O pior ano da Lava Jato
31 de dezembro de 2019A expectativa de que Lava Jato ganhasse novo impulso em 2019 com a nomeação de sua principal estrela, o ex-juiz Sergio Moro, para um superministério da Justiça e Segurança Pública especialmente desenhado para ele, não se concretizou.
Aquele que seria o ano em a operação finalmente passaria a mudar a política por dentro - com membros da operação no comando da Polícia Federal e com Moro promovendo iniciativas como o pacote anticrime - acabou sendo um inédito período de abalo na credibilidade e de derrotas no Supremo e no Congresso para os participantes do núcleo curitibano da Lava Jato.
O ano já começou com o coordenador da força-tarefa em Curitiba, Deltan Dallagnol, sendo criticado por tentar criar com outros procuradores uma fundação bilionária com dinheiro de multas da Petrobras. Pelo plano, essa fundação ficaria responsável pela gestão de 1,25 bilhão de reais.
A iniciativa gerou críticas tanto no mundo político quanto dentro do Ministério Público. Ao final, acabou sendo barrada em março pelo Supremo a pedido da própria procuradora-geral da República, Raquel Dodge, que ainda censurou publicamente os procuradores.
Vaza Jato
Mas o abalo maior para a credibilidade das principais figuras da operação, entre elas Deltan e o agora ministro Moro, ocorreu depois que o site The Intercept Brasil revelou diálogos que levantaram suspeitas de conluio entre o ex-juiz e o MPF na condução de inquéritos e ações penais contra réus como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, político de maior renome alvo da Lava Jato.
As mensagens, que foram obtidas ilegalmente por um hacker, indicam que o então juiz teria, entre outras coisas, orientado ilegalmente ações da operação Lava Jato, como negociações de delações, cobrado novas operações e até pedido para que os procuradores incluíssem uma prova num processo.
As mensagens também revelaram que os procuradores cogitaram investigar ministros do Supremo e tiveram inicialmente dúvidas em relação à delação de um empreiteiro que incriminou Lula. Outras mensagens indicam que Deltan também tentou aproveitar a exposição pública proporcionada pela Lava Jato para lucrar no mercado de palestras.
O ministro Moro adotou uma posição dúbia. Ora disse que não reconhecia as mensagens, ora afirmou que elas não tinham nada de mais ou que as conversas com os procuradores foram um mero "descuido”.
Derrotas em série no Supremo
Também foi um ano de dificuldades para a Lava Jato no Supremo e em sua relação com os ministros. Em março, a primeira derrota: o Supremo decidiu que casos de corrupção associados a crimes eleitorais, como caixa 2, podem ser processados em tribunais eleitorais, e não na Justiça Federal.
Em maio, foi a vez de os ministros finalmente validarem um indulto de Natal assinado pelo então presidente Michel Temer em 2017, que havia sido suspenso. À época, o benefício foi visto como uma tentativa de livrar da prisão condenados por corrupção. Após ser validado, beneficou diretamente presos da Lava Jato como o ex-tesoureiro do PT João Vaccari Neto.
Em agosto, em meio ao contexto do escândalo da "Vaza Jato”, foi a vez de o STF anular pela primeira vez uma sentença de Moro, com base num novo entendimento sobre a ordem de entrega de alegações finais de réus delatores e delatados numa mesma ação penal.
Em novembro, o golpe mais duro: por seis votos a cinco, o Supremo decidiu na noite derrubar a decisão que permitia o cumprimento de pena após condenação em segunda instância. Pelo novo entendimento, um condenado só passará a cumprir pena após trânsito em julgado, ou seja, quando a possibilidade de recurso for esgotada.
A decisão alterou a jurisprudência que vigorava desde 2016 e que era considerada um dos pilares da Operação Lava Jato. A reviravolta abriu caminho para que condenados como Lula, José Dirceu e o ex-governador Azeredo, entre outros, deixassem a prisão.
Outro revés ocorreu entre julho e novembro, quando o STF determinou a paralisação de investigações que usavam dados compartilhados pelo antigo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) sem autorização da Justiça.
O STF ainda barrou, em agosto, a transferência de Lula para um presídio estadual em São Paulo, contrariando uma determinação da juíza Carolina Lebbos, responsável pela execução da pena de Lula em Curitiba.
Paralelamente, Deltan também seguiu sendo alvo de um processo disciplinar por "suspeita de "manifestação pública indevida" no Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP). O caso foi aberto em 2018, após o procurador conceder uma entrevista de rádio na qual acusou ministros do STF de "leniência" com a corrupção. O encaminhamento foi feito pelo próprio presidente do tribunal, Dias Toffoli. Em dezembro, Deltan saiu com uma pena leve de advertência, mas essa foi a primeira punição disciplinar da carreira do procurador.
Também ocorreram outros problemas de imagem para a Lava Jato como um todo, não só no núcleo curitibano, quando o ex-procurador-geral Rodrigo Janot – que havia elaborado algumas das denúncias mais barulhentas contra políticos com mandato entre 2015 e 2017 – enterrou sua reputação ao declarar que tinha planejado matar o ministro Gilmar Mendes.
Derrotas no Congresso
À frente do Ministério da Justiça, Moro teve dificuldades para traduzir sua popularidade em ação política, especialmente em negociações com o Congresso. Em fevereiro, ele apresentou um ambicioso pacote anticrime, que mesclava ideias defendidas pelos membros da Lava Jato e pautas ultraconservadoras do presidente Jair Bolsonaro. Mas o pacote pouco avançou na maior parte do ano, ficando em segundo plano diante de pautas como a reforma da Previdência.
Quando finalmente avançou, o Congresso retirou alguns dos principais pontos defendidos por Moro e por setores do MPF, como a prisão em segunda instância e o "plea bargain". Os deputados ainda incluíram a figura do "juiz de garantias”, um responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal, diferente do magistrado que decide a sentença na ação penal.
A criação do juiz de garantias foi encarada como uma medida anti-Moro e uma reação às revelações da Vaza Jato, que levantaram questionamentos sobre a conduta do ex-juiz.
Não foi a única derrota. Ainda em 2019, o Congresso aprovou uma versão desfigurada do projeto "Dez Medidas contra a Corrupção”, um projeto de iniciativa popular que foi defendido e divulgado por Moro e Deltan nos últimos anos. Além de retirarem alguns dos pontos, os parlamentares incluíram um dispositivo para prevenir o "abuso de autoridade”, uma ideia que vinha sendo defendida há anos por membros do Congresso que foram afetados por ações do Ministério Público, como o senador Renan Calheiros.
A convivência tumultuada de Moro e Bolsonaro
Ao convidar Sergio Moro para o seu governo, Bolsonaro disse que o então juiz "teria liberdade total” e "carta branca” para combater a corrupção e o crime organizado.
Mas, em fevereiro, Bolsonaro já havia deixado claro que havia limites ao ordenar a exoneração de uma conselheira nomeada pelo ex-juiz considerada "esquerdista” demais pela sua militância.
Em maio, Bolsonaro disse que pretendia indicar Moro para uma vaga no STF, como parte de "um compromisso”. No entanto, em julho disse que queria alguém "terrivelmente evangélico”. Em agosto, disse finalmente que "não existe nenhum compromisso com Moro”.
No mesmo mês, Bolsonaro anunciou a troca do superintendente da PF no Rio, passando por cima da corporação subordinada a Moro. "Quem manda sou eu. Ou vou ser um presidente banana?”, disse. Bolsonaro ainda impôs um novo procurador-geral sem levar em conta a opinião do ministro.
Bolsonaro também determinou a transferência do Coaf – hoje Unidade de Inteligência Financeira – do Ministério da Economia para o Banco Central, numa medida que foi encarada como uma tentativa de dificultar a atuação do órgão, criticado pelo presidente por sua atuação no caso Flávio. Na troca de pastas, o então presidente do Coaf, Roberto Leonel, que havia sido indicado por Moro, perdeu o cargo.
Em dezembro, Bolsonaro também sancionou a versão desidratada do pacote anticrime sem vetar a figura do "juiz de garantias”, incluída no texto pelo Congresso. Moro pediu repetidas vezes que Bolsonaro vetasse o item.
Já o MPF como um todo também se viu desprestigiado quando Bolsonaro ignorou a lista tríplice do órgão para nomear um novo procurador-geral, escolhendo Augusto Aras para o cargo, que nem sequer aparecia na relação. A opinião de Moro sobre a escolha também foi ignorada pelo presidente.
Deltan, que chegou a ter seu nome defendido para a PGR por apoiadores da Lava Jato em redes sociais, foi fritado pelo próprio clã Bolsonaro. Em agosto, o presidente chegou a compartilhar uma mensagem que acusava o procurador de ser um "esquerdista estilo PSOL”. Já o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, reproduziu no Twitter um vídeo em que o ideólogo Olavo de Carvalho acusava Deltan de elaborar um plano de financiamento de "ONGs de esquerda” por meio da sua malfadada fundação.
Vitórias e popularidade
No seu balanço anual, a operação apontou que 2019 bateu o recorde de denúncias apresentadas à Justiça. Foram oferecidas 29 denúncias pelos procuradores integrantes do caso, envolvendo 150 pessoas, sendo 99 denunciados pela primeira vez na operação e 51 que já são réus em outros processos. Entre os denunciados estavam vários políticos que perderam o mandato nas eleições de 2018, como os ex-senadores Romero Jucá e Edison Lobão.
A operação ainda contou com uma segunda condenação em primeira e segunda instâncias de Lula, desta vez pelo caso do sítio. A sentença chegou a ser aumentada pelo Tribunal Regional Federal da 4° Região. O ex-presidente Michel Temer também chegou a ser preso por ordem do juiz Marcelo Bretas, da Lava Jato do Rio, mas só permaneceu dez dias detido. Tribunais também reverteram várias prisões preventivas da Lava Jato, como a do ex-governador Beto Richa.
Mesmo com todos os abalos em 2019, a operação continua com bastante apoio popular, segundo o Datafolha – 81% consideram que ela não cumpriu seu objetivo e deve continuar. Moro também é o ministro mais popular do governo. Entre os que dizem conhecê-lo, 53% avaliam sua gestão no ministério como ótima ou boa. Outros 23% consideram regular, e 21%, ruim ou péssima. Ele é mais popular do que Bolsonaro, que conta com apenas 30% de aprovação, de acordo com o Datafolha. O índice também contrasta com o STF, que só é bem avaliado por 19%.
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