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O que diz a lei de 1798 usada por Trump para deportações

8 de abril de 2025

Regra foi desenhada durante "quase-guerra" com a França no século 18. Texto exige "guerra" ou "ameaça de invasão" para prender ou deportar estrangeiros sumariamente.

Avião com deportados chega em El Salvador
Trump deportou mais de 200 venezuelanos para El Salvador sob lei de 1978Foto: Secretaria de Prensa de la Presidencia/Handout via REUTERS

Em 1798, a aproximação entre Estados Unidos e a Grã-Bretanha e a recente abolição da monarquia na França colocou os americanos no limiar de uma guerra com os franceses. Em preparação ao conflito iminente, o Congresso dos EUA passou quatro leis que facilitavam a expulsão de estrangeiros e limitavam críticas ao governo federalista.

Mais de dois séculos depois, o conflito contra os franceses nunca se consolidou e a legislação prevista para ser usada "durante período de guerra" é agora aplicada pelo presidente dos EUA, Donald Trump, como base para deportar imigrantes venezuelanos.

A Suprema Corte dos Estados Unidos deu aval ao movimento de Trump ao acatar nesta segunda-feira (08/04) um pedido do presidente para suspender uma ordem que impedia a aplicação da lei do século 18 no contexto atual.

A decisão da Corte permite que Trump aplique o chamado Alien Enemies Act (Lei de Inimigos Estrangeiros, ou AEA) para reunir membros de organizações criminosas venezuelanas e enviá-los sumariamente ao Centro de Confinamento de Terrorismo (Cecot), o maior presídio da América Latina, localizado em El Salvador.

Entenda a disputa judicial

O caso estava em disputa judicial após a Casa Branca enviar 238 supostos membros do grupo venezuelano Tren de Aragua para El Salvador. O governo defende que a gangue conduz uma "guerra irregular e realiza ações hostis contra os Estados Unidos".

Um magistrado de uma corte distrital em Washington, James Boasberg, tentou barrar a deportação com base no AEA, mas o gabinete de Trump disse que a decisão chegou "tarde demais", sem apresentar evidências de que o avião partiu de solo americano após o despacho da justiça.

A Casa Branca chegou a reconhecer posteriormente que um dos homens, um salvadorenho de 29 anos, foi deportado "por engano", mas disse não poder trazê-lo de volta, já que agora ele está sob a jurisdição do regime de Nayib Bukele.

Ao suspender a ordem de Boasberg, a Suprema Corte abriu espaço para novas deportações acontecerem sob a lei de guerra. Contudo, o tribunal não analisou o mérito da legislação, ou seja, se ela pode ser aplicada neste modelo. A decisão foi suspensa apenas com base processual.

Os juízes entenderam que, como os imigrantes estão detidos no Texas, o caso deveria ter sido apresentado naquele estado, incapacitando um juiz de Washington de analisar a matéria. Na prática, abre espaço para a lei voltar a ser questionada nos tribunais texanos.

O tribunal superior americano também decidiu que os migrantes sujeitos à deportação sob a Lei de Inimigos Estrangeiros de 1798 devem ser notificados e ter a oportunidade de contestar legalmente sua remoção.

Por que a Lei de Inimigos Estrangeiros foi criada?

No final do século 18 as tensões entre EUA e França escalavam. Em 1789 os americanos haviam saído de uma longa guerra de independência contra o Reino Unido, amplamente financiada pela monarquia francesa, e eleito seu primeiro presidente. Três anos depois, na Europa, a Revolução Francesa derrubou Luís 16 e instalou uma república no país.

Para os americanos, a derrocada da monarquia eliminava também sua dívida, já que os valores eram devidos à realeza deposta – e não à recém-instalada Convenção Nacional.

Pequenos embates navais passaram a ser travados no mar do Caribe e no mar das Antilhas, o que agitou também a política interna americana – um país que ainda tentava consolidar sua nova Constituição. O Partido Federalista dos EUA, que defendia um governo central forte, temia que os "estrangeiros" que viviam nos Estados Unidos simpatizassem com os franceses durante um possível conflito, explica o Arquivo Nacional dos EUA.

Casa Branca alega que Venezuela ameaça "invasão" ao posicionar membros de gangues nos EUAFoto: Secretaria de Prensa de la Presidencia/REUTERS

A guerra, de fato, nunca se consolidou – o período ficou conhecido como "quase-guerra" – mas provocou o Congresso americano a desenhar quatro leis, conhecidas coletivamente como Lei de Inimigos Estrangeiros e a Lei de Sedição. As regras limitavam discursos críticos ao governo e restringiam direitos de estrangeiros.

"Essas leis aumentaram os requisitos de residência para a cidadania de 5 para 14 anos, autorizaram o presidente a deportar estrangeiros e permitiram sua detenção, prisão e deportação em tempos de guerra. A Lei de Sedição tornou crime para os cidadãos americanos 'imprimir, proferir ou publicar... qualquer texto falso, escandaloso e malicioso' sobre o governo", escreve o Arquivo Nacional. À época, o termo "Alien", usado no título do ato, não carregava a conotação moderna hoje traduzida para "alienígena".

A regra mirava principalmente os democratas-republicanos, o partido de oposição que agregava "novos cidadãos" americanos. Mesmo com a assinatura do Tratado de Mortefontaine, que cessou os embates com a França, alguns dispositivos da Lei de Sedição foram aplicados principalmente para acusar editores de jornais por desacato e suprimir dissidências no Senado.

Os julgamentos desencadearam uma tempestade de críticas contra os federalistas e contribuíram para sua derrota na eleição de 1800. "As controvérsias, no entanto, proporcionaram alguns dos primeiros testes dos limites da liberdade de expressão e de imprensa", conclui o Arquivo Nacional.

O que diz a lei e como ela é usada?

Na prática, a lei permite ao governo americano prender ou deportar estrangeiros de uma "nação inimiga" sumariamente, ou seja, sem o devido processo legal. Estes dispositivos haviam sido usados apenas três vezes na história dos EUA – em 1812, na guerra anglo-americana, e durante a Primeira e a Segunda Guerra.

Com isso, o alvo das detenções eram cidadãos provenientes dos países envolvidos nestes conflitos, como alemães, austro-húngaros, japoneses e italianos. A lei é mais conhecida por sua aplicação contra 120 mil imigrantes ou descendentes de imigrantes japoneses durante a Segunda Guerra, incluindo alguns com cidadania americana. A lei continuou a ser usada mesmo após o fim das hostilidades.

Familiares protestam contra deportação de salvadorenho feita por "erro administrativo"Foto: Jose Luis Magana/AP Photo/picture alliance

O presidente americano só pode convocar o ato em tempos de "guerra declarada". Segundo a Constituição, quem pode declarar guerra no país é o Congresso, e não o poder Executivo. Isso faz com que primeiro seja necessário um debate legislativo antes do uso da lei. Contudo, o presidente não precisa esperar os parlamentares para evocar a regra se houver uma "incursão predatória" ou "invasão" corrente contra o território americano.

Essa possibilidade abre uma disputa de interpretação sobre sua implementação. "Alguns políticos e grupos anti-imigração pedem uma interpretação não literal da invasão e da incursão predatória para que a Lei de Inimigos Estrangeiros possa ser invocada em resposta à migração ilegal e ao tráfico transfronteiriço de narcóticos", escreve o Centro Brennan para Justiça, da Universidade de Nova York.

"Mas essa interpretação proposta para a lei está em desacordo com séculos de práticas legislativas, presidenciais e judiciais, todas as quais confirmam que a Lei de Inimigos Estrangeiros é uma autoridade de guerra. Invocá-la em tempos de paz para contornar a lei convencional de imigração seria um abuso gritante."

Como Trump justifica o uso da lei?

Durante anos, Trump argumentou que os EUA estão enfrentando uma "invasão" de pessoas que chegam ilegalmente ao país. Autoridades do governo usam a terminologia militar para descrever a entrada irregular de estrangeiros.

Em comunicado, a Casa Branca disse que a organização venezuelana Tren de Aragua (TdA) "está perpetrando, tentando e ameaçando uma invasão ou incursão predatória"  contra o território dos EUA.

A Casa Branca ainda afirma que o TdA está conectado com o regime de Nicolás Maduro e cita avaliação da Interpol para justificar o uso do termo "invasão". "Em dezembro de 2024, a Interpol Washington confirmou: 'O Trem de Aragua surgiu como uma ameaça significativa aos Estados Unidos, pois se infiltra nos fluxos migratórios da Venezuela'. Evidências demonstram irrefutavelmente que o TdA invadiu os Estados Unidos e continua a invadir."

No último domingo, Trump foi mais longe para justificar o ato e defendeu que "este é um tempo de guerra".

gq/cn (ap, dpa, afp, ots)