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O passo a passo do golpe de Bolsonaro, segundo a PF

27 de novembro de 2024

Ex-presidente de extrema direita liderou organização criminosa que planejou matar Lula e dar um golpe de Estado para se manter no poder, detalha o relatório da investigação da PF.

Jair Bolsonaro fala em meio a apoiadores
Bolsonaro também tinha um plano de fuga para o caso de a tentativa de golpe fracassarFoto: AFP via Getty Images

A Polícia Federal (PF) concluiu que o ex-presidente da República Jair Bolsonaro "planejou, atuou e teve o domínio de forma direta" numa tentativa do golpe de Estado e sabia de um plano para matar em 2022 o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva, segundo o relatório de uma investigação tornado público nesta terça-feira (26/11) pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

"Os elementos de prova obtidos ao longo da investigação demonstram de forma inequívoca que o então presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, planejou, atuou e teve o domínio de forma direta e efetiva dos atos executórios realizados pela organização criminosa que objetivava a concretização de um golpe de Estado e da abolição do Estado democrático de Direito", afirma o relatório.

Segundo a Polícia Federal, o golpe de Estado não se consumou "em razão de circunstâncias alheias à vontade" de Bolsonaro, no caso a "posição inequívoca, dos comandantes do Exército e da Aeronáutica (...), de permanecerem fiéis aos valores que regem o Estado democrático de Direito, não cedendo às pressões golpistas".

A PF concluiu que o general Braga Netto, vice na chapa de Bolsonaro, estava ciente e dera sua aprovação aos planos para assassinar Lula, o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e o ministro do STF Alexandre de Moraes.

O relatório também afirma que o comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, foi o único dos três chefes das Forças Armadas a concordar em participar do golpe de Estado.

Constituição de organização criminosa

O relatório diz claramente que as pessoas acusadas se organizaram e atuaram conjuntamente, mediante divisão de tarefas, para impedir a posse do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e para tentar manter no poder o então presidente da República, Jair Bolsonaro, por meio de um golpe de Estado e da abolição do Estado democrático de Direito. O grupo era liderado por Bolsonaro, afirma o relatório.

Para isso, os envolvidos se organizaram em seis núcleos:

  • Núcleo de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral, composto pelo tenente-coronel e ajudante de ordens Mauro Cid, pelo então ministro da Justiça, Anderson Torres, pelo tenente-coronel Guilherme Marques de Almeida, entre outros.
  • Núcleo Responsável por Incitar Militares a Aderirem ao Golpe de Estado, do qual participavam o general Walter Braga Netto, Mauro Cid, o empresário e comentarista da emissora Jovem Pan Paulo Figueiredo, entre outros.
  • Núcleo Jurídico, no qual estavam Anderson Torres, o assessor internacional de Bolsonaro, Filipe Martins, o advogado Amauri Saad, o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, entre outros.
  • Núcleo Operacional de Apoio às Ações Golpistas, composto pelo major das Forças Especiais Rafael Martins e outros militares.
  • Núcleo de Inteligência Paralela, composto por Mauro Cid, pelo então assessor de Bolsonaro Marcelo Câmara, pelo ex-diretor da Abin e deputado federal Alexandre Ramagem e por servidores da Abin.
  • Núcleo Operacional para Cumprimento de Medidas Coercitivas, composto pelo general Walter Braga Netto, pelo comandante da Marinha, Almir Garnier, pelo chefe do Coter do Exército, Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, pelo ministro da Defesa, Paulo Sérgio, pelo secretário-geral da Presidência, Mario Fernandes, e pelo militar Laércio Vergílio.

Milícia digital e narrativa da fraude

A primeira ação dessa organização criminosa, segundo o relatório da Polícia Federal, foi disseminar, a partir de 2019, "a narrativa falsa da existência de vulnerabilidade e fraude no sistema eletrônico de votação do país".

Essa narrativa tinha dois objetivos: fundamentar a ideia de fraude em caso de derrota eleitoral de Bolsonaro e, "o mais relevante", ser utilizada como fundamento para os atos golpistas que iriam se suceder após a derrota na eleição de 2022.

Para a difusão de informações falsas, como a da vulnerabilidade das urnas eletrônicas e das fraudes eleitorais, os investigados se utilizaram da chamada milícia digital.

Alexandre de Moraes teve suas atividades cotidianas monitoradas pelo grupoFoto: Marcelo Camargo/Agencia Brazil/dpa/picture alliance

"Por mais inverossímil" que fosse, "os investigados sabiam que a narrativa falsa de fraude eleitoral, sendo disseminada por muito tempo, por vários canais, especialmente na internet (aplicativos de mensagens, redes sociais, vídeos, entrevistas etc.), em grande volume seria extremamente eficiente em seu público-alvo", diz o relatório.

O documento da PF diz que fez parte desse processo a live de Bolsonaro, ao lado do então ministro da Justiça, Anderson Torres, em 29 de julho de 2021, para "apresentar o que seriam indícios da ocorrência de fraudes e manipulações de votos em eleições, decorrentes de alegadas vulnerabilidades do sistema eleitoral brasileiro."

Em 5 de julho de 2022, Bolsonaro se reuniu com os seus ministros, para apresentar a narrativa da fraude no processo eleitoral e cobrar deles que a difundissem em suas áreas, "utilizando a estrutura do Estado brasileiro para fins ilícitos e desgarrados do interesse público".

Também fez parte desse processo, segundo o relatório, a reunião de Bolsonaro com embaixadores de outros países, em Brasília, treze dias depois.

Depois da derrota na eleição

Com a derrota na eleição de 2022, o núcleo responsável por atacar o processo eleitoral brasileiro, "seguindo o planejamento da empreitada criminosa", começou a "reverberar por multicanais a ideia de que as eleições presidenciais de 2022 foram fraudadas, estimulando seus seguidores a 'resistirem' na frente de quartéis e instalações das Forças Armadas, no intuito de criar o ambiente propício para o golpe de Estado."

O relatório menciona diversas ações adotadas pelos investigados, como a disseminação de "estudos sem qualquer lastro, que teriam identificado o registro de votos após o término do horário de votação e a existência de inconsistências no código-fonte das urnas eletrônicas"; a postergação, por Bolsonaro, da divulgação do relatório do Ministério da Defesa, que não identificou "qualquer indício de fraudes ou vulnerabilidades no sistema eletrônico de votação"; e a representação, pelo Partido Liberal (PL), perante o TSE, "pela nulidade dos votos computados nas urnas eletrônicas produzidas antes do ano de 2020", apesar de os investigados saberem, "de forma inequívoca", que "o argumento (...) era inconsistente".

"Os investigados, mesmo cientes da chance remota de êxito, adotaram a referida estratégia com a finalidade de servir de fundamento para a tentativa de golpe de Estado, que estava em curso."

O núcleo de inteligência paralela, a chamada Abin Paralela, "desenvolveu diversas ações clandestinas, utilizando, de forma ilícita, órgãos do Estado brasileiro, com a finalidade de consumar o golpe de Estado", diz o relatório da PF.

Isso incluiu produzir informações falsas sobre o processo eleitoral e ministros do STF e do TSE, que foram disseminadas por influenciadores digitais alinhados a Bolsonaro. "Estes (..) incitavam parcela da população a manterem as manifestações em frente a estabelecimentos militares e a realizarem ações violentas que tiveram o objetivo de criar o elemento desencadeador do golpe de Estado", como a tentativa de explosão de um caminhão-tanque perto do aeroporto de Brasília e de invasão da sede da PF.

Assassinatos de Lula, Alckmin e Moraes

Em paralelo, o núcleo operacional do golpe de Estado planejava o assassinato de Lula e do então vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e do ministro do STF Alexandre de Moraes, pelas Forças Especiais (FE), os chamados "kids pretos", em reuniões em Brasília em novembro e dezembro de 2022.

No dia 8 de novembro de 2022, os investigados elaboraram um planejamento operacional para ações de Forças Especiais a ser apresentado para o general Braga Netto. O documento foi chamado de "punhal verde-amarelo" e impresso no dia seguinte no Palácio do Planalto, pelo então secretário-executivo da Secretaria-Geral da Presidência, general Mario Fernandes, que é um "kid preto".

O documento, segundo o relatório, descreve como se daria a prisão e execução de Moraes e "estabelece a possibilidade, dentre as ações dos 'kids pretos', de assassinarem" Lula e Alckmin por envenenamento ou uso de produtos químicos, "com a finalidade de extinguir a chapa presidencial vencedora". No documento Lula recebeu o codinome de "Jeca" e Alckmin, de "Joca".

O relatório diz que Moraes e Lula tiveram suas atividades cotidianas monitoradas, "inclusive com o emprego de recursos do Batalhão de Ações e Comandos (BAC)".

Em 15 de dezembro, a data marcada para o golpe de Estado, "os denominados 'kids pretos' iniciaram a etapa final da execução da ação para prender e assassinar" Moraes, denominada por eles de Copa 2022.

"O grupo, com pelo menos seis integrantes, se posicionou em pontos estratégicos nas proximidades da residência funcional do ministro e no STF para conclusão da ação", mas, "diante do encerramento precoce da sessão no Supremo Tribunal Federal e da posição intransigente do comandante do Exército em não aderir ao intento golpista, a ação foi 'abortada' pelos criminosos."

Comandante do Exército foi contra o golpe

Já o núcleo jurídico se reunia com Bolsonaro, no Palácio do Planalto, para elaborar o decreto presidencial do golpe de Estado.

A base do decreto era um artigo escrito por Amauri Saad, no qual ele aborda a aplicação do artigo 142 da Constituição. Pela interpretação dele, o presidente poderia "usar as Forças Armadas para garantir a lei, a ordem e o funcionamento adequado dos poderes constitucionais".

Após finalizar o decreto, Bolsonaro chamou ao Palácio do Planalto os comandantes da Marinha, almirante Almir Garnier, e do Exército, general Freire Gomes, e o ministro da Defesa, Paulo Sérgio, para apresentar-lhes o decreto e obter o seu apoio, em 7 de dezembro. O comandante do Exército rejeitou aderir a qualquer plano que impedisse a posse do governo legitimamente eleito. Já o comandante da Marinha colocou-se à disposição para cumprimento das ordens.

Sem a adesão de Freire Gomes, Bolsonaro se reuniu em 9 de dezembro com o general Estevam Theophilo Gaspar de Oliveira, comandante do Comando de Operações Terrestres (Coter), que aceitou cumprir o decreto.

Naquele mesmo dia, depois de um silêncio que começara logo após o segundo turno, Bolsonaro sinalizou a seus apoiadores que, "juntamente com as Forças Armadas, iria tomar uma atitude para reverter o resultado das eleições presidenciais, para atender o "apelo popular'".

Para isso, ao longo de dezembro, o então presidente e os demais investigados tentaram "de todas as formas pressionar e convencer os comandantes do Exército e da Aeronáutica a aderirem ao golpe de Estado em execução". Como se mostraram irredutíveis, os comandantes da Aeronáutica e do Exército passaram a ser alvos da milícia digital.

Entre as tentativas de convencer Freire Gomes a aderir ao golpe está uma mensagem enviada a ele pelo militar Mario Fernandes. Nela, Fernandes afirma que os golpistas contam com um "evento disparador, como no passado", numa referência ao golpe militar de 1964.

Uma nova reunião entre Freire Gomes e o ministro da Defesa em 14 de dezembro, véspera da tentativa de golpe, também não mudou a posição do general. Assim os investigados desistiram de consumar o ato final, e Bolsonaro, apesar de estar com o decreto pronto, não o assinou.

Um padre e sua oração pelo golpe

Entre os integrantes do núcleo jurídico estava o padre José Eduardo de Oliveira e Silva, da Diocese de Osasco. Pouco depois do segundo turno, em 3 de novembro, ele encaminhou uma mensagem a um contato, identificado como Frei Gilson, que é uma espécie de oração pelo golpe.

Na mensagem, José Eduardo solicita a todos os brasileiros, católicos e evangélicos, que incluam em suas orações os nomes do ministro da Defesa e de 16 generais de quatro estrelas "pedindo para que Deus lhes dê a coragem de salvar o Brasil, lhes ajude a vencer a covardia e os estimule a agir com consciência histórica e não apenas como funcionários públicos de farda". Ele pede a Frei Gilson que repasse a mensagem apenas a pessoas de estrita confiança.

"Lula não sobe a rampa" – o pós-golpe

Material apreendido na sede do Partido Liberal com um assessor do general Braga Netto e intitulado Operação 142 esboça as ações para o golpe e os dias seguintes. Delas fazem parte "decretar o art. 142 'Dia D'", "anulação das eleições", "substituição de todo o TSE", "preparação de novas eleições" e "Lula não sobe a rampa".

O decreto de Bolsonaro "previa uma ruptura institucional, impedindo a posse do governo legitimamente eleito, estabelecendo a Decretação do Estado de Defesa no âmbito do Tribunal Superior Eleitoral e a criação da Comissão de Regularidade Eleitoral para apurar a 'conformidade e legalidade do processo eleitoral'".

"Na concepção dos integrantes da organização criminosa, a assinatura deste decreto presidencial serviria como base legal e fundamento jurídico para o golpe de Estado."

A PF afirma que a criação de um "Gabinete Institucional de Gestão da Crise" já estava planejada. Ele seria criado pelo Gabinete de Segurança Institucional (GSI) da Presidência da República em 16 de dezembro, um dia depois do golpe. O chefe do gabinete seria o general Augusto Heleno, e o coordenador-geral, o general Braga Netto.

Fuga de Bolsonaro para os EUA

Os planos do grupo investigado incluíam um plano de fuga para Bolsonaro caso o golpe de Estado não desse certo. Um documento em poder de Mauro Cid previa o uso do dispositivo Rafe/Lafe, que no jargão do Exército se refere ao plano para um fugitivo deixar "território ocupado pelo inimigo".

O documento foi criado para o caso de Bolsonaro descumprir uma possível ordem judicial do STF (após os ataques que fez ao tribunal nas comemorações do 7 de setembro de 2021) e não ter apoio do Exército para o golpe. Nessa situação, a ideia era "exfiltrar o Pr para o exterior".

"Ou seja, após garantir a segurança de Jair Bolsonaro, os militares golpistas criariam uma rede de auxílio para acolher o ex-presidente e conduzi-lo para fora do território nacional."

O relatório afirma que, apesar de não de ter sido empregado em 2021, o plano de fuga foi adaptado e utilizado no fim de 2022, "quando a organização criminosa não obteve êxito na consumação do golpe de Estado".

A última esperança: o 8 de Janeiro

Mesmo com o fracasso do golpe em 15 de dezembro, os investigados ainda acreditavam ser possível uma ação de ruptura institucional com o apoio da Forças Armadas. Para isso continuaram a incitar manifestações diante de quartéis, o que culminaria nos eventos violentos do dia 8 de janeiro de 2023.

O general Mario Fernandes estabeleceu vínculo com os manifestantes golpistas que estavam acampados em frente a instalações militares pedindo uma ruptura
institucional. Segundo a PF, Fernandes atuou como provedor material, financeiro e orientador dos manifestantes.

Uma troca de mensagens entre Mauro Cid e Sérgio Cavaliere, quatro dias antes do 8 de janeiro, indica que Cid estava ciente do que viria a acontecer. Às perguntas de Cavaliere "Ainda tem algo para acontecer?" e "Coisa boa ou coisa horrível?", Cid responde "Para o Brasil é boa".

O relatório detalha ações de pessoas que arrecadaram recursos financeiros entre apoiadores do golpe e afirma que os investigados tinham confiança de que os atos antidemocráticos ocorridos em 8 de janeiro de 2023 desencadeariam ações concretas das Forças Armadas para executar um golpe de Estado – ou seja, seriam o "evento disparador, como no passado".

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