seiva. Na parte mais baixa do tronco, um pote plástico recolhe o líquido, que mais tarde é transformado em borracha.
Foto: Nádia Pontes/DW
Biojoias da Amazônia
O látex retirado do quintal e transformado em borracha vira arte nas mãos de Lurdes Melo dos Santos. A artesã faz parte de um grupo de mulheres da comunidade Jamaraquá que fabricam biojoias desde 2004. Sementes de diversas espécies de árvores, como morototó, compõem as peças expostas e vendidas na loja comunitária local. As mulheres testam alternativas para encontrar mais compradores.
Foto: Nádia Pontes/DW
Suraras, as guerreiras
A Associação Suraras do Tapajós foi fundada em 2016 para valorizar as mulheres indígenas e ribeirinhas dessa região da Amazônia. Elas produzem e comercializam artesanato, roupas com estampas etnográficas e comidas tradicionais. Também exibem seus saberes e cultura no carimbó, ritmo típico paraense, em letras escritas pelas suraras – termo que significa “guerreira” na língua dos indígenas borari.
Foto: Nádia Pontes/DW
Tempo de borboletas
As pequenas borboletas amarelas se exibem na beira do rio quando as águas começam a baixar, anunciando a chegada do verão amazônico. Elas estão à procura de minerais para a reprodução. O fenômeno sazonal acontece em quase toda a região. Quando as borboletas surgem em grande quantidade e mais cedo, significa que o verão será intenso, dizem os moradores às margens do Tapajós.
Foto: Nádia Pontes/DW
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Em 1987, em parceria com outros ativistas, Eunice fundou o Instituto de Antropologia e Meio Ambiente, ONG que funcionou até 2001 na defesa e autonomia dos povos indígenas. Também foi ativa participante de outras organizações civis, como a Mata Virgem e a Fundação Pró-Índio.
Em uma disputa que se arrastou por anos, ela atuou para que a companhia Vale do Rio Doce indenizasse as comunidades nativas em cujas terras foram construídas uma ferrovia, a Estrada de Ferro Carajás, entre Pará e Maranhão. Ela advogou em vários outros processos de contendas fundiárias — como ressalta o historiador Tubiliano, "muitas vezes de forma voluntária, sempre em defesa da causa indígena".
Advogada pela causa indígena
"Sua atuação enquanto advogada e consultora em favor da causa indígena permitiu a correta contextualização dos indígenas enquanto pessoa de direito, fundamental para a elaboração da Constituição cidadã [de 1988], bem como o reconhecimento da necessidade da correta demarcação das terras, muito embora durante o governo de Jair Bolsonaro [de 2019 a 2022] tenha sido praticada a necropolítica, ainda sem punição, contra nossos povos originários", afirma Grecco.
Na opinião do pedagogo Alberto Terena, coordenador executivo da Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros, um aspecto importante do ativismo de Eunice foi associar "a violência ocorrida durante a ditadura militar" à questão da defesa dos povos originários.
Um exemplo visível foi o fato de que a política do regime incluiu a construção de grandes rodovias rasgando territórios próximos aos ocupados pelos indígenas. "Foi um dos motivos maiores do massacre de nossos povos", analisa.
"Como advogada, creio que ela foi uma das mais fortes bandeiras de nossa luta. Ela mostrou que o processo contra os indígenas foi violento, brutal", ressalta Terena.
"Somos diversos em todas as frentes de lutas civis contra a tendência autoritária, e Eunice Paiva sobressaiu-se por sua persistência e coragem, discreta em sua maneira de enfrentar o fascismo sem rosto até o fim", destaca Krenak.
O ambientalista comenta que "esse quadro de violência" contra os povos originários enfrentado por Eunice persiste até hoje, "agravado por decisões do Congresso" buscando a mudança no que prevê a Constituição e tentando "impor o marco temporal, dispositivo que proíbe demarcar terras de ocupação após a data da regulamentação constitucional".
A ditadura brasileira (1964-1985)
Regime militar que sufocou a democracia se estendeu por 21 anos. Período foi marcado por perseguições, tortura, censura, crescimento e derrocada econômica.
Foto: Arquivo Nacional
A perseguição política
A perseguição de adversários se concentrou nos meses após o golpe de 1964 e entre o final da década de 60 e início dos anos 70. Mais de 5 mil pessoas foram alvo de punições como demissões, cassações e suspensão de direitos políticos. Ao todo, 166 deputados foram cassados. O regime também perseguiu membros em suas fileiras. Pelo menos 6.951 militares foram presos, desligados e presos.
Foto: Arquivo Nacional
Assassinatos e desaparecimentos
Assim como a perseguição política, os assassinatos de opositores promovidos pelo regime se concentraram em algumas fases da ditadura. Mas todos os generais-presidentes foram tolerantes com a prática. A Comissão Nacional da Verdade (CNV) apontou a responsabilidade do regime militar pela morte de 224 pessoas e pelo desaparecimento de 210 – 228 delas morreram durante o governo Médici (1969-1974).
Foto: Arquivo Nacional
Tortura
Na ditadura, a tortura virou uma prática de Estado. Já no governo Castelo Branco (1964-1967) foram apresentadas 363 denúncias de tortura. Na fase de Médici (1969-1974), seriam mais de 3.500. O relatório "Brasil: Nunca Mais" lista 283 formas de tortura aplicadas pelo regime, como afogamentos, choques elétricos e o pau de arara. Ao longo de 21 anos, houve mais de 6 mil denúncias de tortura.
Foto: Arquivo Nacional
A luta armada
Ao dar o golpe, os militares citaram a corrupção e o esquerdismo do governo Jango. A luta armada, às vezes apontada como razão de ser da ditadura, nem foi mencionada. Só em 1966 ocorreram as primeiras ações relevantes de grupos de esquerda, que cometeriam atentados e assaltos com o objetivo de promover uma revolução. Em 1974, todos já haviam sido aniquilados, mas a ditadura duraria mais uma década
Foto: Arquivo Nacional
Os atos institucionais
O regime militar recorreu a uma série de decretos chamados atos institucionais para manter seu poder. Entre 1964 e 1969 foram promulgados 17 atos, que estavam acima até da Constituição. Alguns promoveram a cassação de adversários (AI-1) e a extinção dos partidos políticos existentes (AI-2). O mais duro deles, o AI-5, instituiu em 1968 a censura prévia na imprensa e a suspensão do "habeas corpus".
Foto: Arquivo Nacional
A censura
Boa parte da imprensa apoiou o golpe, mas vários jornais passaram a criticar o regime, alguns mais cedo, outros mais tarde. Com o AI-5, passou a vigorar uma censura prévia em vários meios de comunicação. O regime censurava até más notícias, promovendo uma imagem fictícia da realidade do país. Epidemias, desastres e atentados eram temas vetados. Músicas, filmes e novelas também foram censurados.
Foto: Arquivo Nacional
Colaboração com outras ditaduras
Junto com os regimes da Argentina, Bolívia, Chile, Paraguai e Uruguai, a ditadura brasileira integrou a Operação Condor, uma aliança para perseguir opositores no Cone Sul. O regime também ajudou a treinar oficiais chilenos em técnicas de tortura. Um dos casos mais notórios de colaboração foi o sequestro em 1978 de dois ativistas uruguaios em Porto Alegre, que foram entregues ao país vizinho.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
O milagre econômico...
Após três anos de ajustes, os militares promoveram a partir de 1967 investimentos e oferta de crédito. A fórmula deu resultados. Entre 1967 e 1973, a expansão do PIB brasileiro foi de 10,2% ao ano. O país passou a ser a décima economia do mundo. O crescimento aumentou a popularidade do regime durante a fase mais repressiva da ditadura. Mas o "milagre brasileiro" duraria pouco.
Foto: Arquivo Nacional
... e a derrocada econômica
A conta do "milagre" chegou após os dois choques do petróleo e uma série de decisões desastradas para manter a economia aquecida. Ao fim da ditadura, o país acumulava dívida externa 30 vezes maior que a de 1964 e inflação de 225,9% ao ano. Quase 50% da população estava abaixo da linha de pobreza. Os militares pegaram um país com graves problemas econômicos e entregaram um quebrado.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Corrupção
A censura e a falta de transparência favoreceram a corrupção. O período foi marcado por vários casos, como o Coroa-Brastel, Delfin, Lutfalla e a explosão de gastos em obras. O regime promoveu e protegeu figuras como Paulo Maluf e Antônio Carlos Magalhães, que já nos anos 70 eram suspeitos em casos de corrupção. Também abafou casos, como a compra superfaturada de fragatas do Reno Unido nos anos 70.
Foto: Biblioteca da Presidência da República
Grandes obras
A ditadura promoveu obras faraônicas, divulgadas com propaganda ufanista, como Itaipu e a ponte Rio-Niterói. Algumas foram marcadas por desperdícios e erros, como a Transamazônica e as usinas de Angra. Em 1969, o regime criou uma reserva de mercado para as empreiteiras nacionais ao proibir a atuação de estrangeiras. É nessa época que empresas como a Odebrecht passam a dominar as obras no país.
Foto: Arquivo Nacional
Anistia e falta de punições
Em 1979, seis anos antes do fim da ditadura, foi promulgada a Lei da Anistia, perdoando crimes cometidos por motivação política. Mas ela tinha mão dupla: garantiu também a impunidade para agentes responsáveis por mortes e torturas. No Chile e na Argentina, dezenas de agentes foram condenados por violações de direitos humanos após a volta da democracia. No Brasil, ninguém foi punido.