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O olho da tempestade

J.P. Cuenca
12 de junho de 2020

Movimentos contra o governo prometem se intensificar. Não faltam previsões sobre o futuro, mas há algo mais importante que tentar adivinhar o que nos espera: entender onde estamos agora, escreve J.P. Cuenca.

Protesto em São Paulo contra o racismo e o governo Jair Bolsonaro
Protesto em São Paulo contra o racismo e o governo Jair BolsonaroFoto: Getty Images/V. Moriyama

1.

Saio às ruas pela primeira vez em quase três meses, para o segundo final de semana de manifestações antifascistas desde o começo da pandemia. Estranho usar sapatos.

No Largo da Batata, Zona Oeste de São Paulo, uma multidão de estudantes secundaristas protesta contra o genocídio do jovem negro, o terrorismo de Estado, este governo. Todos com máscaras, muitos com luvas de plástico. A todo momento, a organização distribui álcool gel. Há preocupação com o distanciamento social em parte da praça, em outra todos se concentram como se não houvesse mais covid-19. Líderes dos movimentos discursam num tímido carro de som. Os nomes de Ágatha Felix, João Pedro Martins, Marielle Franco e George Floyd são os mais lembrados. O sol abre, gritamos palavras de ordem, compramos cervejas. As coisas até parecem que podem melhorar, mas logo passa.

Na dispersão, como de costume, o Choque atira bombas de gás e efeito moral, envelopa quarteirões, espanca manifestantes. O pretexto para a ação criminosa da PM foi dispersar um pequeno grupo que queria seguir até a Avenida Paulista pela Avenida Rebouças, três quilômetros adiante.

Escapo por sorte, comendo tacos numa lanchonete que fechou as portas de metal. Depois os bloqueios não me deixam voltar para casa, um grupo me acolhe. No caminho, um amigo quase é preso, insiste em argumentar com a PM sobre o direito de ir e vir: "o senhor é um cidadão como eu”. Um sujeito de farda responde: "isso é problema seu”.

2.

É errado prestigiar manifestações de rua no meio de uma pandemia galopante, mesmo tomando os cuidados devidos? Sim.

É errado ficar em casa enquanto um governo sem ministro da Saúde ativamente implanta uma política de eugenia que eliminará dezenas (centenas?) de milhares de brasileiros? Sim – ainda mais pensando no privilégio dos que ainda podem guardar quarentena na maior crise de saúde da história do país

Se de qualquer forma estaremos errados (ou certos), melhor escolher, com algum espírito, o erro que nos veste melhor. O fato é que nenhum articulista ou formador de opinião fará o povo não ir – ou ir - à rua. Talvez possamos conversar sobre como ir, vestindo quais cores e sob quais bandeiras e cuidados, mas iremos, de qualquer jeito. E em maior número a cada vez.

3.

Talvez nossa união nas ruas nos mostre algo que não sabemos. Ou que não sabemos que sabemos.

Pois estamos tão cegos, perdidos e afundados na lama que esperamos um golpe sem lembrar que ele já foi dado. Em 2016, com o patrocínio dos donos do capital e de um consórcio jurídico-midiático chamado lavajatismo.

Estamos tão cegos, perdidos e afundados que esperamos pelo dia em que o regime começará a matar opositores políticos sem perceber que isso já aconteceu, no dia 14 de março de 2018, quando milicianos com conexões umbilicais na família Bolsonaro, então já em franca articulação para a presidência, mataram Marielle Franco. E continuaram ameaçando e vitimando envolvidos no caso nos anos seguintes.

Estamos tão cegos e perdidos, que esperamos por um regime militar, sem perceber que já vivemos nele. Sob o governo mais militarizado da história do país e o jugo de PMs camisas negras a cada esquina. Onde, por trás de um descartável palhaço, há uma bem azeitada organização ocupando a estrutura do Estado, muito empenhada em destruir os breves ganhos reformistas da Constituição de 1988 que os apeou do poder.

Estamos tão cegos que esperamos censura sem perceber que já estamos sendo censurados. A censura corporativa, que faz sujeitos ideologicamente dissonantes perdem espaço e oportunidades em qualquer empresa, ganhou o reforço de algo muito pior a partir do governo Temer: o corte de bolsas de pesquisa, de programas de incentivo, a destruição do Ministério da Cultura e da cadeia produtiva do audiovisual brasileiro.

Desde então, somos testemunhas de um dos métodos mais eficazes para censurar e inviabilizar a existência de intelectuais, acadêmicos e artistas: simples penúria.

(E mesmo que tivessem condições para almoçar, jantar e pensar qualquer coisa, o que poderiam dizer que não orbitasse ao redor dos absurdos produzidos industrialmente por esse governo e seus pelotões de milicianos da informação? E quem da massa os ouviria? Isso não seria também uma forma de censura? Produzir ruído suficiente para que ninguém possa se ouvir - ou mesmo pensar?)

4.

Um deputado fascista de São Paulo, alvo de inquérito que apura o uso da máquina administrativa para propagação de fakenews, compilou, com a ajuda de grupos neonazis, um dossiê de mil páginas com nomes, fotografias e endereços de militantes antifascistas. A lista está circulando por grupos de milicianos e foi anexada no início de junho a um boletim de ocorrência que imputa terrorismo aos antifa.

Entro numa rede social, hesito, mas enxovalho o deputado antes de pedir que me inclua no cadastro. Nessa hesitação também já está o golpe, no ar.

5.

Entende-se o esforço despendido em prever cenários para o futuro, atividade cada vez mais popular. Mas há algo mais importante que tentar adivinhar o que nos espera: entender onde estamos agora. Para encontrar as palavras certas e agir à altura da tempestade.

Não a que virá, mas a que já vivemos, hoje e agora.

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Escritor e cineasta, J.P. Cuenca é autor de cinco livros traduzidos para oito idiomas. Seu último romance, Descobri que estava morto, foi vencedor do Prêmio Machado de Assis da Fundação Biblioteca Nacional e deu origem ao longa-metragem A morte de J.P. Cuenca, exibido em mais de 15 festivais internacionais. Ele hoje vive entre São Paulo e Berlim. Siga-o no Twitter, Facebook e Instagram como @jpcuenca

 

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