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O outro misantropo

Simone de Mello1 de outubro de 2004

Mais recente peça de Peter Handke, "Untertagblues" (Blues Subterrâneo) estréia no Berliner Ensemble, em encenação de Claus Peymann. Na peça, o escritor austríaco resgata linha retórica da década de 60.

O 'Homem Selvagem' no palco do Berliner EnsembleFoto: AP

O "Homem Selvagem" ou "Orador do Povo" ou "Desmancha-Prazeres" ou "Inimigo do Povo" entra num vagão de metrô e lança sobre os demais passageiros seu ódio ao mundo: "Vocês de novo. E não é que sou obrigado a estar junto com vocês de novo. Aleluia. Miserere! Maré baixa sem maré alta. Seus malditos inevitáveis. Se pelo menos fossem malfeitores. Nem sequer isso: sem nenhuma contravenção em especial, vocês são o pior dos males. (...) Mal saio do meu quarto e já tenho que estar entre vocês. Mal piso além da soleira da porta, sou obrigado a me mover na companhia de vocês. Em sua companhia? Em sua desnatureza. Por que não estou no alto do Anapurna ou pelo menos no Monte McKinley, em vez de estar com vocês nestas profundezas sufocantes?".

A palavra como ação

Resgatando a fúria ofensiva de Publikumsbeschimpfung (Insulto ao Público, 1965), peça que tornou Handke conhecido como enfant terrible da literatura de língua alemã nos anos 60, o dramaturgo e romancista austríaco entra de novo em cena com Untertagblues (Blues Subterrâneo), usando o palco como espaço da palavra em ação.

A peça consiste praticamente apenas de um monólogo de ofensas aos passageiros do metrô, insultos perfeitamente direcionáveis ao público. Na última cena, a "Mulher Selvagem" entra em ação para voltar a bile do misantropo contra ele mesmo.

A peça, que deveria ser originalmente encenada pelo diretor suíço Luc Bondy, no Burgtheater de Viena, acabou tendo que esperar um ano até ser lançada em palco no Berliner Ensemble, sob a direção de Claus Peymann, que montou pela primeira vez diversas peças de Handke, entre as quais Publikumsbeschimpfung (1966, Frankfurt) e Die Stunde, in der wir nichts voneinander wussten (A hora em que nada sabíamos uns dos outros, 1992, Viena).

Cenas coletivas de um artesão

'Untertagblues': uma representação de tipos urbanos aos solavancos do metrôFoto: AP

Com sua habilidade de construir cenas coletivas de impacto, Peymann encontrou em Untertagblues um ambiente ideal para seu ofício de diretor: o mundo de tipos urbanos mudos se movendo aos solavancos do metrô, por trás de portas automáticas. O Homem Selvagem de Peymann é um desiludido do mundo, cuja misantropia provém evidentemente da falta de afeto – com certeza uma interpretação unilateral do texto.

Ao longo da viagem de metrô até a estação final, o tom misantropo do início da peça vai se transformando numa cantilena sobre a diversidade dos tipos urbanos, personagens potenciais de peças de teatro ainda por escrever. Em Die Stunde, in der wir nichts voneinander wussten, uma peça sem texto que consiste apenas de descrições de minicenas mudas ocorridas às margens dos acontecimentos urbanos, Handke já tinha explorado de forma ainda mais radical, em um drama, as mesmas percepções aguçadas sobre a poética dos gestos que já constam de seus romances.

"O melhor tempo"

O fragmento final de Untertagblues, dito através de um alto-falante, é uma nova apologia às surpresas do cotidiano, às inúmeras possibilidades do presente: "Ei, o melhor de tudo era quando a gente não sabia para onde ia; em qual estação a gente ia descer; como seriam as coisas lá; o que esperava pela gente. Era um tempo majestoso. Era um tempo poderoso. Foi o melhor tempo". E esta mensagem acompanha o público para fora do teatro, para além da ponte sobre o Spree, até a próxima estação de metrô.

Após ter se indisposto com o público leitor na década de 90 por causa de sua defesa da Sérvia e sua crítica à mídia durante a Guerra dos Bálcãs, Handke adentrou a fase madura da sua obra com a linguagem inovadora do romance Bildverlust (A Perda da Imagem, 2002), a força dramática de Untertagblues (2003) e a leveza irônica de Don Juan, erzählt von ihm selbst (Don Juan, por ele mesmo, 2004). O escritor austríaco nascido em Griffen (Caríntia) em 1942 recebeu nesta semana o primeiro Prêmio Siegfried Unseld, concedido por sua editora, a Suhrkamp.

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