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O presidente-fantasma que paira sobre a Argélia

Charlotte Voss rk
7 de março de 2019

Enquanto país vive maiores protestos desde a Primavera Árabe, Abdelaziz Bouteflika, que buscará reeleição aos 82 anos, se mantém longe dos olhares da opinião pública, chamando atenção para complexa rede de poder.

Abdelaziz Bouteflika, em cadeira de rodas desde 2013
Abdelaziz Bouteflika, em cadeira de rodas desde que sofreu AVC, em 2013Foto: Getty Images/AFP/R. Kramdi

A Argélia está vivendo uma Primavera Árabe defasada? Os protestos atuais, os maiores no país desde a série de revoluções históricas em países árabes que chegaram a derrubar três presidentes de mandatos longevos em nações vizinhas, indicam que sim.

Na época da Primavera Árabe, ocorrida entre 2010 e 2012, as manifestações realizadas na Argélia promoveram poucas mudanças no país. Em 2012, quando o presidente Abdelaziz Bouteflika se dirigiu à população pela última vez, a Argélia recebia lucros sem precedentes devido ao alto preço do barril de petróleo (cerca de cem dólares).

"Isso permitiu ao presidente 'comprar' alguma paz social e conter as consequências econômicas negativas da Primavera Árabe", avalia Youcef Bouandel, em artigo publicado pela Al Jazeera.

Agora, assim como ocorreu nos vizinhos Tunísia e Líbia, no Egito e na Síria, a ira das massas na Argélia se dirige sobretudo contra o chefe de Estado, que tem 82 anos. Bouteflika governa o país de 40 milhões de habitantes desde 1999 e deverá concorrer ao quinto mandato seguido nas eleições marcadas para o próximo dia 18 de abril.

Porém, ao contrário de Zine el-Abidine Ben Ali, da Tunísia, ou Hosni Mubarak , do Egito, que deixaram o poder devido à Primavera Árabe em 2011, Bouteflika não é necessariamente um homem odiado. Especialmente argelinos mais idosos apreciam seu papel na guerra de independência contra a França, e sua chegada posterior ao poder, após o fim de uma guerra civil durante a qual se estima que até 200 mil pessoas morreram. Bouteflika é visto com o mérito de ter trabalhado para estabilizar o país após o conflito brutal. Entre outras medidas, ele ofereceu uma anistia a antigas guerrilhas islamistas.

A raiva dos manifestantes predominantemente jovens que tomaram as ruas de Argel e de muitas outras cidades nas últimas semanas se direciona contra as condições sob as quais a Argélia vem estagnando há décadas.

Muitos jovens não conseguem encontrar empregos, enquanto a corrupção é galopante. Pouquíssimos se beneficiam das riquezas em recursos naturais do país, e quase não há movimentos políticos. Num país em que metade da população tem menos de 30 anos, a falta de perspectivas, especialmente para os jovens, é uma potencial e perigosa fonte de conflito.

Presidente ausente

O que não está claro é se e até que ponto Bouteflika ainda tem alguma influência sobre a situação na Argélia. Desde 2012, jovens argelinos apenas receberam anúncios presidenciais em forma de mensagens lidas por âncoras noticiosos.

Um dos exemplos mais recentes aconteceu no último domingo (03/03), quando um jornalista de TV informou que Bouteflika concorrerá à reeleição. A notícia, aparentemente, foi anunciada por meio de uma carta de autoria do debilitado presidente.

Segundo o documento, depois de reeleito, Bouteflika quer iniciar reformas imediatas que levarão a novas eleições e à sua própria saída da política. "Escutei e ouvi os clamores dos corações dos manifestantes", disse o presidente, segundo o texto.

Mas não há provas de que ele próprio realmente tenha escrito essas palavras. A única experiência que 40 milhões de argelinos têm em relação ao seu presidente é a de um fantasma.

Bouteflika está numa cadeira de rodas desde que sofreu um AVC (acidente vascular cerebral) em 2013. Com preocupações crescentes, nos últimos anos, sobre se a saúde debilitada de Bouteflika lhe permite tomar decisões e agir de forma independente, os detalhes sobre a saúde do presidente argelino vêm sendo tratados como segredo de Estado.

Recentemente, o embaixador argelino na França foi até obrigado a desmentir rumores de que Bouteflika tinha morrido. E, confrontado sobre o assunto pelo departamento árabe da DW, um integrante do alto escalão do seu partido, a Frente de Libertação Nacional (FLN), não conseguiu responder de forma plausível sobre se foi o presidente que de fato escreveu sua carta pública direcionada à população da Argélia.

Argélia vive maior onda de protestos desde 2011, protagonizados por jovensFoto: Getty Images/AFP/R. Kramdi

Observadores concordam que, atualmente, a figura de Bouteflika apenas representa um compromisso entre as forças que, por muito tempo, determinaram o destino do país: uma complexa rede de poderes de bastidor, que inclui oligarcas e líderes militares, além de líderes políticos de vários partidos.

Os argelinos chamam essa rede de "le pouvoir" ("o poder", em francês). Diz-se que o irmão de Bouteflika, Said, faz parte do círculo mais estreito, assim como Ahmed Gaid Salah, chefe do Estado-Maior do Exército Nacional Popular da Argélia, e o empresário Ali Haddad.

Por muitos anos, essas figuras em segundo plano não conseguiram entrar em acordo sobre a sucessão de Bouteflika. Agora, a situação pode sair de seu controle, assim como seus privilégios políticos e econômicos. Eles precisam se reposicionar.

Na última quinta-feira, Salah, numa sombria alusão à guerra civil dos anos 1990, alertou que algumas forças querem levar a Argélia de volta à "era da dor extrema". Mas, segundo ele, o Exército não permitiria o colapso da segurança – algo que, certamente, pode ser visto como ameaça.

Todos os cenários – de uma revolta bem-sucedida contra o regime a uma reconfiguração de agentes nos bastidores do poder ou até um golpe militar – são concebíveis, mas poucos prometem estabilidade. A Argélia enfrenta tempos turbulentos.

No entanto, diferentemente do que aconteceu com o ex-presidente tunisiano Ben Ali, Bouteflika não terá de fugir do país de avião se manifestantes acabarem com sua carreira política: ele já está fora do país há semanas. Enquanto os argelinos se opõem à sua última candidatura ao governo, o presidente está em Genebra, oficialmente para um "check-up médico de rotina".

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