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O peso da Justiça sobre a vida de presidiários na pandemia

3 de julho de 2020

Apesar do alto risco de contágio pelo coronavírus em presídios, STF e juízes vêm contrariando recomendação do CNJ para a revisão de certas prisões. Casos de covid-19 no sistema prisional mais que dobraram em um mês.

Detentos de branco de costas na penitenciária da Papuda, em Brasília
Mais de 9,5 mil casos e 114 mortes por covid-19 já foram confirmadas no sitema prisionalFoto: Imago Images/Agencia EFE/J. Alves

Decisões do Supremo Tribunal Federal (STF) influenciam todas as instâncias inferiores do Poder Judiciário. Por esse motivo, causou repercussão entre advogados criminalistas o fato de, especialmente no contexto da atual pandemia, a ministra do STF Rosa Weber negar, na última terça-feira (30/06), um pedido de liminar para que um jovem condenado pelo furto de dois xampus, no valor de 10 reais cada, cumprisse penas alternativas.

O jovem em questão tem outros furtos na ficha de antecedentes. Em sua decisão, a ministra destaca trechos da condenação pelo juiz de primeira instância, que se baseou na reincidência para afirmar que o jovem não tem condições de "conviver em sociedade", ainda que o valor dos xampus seja irrisório.

A decisão intensifica um debate que tem criado divisões no meio jurídico durante a pandemia. No dia 17 de março, quando os números da covid-19 no país ainda estavam longe dos atuais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Recomendação 62/2020. Entre outros pontos, o texto incentiva magistrados a reverem prisões de pessoas que integrem grupos de risco, estejam em final de pena ou não tenham cometido crimes violentos nem pertençam a organizações criminosas.

O posicionamento do CNJ, renovado em 12 de junho por mais três meses, lembra os riscos à saúde dos detentos e de toda a sociedade, uma vez que servidores do sistema levam a doença para fora das unidades. O texto assinala ainda o reconhecimento pelo STF do "estado de coisas inconstitucional" no sistema penitenciário brasileiro na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 347.

Segundo o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), a taxa de ocupação média nos 1.408 estabelecimentos penais no país é de 165,72%. Um levantamento da Agência Pública mostra que quatro em cada dez unidades não possui consultório médico, enquanto a população carcerária registra uma incidência de tuberculose 35 vezes maior do que a população livre.

Na época em que a recomendação do CNJ foi publicada, a Corte Interamericana de Direitos Humanos pediu que os demais países adotassem as medidas propostas. A iniciativa também foi elogiada pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), em carta de apoio divulgada no dia 6 de abril.

De acordo com a Constituição Federal, cabe ao CNJ a fiscalização e normatização do Poder Judiciário e atos praticados por seus órgãos. Entretanto, a própria carta magna reconhece a liberdade de decisão dos magistrados. Portanto, recomendações do Conselho não precisam ser acatadas obrigatoriamente por juízes e desembargadores.

Eloísa Machado, professora de Direito Constitucional e coordenadora do projeto Supremo em Pauta, na Fundação Getúlio Vargas (FGV), lembra que o STF contribuiu para esvaziar o peso da recomendação do CNJ, apesar de ambos os órgãos serem presididos pelo ministro Dias Toffoli.

"Diante de uma provocação para aplicação compulsória dessa recomendação, o STF entendeu que se tratava apenas de uma orientação geral, sem nenhum tipo de imposição para os magistrados reverem prisões provisórias ou evitarem novas prisões. Isso serviu de estímulo para juízes que já usavam de maneira excessiva a prisão provisória e não se sentiram instados a rever essas prisões, muitas delas abusivas", avalia.

Com 773.151 pessoas presas, segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), o Brasil tem a terceira maior população carcerária do mundo. Desse total, 33% correspondem a presos provisórios, que ainda não foram julgados.

Mutirão de advogados

Casos como o que teve liminar rejeitada pela ministra Rosa Weber nesta semana mobilizaram um mutirão voluntário de cem associados do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) em São Paulo. Eles acompanham 531 processos atualmente. O IDDD obteve decisões favoráveis na Justiça em 71 desses casos – 22 na primeira instância; 18 na segunda; 29 no STJ e dois no STF. Há recursos aguardando análise há mais de dois meses. Das seis decisões referentes a casos acompanhados por um único advogado, nenhuma mencionou a proposição do Conselho Nacional de Justiça.

Uma crítica recorrente entre os membros do grupo são os erros em trechos de decisões – que indicariam um método "copia e cola" –, mesmo em instâncias mais elevadas, como o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

"A postura geral do Judiciário é conservadora e deixa de considerar coisas importantes. A prisão cautelar (provisória) é entendida como uma absoluta exceção em nosso ordenamento jurídico. Só se justifica para tentativa de interferência ou fuga. Chamo atenção para o viés ilegal e atécnico de várias das decisões, que demonstram um senso de punir ilegítimo e uma distorção de papéis dos agentes", afirma Hugo Leonardo, presidente do IDDD.

Embora o tom crítico adotado pelo Instituto ecoe entre importantes pesquisadores do Direito Criminal, há contestações dentro do meio jurídico. Antonio Henrique Graciano Suxberger, membro auxiliar da Comissão do Sistema Prisional do Conselho Nacional do Ministério Público (CSP/CNMP), enxerga uma confusão entre as particularidades impostas pelo contexto da pandemia à Justiça Criminal e um movimento de desencarceramento coletivo que considera imprudente. Reconhecendo que o sistema carcerário reproduz a desigualdade social do país, o promotor chama atenção para a variedade dos casos processados.

"Não podemos esquecer que a prisão cautelar ainda é medida de prevenção, como em casos de violência doméstica. Precisamos discutir o congestionamento processual em primeira instância, cujo equacionamento passa pela riqueza de alternativas penais. Não há respostas prontas para o combate à pandemia, mas medidas de atuação e enfrentamento nas quais precisamos avançar. Sequer conseguimos ter dados claros sobre o sistema prisional", diz.

Contágio em massa após decisão

Em meio à pandemia, a mãe de M.O. espera que o reencontro com o filho na última terça-feira (30/6) ponha fim ao sofrimento da família. Epilético, o jovem de 20 anos contraiu o novo coronavírus dentro do Jardim São Luiz, unidade da Fundação Casa (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente) em São Paulo.

"Estou sofrendo, com pressão alta todos os dias. Quero levar meu filho no médico e dar um bom alimento. Ele é negro e está com a pele clara, sem banho de sol", disse a mãe à DW Brasil, na véspera da liberação assistida de M.O.

O jovem estava há dois anos e três meses na instituição, pela acusação de envolvimento em um crime de latrocínio, que a família contesta com base em um laudo pericial. Os advogados Flavio Grossi e Priscila Naves Tardelli, sócios do escritório Naves e Almeida Sociedade de Advogados, tentavam a soltura desde o final de maio por se tratar de um jovem do grupo de risco, quando ele ainda não tinha contraído o vírus. Após a negativa da juíza Calila Radamilans, a dupla teria ainda dois recursos negados no Tribunal de Justiça de São Paulo, um no STJ e outro no STF, pela ministra Carmem Lúcia.

Primeiro a contrair a covid-19 na unidade, M.O. infectou mais de 40 internos e seis funcionários. Os dois médicos que prestavam atendimento no local estão afastados desde o início da pandemia por integrarem o grupo de risco. Não há penas para adolescentes infratores que ingressam no sistema socioeducativo, mas um período de internação com duração mínima de seis meses e máxima de três anos. M.O. estava na unidade há dois anos e três meses, com relatórios de quatro técnicos da Fundação Casa recomendando sua liberação.

"O Judiciário vem se confundindo com o poder de Segurança Pública. São coisas separadas. Cabe ao juiz aplicar o direito", critica Grossi. A dupla de advogados chama atenção para a decisão de soltura da juíza, que ressalta a "imunização" do jovem após sofrer com a doença na unidade.

Baixa reincidência

O boletim semanal do CNJ, que organiza dados levantados junto aos governos estaduais, indicava em 29 de junho a ocorrência de 9.586 casos confirmados de covid-19 no sistema prisional (5.554 entre detentos e 4.032 por servidores) – um aumento de 162,3% nos últimos 30 dias e 21,1% na última semana.

Foram 114 os óbitos confirmados até agora (58 detentos e 56 servidores), tendo havido alta de 50% nos últimos 30 dias. Especialistas chamam atenção para a elevada probabilidade de subnotificação, já que o acesso a testes é precário na maioria dos estados.

Ainda de acordo com o CNJ, 32,5 mil pessoas foram retiradas das unidades prisionais entre 17 de março e 12 de junho em atendimento à Recomendação 62/2020. O número corresponde a 4,8% do total de pessoas em privação de liberdade. Entre os que deixaram as unidades prisionais durante a pandemia, a taxa de reincidência criminal foi de 2,5%. O indicador contrasta com a média de 42,5% observada entre 2015 e 2019.

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