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Sem estereótipos

Júlia Carneiro8 de fevereiro de 2009

Uma produção anglo-alemã foi buscar na América Latina o diretor para um filme sobre o nazismo. E achou Vicente Amorim, no Brasil. O diretor conta à DW-WORLD sobre o desafio de evitar estereótipos sobre o "bem" e o "mal".

Cineasta Vicente Amorim e ator Viggo Mortensen durante as filmagens de 'Um Homem Bom' em BudapesteFoto: Mixer

Olhando para o passado, o personagem principal do filme Um Homem Bom, John Halder, seria, na vida real, mais um nazista condenado pela História. Mas quando se adota a perspectiva oposta – a cronologia de um dia após o outro, a mesma da vida real – parte-se do ponto em que ele ainda não era nazista, e não suspeitava, ou não queria enxergar, o que aquilo viria a se tornar. E observam-se os passos que, um após o outro, ele toma para se tornar uma pessoa que a História viria a chamar de monstro.

John Halder é "um homem bom", personagem criado pelo dramaturgo inglês C.P. Taylor em 1981 para uma peça estreada em Londres. Agora, a obra foi adaptada para o cinema, numa produção da Inglaterra e da Alemanha dirigida por Vicente Amorim. O brasileiro ficou surpreso ao receber o convite da produtora, a inglesa Miriam Segal. Mas entendeu do que ela queria fugir:

O diretor durante as filmagensFoto: Mixer

"Ela achava que um diretor europeu traria muita bagagem pré-concebida para um projeto que tem um enfoque pouco comum, e bastante original, sobre o tema. Talvez para os alemães isso seja uma coisa óbvia, mas para o resto do mundo não é: como pessoas comuns, e intelectuais até bastante preparados, se engajaram na construção do nacional-socialismo na Alemanha."

Coube então a Amorim a tarefa de dirigir uma obra que não deveria entrar no jogo do "bem" contra o "mal", e sim gerar reflexão sobre como o que aconteceu foi possível. "Se você apresenta os alemães simplesmente como vilões, pessoas más, você desumaniza a questão e tira a possibilidade de uma reflexão mais humana, mais próxima, inclusive, do nosso cotidiano hoje."

Omissão do personagem é mensagem para hoje

A atualidade da trajetória de John Halder, segundo Amorim, reside no fato de ela retratar o peso das escolhas individuais, e as consequências que elas podem ter. O protagonista, vivido pelo ator Viggo Mortensen (o Aragorn da trilogia Senhor dos Anéis), é um acadêmico alemão que escreve um romance em que uma mulher, em estado terminal, pratica a eutanásia com ajuda do marido. É a deixa para que o escritor seja procurado, e elogiado, por membros do Partido Nacional-Socialista.

A partir daí, deixando qualquer resistência inicial ser compensada pelas benesses obtidas ao entrar no partido, ele passa a vestir a camisa, e a cruz suástica, nazistas. Mas Halder tem um melhor amigo, e ele é judeu. Não querendo enxergar a dimensão que as ações nazistas estão alcançando, Halder considera um exagero os pedidos de ajuda do amigo e se omite.

"A ideia é não só gerar uma reflexão sobre a Alemanha dos anos 1930, como também sobre os dias de hoje. Sobre como nós, hoje, fazemos escolhas que são aparentemente triviais, mas que têm consequências muito além do que podemos imaginar quando estamos tomando as decisões."

Lidar com o período nazista de uma perspectiva individual levou Amorim a refletir sobre a história de um ponto de vista diferente, "o da pequena vida das pessoas". Para ele, foi interessante pensar "como a vida doméstica das pessoas está fortemente ligada às questões históricas e ao destino, não só das pessoas à sua volta, mas até da humanidade".

Temporada na Alemanha para enfrentar a tarefa

Mas lidar com o passado de outro país e de outro povo – ainda por cima um passado tão sombrio – não foi fácil. Amorim sentiu uma imensa responsabilidade nos ombros, e passou seis meses na Alemanha para entender como o passado é visto no país. Entre idas e vindas, visitou cidades como Leipzig, Nurembergue, Potsdam e principalmente Berlim, onde conversou com alemães de todas as idades, sobretudo jovens adultos.

"Eles falaram que, na escola, aprendem muito a se sentirem culpados sobre o que aconteceu, mas não aprendem de fato como isso foi possível." Dos mais jovens, ouviu que um filme com esse enfoque provavelmente não teria sido feito por um cineasta alemão. E da maioria ouviu que era realmente necessário um filme que tratasse o assunto dessa ótica. "Foi ótimo ter tido essas conversas, porque tirou qualquer sentimento que eu pudesse ter de não estar autorizado a fazer o filme", diz o diretor.

Houve resistência inicial, mas Amorim também conseguiu entrevistar antigos integrantes do partido nazista. "Você conversa com eles e parece um velhinho simpático, bonzinho e tal. Um deles falou algo que me deixou absolutamente tocado. Falou: 'Olha, eu participei, fui do partido, fui da SS, e eu acreditava naquilo. Mas hoje faço questão de contar a minha história porque tem gente que nega que isso tenha acontecido; mas aconteceu, e foi terrível'. Fico arrepiado só de lembrar."

Filme em inglês, filmado em Budapeste

O filme teve estréia mundial no Festival de Toronto, ano passado, e passou pelos festivais de Roma, Chicago e Rio de Janeiro. O primeiro país em que entrou em cartaz de fato foi o Brasil, onde está nos cinemas desde o Natal do ano passado. Em fevereiro de 2009, estreia nas telas americanas, e chega aos cinemas europeus a partir de abril.

Para a Alemanha, a data de estreia ainda não é certa, mas está prevista a partir de abril, diz Amorim. O diretor está ansioso para ver como o país vai receber o filme. No Brasil, as críticas foram bastante positivas. Mas, nesse caso, o fato de o filme ser falado em inglês não pesa negativamente – o que talvez não seja o caso para a platéia alemã.

"O filme ser falado em inglês foi um imperativo econômico. Se fosse em alemão, provavelmente não teríamos conseguido financiamento. Teria sido mais correto, mas o filme nasceu baseado em uma peça inglesa, produzido por uma produtora inglesa, com dinheiro inglês, americano..."

Vicente AmorimFoto: Julia Dias Carneiro

A locação para o filme também não é alemã, e sim húngara. O longa foi filmado em Budapeste, porque, segundo Amorim, a cidade é mais parecida com a Berlim dos anos 30 do que a própria capital alemã atualmente. Em compensação, o esforço para elaborar cenários e figurinos fiéis à época foi minucioso, envolvendo, em sua maioria, profissionais alemães.

A composição do figurino nazista, aliás, incluiu objetos originais. Como, por exemplo, o anel nazista, ornamentado com uma caveira, que o personagem de Viggo Mortensen passa a usar ao entrar no partido. "É uma coisa tétrica você imaginar que aquele anel estava na mão de algum nazista de verdade, que morreu, ou sabe-se lá o que aconteceu com ele. O Viggo, sempre que vestia o uniforme nazista para as cenas, ficava num mau humor inacreditável."

Viggo Mortensen está irreconhecível no papel de John Halder, assumindo um ar absolutamente contido e de uma passividade irritante. Para incorporar o personagem, ele teve que trabalhar questões pessoais. Sua família, da Dinamarca, viveu na pele a invasão da Alemanha nazista na Segunda Guerra. Numa entrevista, ele declarou que "uma coisa linda de ter feito esse filme foi acabar com muitos dos preconceitos eu que tinha antes".

De volta ao Brasil, mas Segunda Guerra ainda em foco

Um Homem Bom – ou Good, no original em inglês – é o segundo longa-metragem de ficção de Vicente Amorim. O primeiro foi O Caminho das Nuvens (Wagner Moura e Cláudia Abreu), que conta a história de uma família que sai de bicicleta da Paraíba para o Rio de Janeiro. Em seu próximo projeto, ele volta ao Brasil, mas explora outro tema ligado à Segunda Guerra: Corações Sujos, baseado no livro de Fernando Morais, retrata a colônia japonesa no Brasil pós-guerra.

Para Amorim, a experiência de trabalhar numa produção internacional foi única, mas o Brasil continua sendo o lugar que mais lhe inspira novos projetos. "Talvez por eu ter morado tão pouco tempo aqui até os 17 anos", diz ele, que é filho do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, e passou a infância e adolescência entre Áustria, Inglaterra, Estados Unidos, Holanda... (e até Brasília).

Para contar uma boa história, porém, a nacionalidade não importa tanto. "Um Homem Bom é um filme sobre escolha, vaidade, amizade... Isso é universal. Por mais brasileiro, alemão ou americano que seja um filme, ele só vai tocar o coração das pessoas se for universal de alguma forma. É como aquela frase: 'se você quer ser universal, fale sobre sua aldeia'", diz, parafraseando Tolstói.

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