O movimento que reavivou a sociedade civil em Hong Kong
William Yang de Hong Kong
2 de julho de 2019
Milhões têm saído às ruas da região semiautônoma contra uma polêmica lei de extradição. Enquanto resiste à intervenção de Pequim, o movimento sem líder fez a população despertar: "Ficaremos unidos e não desistiremos."
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Enquanto milhares de pessoas – a maioria vestindo camisetas pretas – chegavam ao parque Victoria numa segunda-feira extremamente quente em Hong Kong, Lee e duas amigas enchiam balões pretos e brancos que seriam distribuídos aos participantes da marcha de verão de 1º de julho – um evento que faz parte da tradição da cidade há mais de duas décadas.
Lee e suas amigas participam de uma grande rede de voluntários mobilizada por meio de um dos mais populares fóruns sociais online de Hong Kong, o LIHKG. Ali, viram uma postagem convocando a participar de um movimento de arte comportamental em paralelo às manifestações de 1º de julho, e decidiram se envolver.
"Tornou-se uma tendência para os jovens em Hong Kong participar voluntariamente de iniciativas próprias como esta durante grandes protestos", disse Lee em entrevista à DW. "Para aqueles de nós que não necessariamente querem estar na linha de frente, trata-se de uma maneira de mostrar nossa solidariedade com o restante dos manifestantes."
O surgimento desse tipo de movimento auto-organizado e sem liderança é uma nova tendência em Hong Kong. Especialistas acreditam que essa mudança de estratégia ajudou a tornar mais eficaz os protestos contra o controverso projeto de lei de extradição.
Antony Dapiran, um escritor australiano estabelecido em Hong Kong e autor do livro City of protest: a recent history of dissent in Hong Kong (Cidade de protesto: uma história recente da dissidência em Hong Kong, em tradução livre), afirmou acreditar que essa nova forma de protestar melhorou a capacidade das pessoas de organizar e empregar seus recursos.
"Acho que o movimento ajudou os manifestantes a reagir melhor às táticas policiais, já que eles constantemente aprendem e adaptam suas estratégias durante os protestos", disse Dapiran à DW. "Por exemplo, em vez de simplesmente bloquear as ruas como fizeram durante a revolução dos guarda-chuvas de 2014, eles podem eventualmente interromper o trânsito numa área e seguir em frente."
O escritor apontou, contudo, que a ausência de liderança pode tornar mais difícil que os manifestantes formem demandas quando tiverem a oportunidade de dialogar com o governo. "Se o governo quiser se envolver com os manifestantes, eles precisam ter alguns interlocutores", explicou. "Mas quando um movimento não tem líder, com quem eles falam?"
Um governo paralisado
Apesar dos repetidos protestos que levaram números recordes de manifestantes às ruas, a chefe de governo de Hong Kong, Carrie Lam, não concordou com o descarte completo do projeto de lei que pretende permitir extradições à China continental, nem em renunciar ao cargo.
Dapiran disse acreditar que a situação atual é reflexo do fracasso do governo em reconhecer o grau de insatisfação do povo de Hong Kong.
"Inicialmente, o governo de Hong Kong pensou que, uma vez passada a lei, todos iriam desviar o olhar, mas obviamente isso não funcionou", disse Dapiran. "Eles parecem não ter capacidade de reagir e parecem simplesmente paralisados por suas próprias decisões."
Para a maioria dos manifestantes, a decisão do governo de suspender indefinidamente o projeto de lei não significa que este não será ressuscitado no futuro. Lee afirmou que a falta de resposta do governo aumenta a suspeita dos manifestantes sobres os motivos que movem as autoridades.
"Estamos decepcionados com a falta de resposta do governo às nossas exigências", disse Lee. "Simplesmente não espero que o governo vá propor algo concreto e também não creio que Carrie Lam vá responder com sinceridade às nossas exigências."
Para a manifestante, a crescente suspeita em relação ao governo é uma das razões pelas quais tantas pessoas estão dispostas a participar dos protestos. "Acho que a maioria dos manifestantes possui ideias muito concretas sobre o que o movimento está tentando alcançar, e sua decisão de sair às ruas reflete nossa persistência coletiva em exigir o abandono do polêmico projeto de lei."
O despertar da sociedade civil
Para muitos, o movimento contrário à lei de extradição ajudou a a sociedade civil de Hong Kong.
"É claro que o protesto uniu a sociedade civil de Hong Kong no mês passado, algo que não pudemos testemunhar nos últimos anos", disse Tam Tak-chi, vice-presidente do partido pró-democracia People Power.
Para Antony Dapiran, a onda de manifestações representa um catalisador para um maior engajamento da sociedade civil em Hong Kong, uma vez que permite aos jovens vivenciar o poder dos protestos populares.
"A geração mais jovem demonstrou que se importa com essas questões e quer se envolver com elas", disse o autor. "Não consigo ver nada além de uma sociedade civil mais revigorada."
Porém, mesmo que o movimento antiextradição ainda não tenha dado mostras de qualquer fadiga, Dapiran afirmou ser inevitável que o nível de engajamento popular cesse em algum momento.
"Até agora os manifestantes têm sido cuidadosos em não atrapalhar muito a vida dos cidadãos comuns", disse o escritor, acrescentando que, caso os protestos se arrastem e causem muita destruição, as pessoas podem ficar frustradas.
Por enquanto os habitantes da cidade parecem estar determinados a continuar indo às ruas até que a chefe do governo responda adequadamente a todas as demandas. Segundo Lee, ela e suas amigas não vão desistir da questão sobre a lei de extradição. "Esperamos que todos fiquem juntos e que possamos enfrentar todos os desafios."
Duas décadas depois de Hong Kong retornar ao domínio chinês, predomina entre muitos moradores a insatisfação com a ingerência de Pequim e o desejo por mais democracia.
Foto: Reuters/D. Martinez
1997 - Devolução à China
Após 156 anos de domínio britânico, Hong Kong era devolvida à China exatamente à zero hora de 1º de julho de 1997. Soldados do Exército de Libertação Popular içaram a bandeira chinesa, em sinal de supremacia sobre a antiga colônia britânica. O contrato para a devolução já havia sido assinado em 1984.
Foto: Reuters/D. Martinez
1998 - Ameaça de crise econômica
A crise financeira asiática de 1997-98 levou economias emergentes a impor controles comerciais ou à compra de ativos para tranquilizar investidores. Hong Kong surpreendeu o mercado em agosto de 1998 com uma intervenção de 15 bilhões de dólares para se defender de ataques especulativos. Os apoiadores da iniciativa dizem que isso salvou a cidade.
Foto: Reuters/L. Chan
1999 - Reagrupamento de famílias
As esperanças de um rápido reagrupamento das famílias separadas pela fronteira foram logo destruídas. Embora a Suprema Corte de Hong Kong tivesse concedido amplos direitos de residência, o governo chinês derrubou a decisão a pedido do governo de Hong Kong. Na foto, mais de cem visitantes da China continental protestaram para obter permissão de residência imediata em Hong Kong.
Foto: Reuters/B. Yip
2000 - Sucesso com a bolha
Em fevereiro de 2000, investidores entraram numa fila diante do banco HSBC para comprar ações da empresa Tom.com. Ao se lançar na bolsa de valores, a empresa – que existia apenas na internet – do bilionário Li Ka-shing conseguiu angariar quase 100 milhões de dólares pouco antes de estourar a bolha "dot-com".
Foto: Reuters/B. Yip
2001 - Conflito com grupo espiritual
Seguidores do movimento espiritual Falun Gong protestam regularmente em Hong Kong desde que o grupo foi banido pela China em 1999, sob a acusação de divulgar superstições e manipular as pessoas psicologicamente. Em 2002, 16 seguidores foram condenados por causa de protestos diante da representação da China em Hong Kong. A Suprema Corte do território reverteu metade das sentenças.
Foto: Reuters/K. Cheung
2002 - Famílias desesperadas
A questão das autorizações de residência acirrou-se em 2002, quando Hong Kong começou a deportar 4 mil chineses continentais que haviam perdido batalhas legais para residir no território. Houve protestos dos solicitantes e de seus apoiadores. Na foto, parentes de migrantes chineses depois de terem sido expulsos de um parque no centro de Hong Kong.
Foto: Reuters/K. Cheung
2003 - Nas mãos de um vírus
A Sars, uma doença viral semelhante à gripe, atingiu Hong Kong de tal forma que, em março de 2003, a Organização Mundial da Saúde a declarou uma pandemia. Até a cidade ser considerada livre da doença, em junho, 299 pessoas morreram, entre elas Tse Yuen-man. A médica de 35 anos esteve entre os primeiros voluntários a cuidar de pacientes com Sars. Em seu funeral, ela recebeu as mais altas honras.
Foto: Reuters/B. Yip
2004 - Frustração com Pequim
Centenas de milhares de pessoas participaram de protestos no sétimo aniversário da devolução à China. Pequim descartou o sufrágio universal em Hong Kong em 2007 ou 2008 e continuou freando as reformas políticas. Além disso, a China decretou que o governo de Pequim precisa aprovar qualquer alteração no direito de voto em Hong Kong, o que praticamente elimina qualquer aspiração democrática.
Foto: Reuters/B. Yip
2005 - Violência em protestos
Reuniões da Organização Mundial do Comércio regularmente são alvos de protestos dos adversários da globalização. Em Hong Kong, no final de 2005, não foi diferente. A polícia usou canhões de água e gás lacrimogêneo contra os manifestantes.
Foto: Reuters/L. Jae-Won
2006 - Conflito com o Japão
A China e o Japão disputavam um grupo de ilhas desabitadas. Acreditava-se que perto delas houvesse reservas de petróleo e de gás. Em outubro, um barco com ativistas de um comitê para defender as ilhas Diaoyi e que tem base em Hong Kong se aproximou 20km da ilha principal até ser interceptado por um barco de patrulha japonês.
Foto: Reuters/P. Yeung
2007 - Preservar a história
Um píer da era colonial tornou-se pivô de nova polêmica. O governo queria removê-lo para recuperar terras e construir estradas. Ativistas furiosos que consideravam o píer um local histórico lutaram pela sua preservação. O embate atingiu seu ponto alto em agosto, quando a polícia removeu um acampamento de ativistas e pessoas em greve de fome que já durava três meses. Em 2008, o píer foi demolido.
Foto: Reuters/P. Yeung
2008 - Morar em gaiolas
Terrenos cada vez mais caros tornaram os aluguéis impagáveis para muitas pessoas em Hong Kong. Milhares de moradores passaram a viver em gaiolas, onde dispunham de cerca de 1,4 m2. Em geral, um cômodo tem oito dessas caixas de arame. Em 2017, estima-se que 200 mil pessoas vivam assim ou disponham de apenas uma cama em apartamentos divididos.
Foto: Reuters/V. Fraile
2009 - Contra o esquecimento
Moradores de Hong Kong vestidos de preto e branco fizeram uma vigília no 20º aniversário da violenta repressão aos manifestantes pró-democracia na Praça da Paz Celestial em Pequim em 1989. O Victoria Park, no centro de Hong Kong, transformou-se num mar de velas.
Foto: Reuters/A. Tam
2010 - Projetos indesejados
Crescia em Hong Kong a insatisfação devido à falta de democracia e o fato de o governo não ter de prestar contas. As raiva coletiva é descarregada em forma de protestos contra os planos do governo de construir um trajeto para trens de alta velocidade ligando Hong Kong ao continente. O projeto ferroviário, não implementado até hoje, previa a destruição de um vilarejo.
Foto: Reuters/B. Yip
2011 - Protestos com papel
Um controverso projeto de lei que eliminou o mecanismo de eleições suplementares para o Conselho Legislativo gerou vários dias de protestos em frente ao prédio do conselho. Centenas de manifestantes jogaram aviões de papel com mensagens políticas contra o prédio.
Foto: Reuters/B. Yip
2012 - Desafios da administração
Leung Chun-ying (à esquerda) presta juramento como chefe de governo da região administrativa especial, diante do então presidente chinês, Hu Jintao. Ele prometeu mais democracia e moradias mais acessíveis. Apesar de medidas de contenção, os preços continuaram subindo, e as reformas políticas ainda estão emperradas. Leung Chun-ying não concorreu a um novo mandato.
Foto: REUTERS/File Photo/B. Yip
2013 - Hong Kong no foco da imprensa
Quando começaram a ser publicadas notícias sobre Edward Snowden e segredos dos EUA, o especialista em TI estava em Hong Kong. Apesar de os Estados Unidos terem pedido sua extradição, Hong Kong deixou Snowden voar para Moscou, onde ele recebeu asilo político. Enquanto alguns veem em Snowden um denunciante corajoso, outros o consideram um traidor da pátria.
Foto: Reuters/B. Yip
2014 - Protestos de guarda-chuva
Durante dois meses, Hong Kong teve grandes manifestações pró-democracia. A exigência era a escolha completamente democrática do chefe de governo. A marca registrada dos protestos foram os guarda-chuvas usados pelos manifestantes para se proteger do spray de pimenta da polícia. As manifestações são vistas como o maior desafio à autoridade da China desde o movimento por mais democracia, em 1989.
Foto: Reuters/T. Siu
2015 - Liberdade de expressão no estádio
A partida de futebol entre China e Hong Kong pelas eliminatórias da Copa de 2018 foi palco de protestos. Torcedores de Hong Kong empunharam cartazes com os dizeres "Hong Kong não é China" enquanto era tocado o hino nacional chinês. Há muita tensão entre os dois lados desde os "protestos dos guarda-chuvas". O jogo acabou em 0 a 0.
Foto: Reuters/B. Yip
2016 - Até correr sangue
Novos protestos foram realizados em Hong Kong. Mais uma vez, a polícia usou spray de pimenta e cassetetes. A razão: as autoridades tentaram remover vendedores de rua ilegais num bairro operário. Foram as mais violentas batalhas de rua desde os protestos de 2014.
Foto: Reuters/B. Yip
2017 - O tempo passa
No parque memorial rei George 5º, um dos poucos parques onde ainda há uma ligação com o passado colonial, as raízes de uma figueira cobrem uma placa, 20 anos após a devolução de Hong Kong à China pelos britânicos.