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O Muro de Berlim caiu e levou junto o futebol da RDA

Gerd Wenzel
Gerd Wenzel
12 de novembro de 2019

Fim do regime comunista e Reunificação alemã trouxeram consequências radicais para os times da RDA. Clubes tiveram que se adaptar ao sistema capitalista e sofreram um sangramento do qual até hoje não se recuperaram.

Ulf Kirsten jogou pelo Dynamo Dresden e se transferiu para o Leverkusen: "Eu não sabia como funcionava o capitalismo"Foto: picture alliance/ZB

Além de ter sido o fato histórico mais emblemático do fim do regime comunista na antiga Alemanha Oriental, a queda do Muro de Berlim, em 1989, representou também o pontapé inicial para o declínio dos clubes de futebol da extinta República Democrática Alemã (RDA).

Houve um curto lapso de tempo em que equipes da antiga Alemanha Oriental chegaram a fazer bonito em um dos torneios da UEFA. O Carl Zeiss Jena, atualmente na terceira divisão, foi vice-campeão da Recopa em 1981, depois de perder por 2 a 1 para o Dínamo Tíflis (Geórgia). O Lokomotive Leipzig, hoje na quarta divisão, também chegou à final dessa competição em 1987, perdendo para o Ajax por 1 a 0.

O maior feito de um clube da RDA ficou por conta do Magdeburg em 1974. Enfrentou o Milan, que buscava defender o título conquistado na temporada anterior, mas sucumbiu diante dos alemães orientais por 2 a 0. Foi o único título internacional conquistado por um clube do Leste alemão.

Em geral, os clubes do Leste conseguiram se sustentar na Oberliga graças às subvenções do Estado, mas, com a queda do Muro em 9 de novembro de 1989 e a Reunificação do país no ano seguinte, tudo mudou.

No futebol, houve consequências radicais. Clubes profissionais em vez de associações esportivas custeadas pelo Estado. Mercado livre de jogadores em vez de determinações do Partido Socialista Unitário da Alemanha (SED), que governava o regime comunista.

Com o objetivo de se adaptar rapidamente ao novo sistema capitalista, muitos clubes chamaram às pressas empresas de assessoria, managers, técnicos e agentes da FIFA do lado ocidental para implantar uma nova estrutura do futebol. Logo perceberam que o interesse maior desse exército de assessores estava em jogadores talentosos, que poderiam ser levados para os grandes clubes da Bundesliga a preços de Black Friday.

Eduard Geyer, último técnico da seleção da RDA e, posteriormente, treinador do Energie Cottbus, não deixou por menos: "Trouxemos técnicos de quinta categoria e executivos inescrupulosos. Confiamos neles porque achávamos que seriam os salvadores do nosso já combalido futebol."

Olheiros e agentes se infiltravam nos clubes para garimpar novos talentos. Seduziam os jovens com propostas mirabolantes, e os clubes sofreram um sangramento do qual até hoje não se recuperaram. Os intermediários ganharam muito dinheiro, os jovens talentos receberam algum, e os clubes não receberam nada. Por exemplo, no BFC Dynamo ninguém sabe onde foram parar os dois milhões de marcos que o Leverkusen pagou pela contratação de Andreas Thom.

Geyer conta que seus jogadores da seleção eram assediados enquanto o time se preparava para algum jogo internacional: "Só se pensava em dinheiro. Na partida decisiva pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 1990, precisávamos vencer a Áustria no último jogo em Viena. Era o dia 15 de novembro de 1989, seis dias depois da queda do Muro. Matthias Sammer, Ulf Kirsten e Andreas Thom faziam parte do meu time titular. Naufragamos por 3 a 0. Então percebi claramente que não daria mais para segurar esses talentos no Leste. Eles já estavam com a cabeça na Bundesliga."

Kirsten e Thom foram embora antes da Reunificação alemã, para fazer carreira no Leverkusen. Sammer seguiu para o Stuttgart e se tornou campeão pela Bundesliga em 1992. Um pouco mais tarde, levantou mais uma vez a salva de prata e venceu a Champions League com o Borussia Dortmund.

A queda do Muro de Berlim deu a muitos jogadores da RDA a oportunidade de, pela primeira vez em suas vidas, ganhar muito dinheiro com o esporte. Em compensação, para os clubes do Leste, resultou em uma dramática redução do seu plantel de jogadores, especialmente aqueles com considerável potencial de se desenvolverem.

Calcula-se que durante os dois anos seguintes à Reunificação, olheiros dos clubes da Bundesliga levaram embora mais de 40 jovens jogadores de potencial dos times da RDA. Muitos deles tinham completado apenas 15 anos.

Esses scouts não faziam outra coisa a não ser espionar os treinos dos clubes do Leste. Assediavam os adolescentes com promessas do "Oeste dourado" e tudo isso sem prestar contas aos clubes a respeito de suas tratativas com os jovens. Ao final dessa investida sem escrúpulos, que durou até 1994, contabilizaram-se 150 jogadores da RDA que migraram para o Oeste. Foi um êxodo do qual o futebol do Leste alemão até agora não se recuperou.

Ulf Kirsten, um dos primeiros jogadores a se transferir para o Leverkusen, diz que teve muita sorte por perceber cedo em quem podia confiar: "No começo me senti desamparado, sem saber o que fazer. Muita gente tentou se aproveitar da minha ignorância, especialmente no aspecto financeiro. Afinal, eu nem sabia direito como funcionava o capitalismo."

A esse quadro de perda prematura de jovens promissores somam-se a desigualdade econômica e financeira entre as duas partes da Alemanha que persiste até hoje, ainda que em menor grau do que em 1989, e o desinteresse de eventuais grandes patrocinadores, sejam do Oeste ou do Leste, em investir em clubes à beira do colapso. É a receita pronta para um futebol de segunda categoria.

O único clube da antiga Alemanha Oriental presente na atual Bundesliga é o Union Berlin. O Leipzig não conta, porque é, antes de mais nada, um clube-empresa sem raízes históricas com a comunidade. As torcidas entendem que esse Leipzig nada mais é do que um produto de marketing de uma empresa de energéticos que nada tem a ver com a cultura futebolística local. Geograficamente, poderia estar situado em qualquer lugar do planeta, como de fato já acontece em Salzburg, Nova York e Bragança Paulista. 

Christian Müller, ex-diretor da Bundesliga, afirma: "Nenhum clube da parte ocidental do país permitiria à uma empresa como a Red Bull ter tanta influência. Acontece que o futebol como um todo está tão mal das pernas na extinta RDA que os marqueteiros da Red Bull literalmente farejaram a sua chance e a aproveitaram para implantar esse modelo."

Trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, na seleção alemã, apenas Toni Kroos é oriundo do Leste. Na Bundesliga, só quatro jogadores nascidos nessa parte da Alemanha são titulares nos seus clubes: Arnold (Wolfsburg), Petersen (Freiburg), Uduokhai (Augsburg) e Andrich (Union Berlin). E no time principal do Leipzig da Red Bull, que afirma se orgulhar de fazer parte do Leste, não há um jogador sequer da região.

Junto com o Muro de Berlim, desabou também o futebol no Leste alemão.

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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991 na TV Cultura de São Paulo, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Desde 2002, atua nos canais ESPN como especialista em futebol alemão. Semanalmente, às quintas, produz o Podcast "Bundesliga no Ar". A coluna Halbzeit sai às terças. Siga-o no TwitterFacebook e no site Bundesliga.com.br

 

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Gerd Wenzel começou no jornalismo esportivo em 1991, quando pela primeira vez foi exibida a Bundesliga no Brasil. Na coluna Halbzeit, ele comenta os desafios, conquistas e novidades do futebol alemão.

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