Presidente da Câmara sofre revés em decisão do STF, e Renan Calheiros sai fortalecido e pode frear processo de impeachment. Especialistas, no entanto, afirmam que governo continuará tendo "vida dura" no Congresso.
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O presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, sofreu uma de suas primeiras grandes derrotas desde que rompeu oficialmente com o governo. Na noite desta quinta-feira (13/08), o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que as contas do governo terão que ser analisadas em sessões conjuntas do Senado e da Câmara, e não mais isoladamente por cada uma das casas.
A decisão é um golpe para Cunha, que vinha usando a prerrogativa de analisar as contas separadamente para intimidar o governo – uma eventual rejeição dos balanços do primeiro mandato de Dilma Rousseff pelos deputados por causa das "pedaladas fiscais" poderia ser usada para dar início a um processo de impeachment.
Agora, qualquer análise vai ser comandada pelo presidente do Congresso, o senador Renan Calheiros, um antigo aliado do Planalto que, depois de ameaçar com o rompimento, nas últimas semanas voltou a ensaiar um alinhamento com o governo. Calheiros é que vai definir a data da votação e colocá-la na pauta.
A decisão do STF deve trazer um pouco de tranquilidade para o governo Dilma. Em 6 de agosto, Cunha chegou a aprovar a toque de caixa contas de governos anteriores – algumas paradas há décadas – para deixar o terreno livre para uma votação do balanço da petista.
No momento, as contas de Dilma ainda estão sendo analisadas pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que provavelmente vai recomendar sua rejeição e depois encaminhar os documentos ao Congresso. Antes de o STF entrar em cena, Cunha esperava usar seu poder para colocar logo as contas em votação e manobrar uma nova reprovação, debilitando ainda mais o governo. Renan, porém, já declarou publicamente que a análise das contas não é prioritária.
Ainda assim, o Planalto não conseguiu tudo que queria no tribunal. Numa decisão salomônica, o ministro Luís Roberto Barroso diminuiu o poder de Cunha, mas também afirmou que as contas de governos anteriores já votadas pela Câmara não devem ser anuladas. Ele foi, assim, contra o desejo do Planalto.
Na mesma noite em que Barroso analisou o caso, Cunha também sofreu outro arranhão. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, afirmou em parecer enviado ao STF que o peemedebista está fazendo uso da estrutura do Estado para fins pessoais.
Recentemente, Cunha usou a prerrogativa de presidente da Câmara para acionar a Advocacia-Geral da União, com o objetivo de anular provas colhidas no centro de informática da Câmara durante uma das etapas da Operação Lava Jato – em que ele aparece como suspeito de ter recebido propina.
Os últimos acontecimentos ocorreram em meio à expectativa de que Cunha venha a ser denunciado nas próximas semanas pelo Ministério Público Federal (MPF) por lavagem de dinheiro e corrupção por causa do seu envolvimento na Lava Jato – o lobista Julio Camargo, um dos delatores que está colaborando com o MPF, afirmou que Cunha cobrou propina de 5 milhões de reais num negócio da Petrobras com a Samsung que envolvia o aluguel de sondas marítimas.
Declínio?
Especialistas ouvidos pela DW Brasil, no entanto, têm opiniões contrárias sobre se a derrota de Cunha no STF pode marcar um ponto de virada no poder acumulado pelo deputado, que nos últimos meses vem dificultando a vida do governo ao usar sua influência na Câmara.
"Isso sinaliza que o governo está aos poucos conseguindo isolar Eduardo Cunha e procurando uma saída para a crise. O deputado ainda tem bastante artilharia para causar estragos, mas perdeu uma de suas principais armas", afirma o sociológo Rodrigo Prando, da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
Já Ricardo Ismael, diretor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, afirma que é preciso cautela para analisar o momento. "Foi uma semana ruim para Cunha, mas eu não consideraria isso uma tendência ou que ele esteja prestes a se tornar uma carta fora do baralho."
Ambos, no entanto, concordam que a decisão do STF, na prática, fortalece ainda mais Calheiros, que tem sido a aposta do Planalto para acabar com a crise.
Nas últimas semanas, o senador vem assumindo uma posição de fiador da estabilidade. Nesta semana, junto com outros membros do PMDB, ele apresentou a chamada Agenda Brasil, um conjunto de propostas – algumas muito polêmicas – para retomar o crescimento da economia e tentar desviar o foco das ameaças de impeachment da presidente.
Cunha, apesar de ser do mesmo partido, não foi convidado a participar das discussões. Em público, ele desdenhou das propostas e disse que tudo "não passa de um jogo de espuma sem conteúdo".
Na opinião de Prando, no entanto, o fortalecimento de Calheiros não significa que o fim da crise começa a se desenhar. "Não se pode esquecer que Renan também está implicado no escândalo da Lava Jato, e pode se voltar contra o governo caso seja denunciado, e nesse caso ele vai ter muito mais poder do que Cunha para combater o governo", afirma.
Ismael também concorda que a crise está longe de acabar. "É falsa essa percepção de que, se Cunha fosse deletado de uma hora para outra, a vida do governo ficaria mais fácil. Não se pode esquecer que o Congresso é uma instituição bicameral. Não se pode jogar toda a responsabilidade no Senado, esperando que ele faça o trabalho da Câmara. Os projetos precisam passar pela casa. E, com ou sem Cunha, o governo vai continuar sem uma base estável e confiável. O Planalto não consegue nem fazer deputados petistas votarem de acordo com o seu interesse. Cunha tem poder de influenciar a pauta, mas, no final, são deputados que acabam votando, e nesse ponto o Planalto não está conseguido influenciar", diz.
Entenda a Operação Lava Jato
A Polícia Federal apura, desde 2014, um esquema bilionário de lavagem e desvio de dinheiro envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras e políticos. Entenda a maior investigação sobre corrupção já conduzida no país.
Foto: AFP/Getty Images
O início
A Operação Lava Jato foi deflagrada pela Polícia Federal em 17 de março de 2014. Começou investigando um esquema de desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro e descobriu a existência de uma imensa rede de corrupção envolvendo a Petrobras, grandes empreiteiras do país e políticos. O nome vem de um posto de gasolina em Brasília, um dos alvos da PF no primeiro dia de operação.
Foto: picture-alliance/dpa/M. Brandt
O esquema
Executivos da Petrobras cobravam propina de empreiteiras para, em troca, facilitar as negociações dessas empresas com a estatal. Os contratos eram superfaturados, o que permitia o desvio de verbas dos cofres públicos a lobistas e doleiros, os chamados operadores do esquema. Eles, por sua vez, eram encarregados de lavar o dinheiro e repassá-lo a uma série de políticos e funcionários públicos.
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As figuras-chave
O esquema na Petrobras se concentrava em três diretorias: de abastecimento, então comandada por Paulo Roberto Costa; de serviços, sob direção de Renato Duque; e internacional, cujo diretor era Nestor Cerveró. Cada área tinha seus operadores para distribuir o dinheiro. Um deles era o doleiro Alberto Youssef (foto), que se tornou uma das figuras centrais da trama. Todos os citados foram condenados.
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As empreiteiras
As grandes construtoras do país formaram uma espécie de cartel: decidiam entre si quem participaria de determinadas licitações da Petrobras e combinavam os preços das obras. Os executivos da estatal, por sua vez, garantiam que apenas o cartel fosse convidado para as licitações. Entre as empresas investigadas estão Odebrecht, Andrade Gutierrez e Camargo Corrêa. Vários executivos foram condenados.
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Os políticos
O núcleo político era formado por parlamentares de diferentes partidos, responsáveis pela indicação dos diretores da Petrobras que sustentavam a rede de corrupção dentro da estatal. Os políticos envolvidos recebiam propina em porcentagens que variavam de 1% a 5% do valor dos contratos, segundo os investigadores. O dinheiro foi usado, por exemplo, para financiar campanhas eleitorais.
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De Cunha a Dirceu...
A investigação só entrou no mundo político em 2015, quando a Lava Jato foi autorizada a apurar mais de 50 nomes, entre deputados, senadores e governadores de vários partidos. Desde então, viraram alvo de investigação políticos como os ex-parlamentares Eduardo Cunha (foto) e Delcídio do Amaral, ambos cassados, os senadores Renan Calheiros, Fernando Collor e o ex-ministro José Dirceu.
Foto: Reuters/A. Machado
... e Lula
O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva é réu em dez processos relacionados à Lava Jato, sendo acusado pelos crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e obstrução da Justiça. As denúncias indicam que Lula teria recebido benefícios das empreiteiras OAS e Odebrecht, envolvendo imóveis no Guarujá e São Bernardo do Campo. Em 2018, ele foi preso e teve uma nova candidatura à Presidência barrada.
Foto: picture-alliance/AP Photo/F. Dana
As prisões
A Lava Jato quebrou tabus no Brasil ao encarcerar altos executivos de empresas e importantes figuras políticas. Entre investigados e aqueles já condenados pela Justiça, estão o executivo Marcelo Odebrecht, ex-presidente da Odebrecht; Eduardo Cunha, ex-presidente da Câmara; Sérgio Cabral, ex-governador do Rio; os ex-ministros José Dirceu (foto) e Antonio Palocci, entre outros.
Foto: picture-alliance/dpa/EPA/H. Alves
As delações
Os acordos de delação premiada são considerados a força-motriz da operação. Depoimentos como o de Marcelo Odebrecht (foto) chegam com potencial para impactar fortemente a investigação. O acordo funciona assim: de um lado, os delatores se comprometem a fornecer provas e contar o que sabem sobre os crimes, além de devolver os bens adquiridos ilegalmente; de outro, a Justiça reduz suas penas.
Foto: Getty Images/AFP/H. Andrey
O juiz
Responsável pela Lava Jato na 1° instância, o ex-juiz federal Sergio Moro logo ganhou notoriedade. Em manifestações, foi ovacionado pelo povo e chegou a ser chamado de "herói nacional". Mas também foi acusado de agir com parcialidade política. Em 2018, deixou o cargo e aceitou ser ministro do presidente Jair Bolsonaro, cuja candidatura foi beneficiada pela prisão de Lula no ano anterior.
Foto: Getty Images/AFP/E. Sa
Expansão internacional
Se começou num posto de gasolina em Brasília, a Lava Jato ganhou proporções internacionais com o aprofundamento das investigações. Segundo dados do Ministério Público Federal levantados a pedido da DW Brasil, a investigação já conta com a cooperação de pelo menos outros 40 países (veja no gráfico acima). Além disso, 14 países, fora o Brasil, investigam práticas ilegais promovidas pela Odebrecht.
Um terremoto político
Ao longo de cinco anos, a Lava Jato influenciou o impeachment de Dilma Rousseff, enfraqueceu o governo Michel Temer e contribuiu para a derrocada de velhos caciques do PT, MDB e PSDB. Em 2018, Lula, então favorito para vencer as eleições presidenciais, foi preso e teve a candidatura barrada. As investigações também fortaleceram um discurso antissistema que beneficiou a campanha de Bolsonaro.
Foto: picture-alliance/dpa/ZUMAPRESS/C.Faga
Críticas e revelações
A Lava Jato também acumulou acusações de parcialidade e de abusos em seus métodos. Em 2019, os procuradores da força-tarefa foram duramente criticados por tentarem criar uma fundação para gerenciar uma multa bilionária da Petrobras. No mesmo ano, conversas reveladas pelo site "The Intercept" apontaram suspeita de conluio entre Moro e os procuradores na condução dos processos, o que é proibido.