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CatástrofeBrasil

O que o Brasil aprendeu depois da pior chuva da história?

19 de fevereiro de 2024

Um ano depois da tragédia no litoral paulista, sobreviventes relatam medo de novo desastre. Especialistas criticam falhas em alertas e planos de adaptação a um planeta exposto a mudanças climáticas.

Pessoas observam escombros depois de enxurrada na Vila Sahy
Em 19 de fevereiro de 2023, enxurrada devastou Vila SahyFoto: Nelson Almeida/AFP

A interdição de sua casa não impediu que Joice Cordeiro e família voltassem a ocupá-la. A moradia é uma das 900 que seriam demolidas na vila Sahy, em São Sebastião, por estarem expostas ao risco de novos deslizamentos de terra após a maior chuva já registrada no país, há um ano.

Por enquanto, as demolições estão suspensas. Mas os escombros de construções arrasadas pela enxurrada de 19 de fevereiro de 2023 ainda estão pela comunidade. A tragédia deixou 65 mortos.

"Eu moro no alto do morro. Claro que eu tenho medo de tudo cair, mas não tenho condições de pagar aluguel, por isso nós voltamos", diz a costureira Cordeiro à DW sobre o retorno para o Sahy, há dois meses.

Ela chegou a morar num pequeno apartamento em Bertioga pago pelo governo do estado, mas a distância da escola do filho e das máquinas de costura, que ficaram no Sahy, pesaram na decisão.

Na madrugada do desastre, todos os moradores da casa – dois adultos e duas crianças – viram a água minar do chão e encher os cômodos. Eles deixaram o imóvel quando uma vizinha avisara, às 3h, que uma avalanche descia da serra, mas só conseguiram chegar num ponto mais seguro às 6h, depois de muito desespero e pedidos de socorro.

Desde que voltou para à vila, Cordeiro diz ter relembrado diversas vezes aquela tensão. Isso acontece com o disparo da sirene, instalada no bairro em dezembro último para avisar sobre a possibilidade de chuvas fortes e evitar mais mortes. "O som é bastante alto. Uma voz dá instruções de forma bem clara sobre o que fazer. Acho legal, e ao mesmo tempo, não. Bate um desespero de que vai acontecer tudo de novo. E algumas vezes, nem chove", afirma a costureira.

O equipamento instalado pela Defesa Civil emite quatro tipos de alertas: possibilidade de chuvas fortes; risco de alagamento; risco de deslizamento com instruções para evacuação; retorno à situação normal e liberação para os moradores voltarem para suas casas.

Mas nem todos no bairro sabem o que fazer quando o alarme soa, ou por onde seguir, morro abaixo, até um abrigo seguro, dizem moradores ouvidos pela DW.

Gargalo na prevenção das mortes

O aviso original sai do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais (Cemaden). Antes da tragédia de 2023 se confirmar em São Sebastião, os especialistas alertaram as autoridades em 16 de fevereiro sobre o potencial impacto das chuvas, que evoluiu para o alerta máximo na tarde do dia 18.

"A eficácia dos alertas só será alta quando as defesas civis nos municípios se estruturarem em termos de planos de prevenção, preparação e rotas de fuga. Assim será possível orientar a população para que ela tenha ciência do que fazer e para onde ir", afirma Regina Alvalá, diretora substituta do Cemaden.

A rede de monitoramento do centro tem mais de 3 mil pluviômetros instalados no país. Quando o risco é detectado, o alerta segue direto para as defesas civis nacional, estadual e dos municípios. Para Alvalá, alguns gargalos nesta cadeia ainda influenciam o alto número de vítimas.

"É urgente aprimorar a comunicação. As defesas civis nos municípios precisam estar melhor estruturadas para receber as informações e agirem a tempo, retirarem as pessoas da área de risco se o nível de alerta demandar esta ação. A população precisa também estar ciente de quais ações têm de adotar", destaca.

O Cemaden foi criado em 2011 depois do pior desastre natural do Brasil, na região serrana do Rio de Janeiro, quando enxurradas e deslizamentos mataram 947 pessoas, houve mais de 300 desaparecidos e milhares de desalojados. Desde então, o centro emitiu mais de 25 mil alertas e registrou volumes de chuva cada vez maiores.

Baixa confiança dos moradores

A instalação de avisos sonoros em locais mais suscetíveis a desastres naturais é importante, mas ter a confiança dos moradores na hora em que um alerta é emitido seria mais relevante, avalia Ana Maria Heuminski de Ávila, meteorologista e pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

"A integração entre as defesas civis está melhorando. Mas os alertas precisam ser mais assertivos. Caso contrário, as pessoas passam a não levar a sério e, quando elas realmente têm que deixar suas casas, elas não saem", diz Ávila.

Nesse quesito, segundo a cientista, o Brasil teria um longo caminho pela frente. "Precisamos de mais sensores de medições. Às vezes, tem a previsão de chuva forte, mas nem sempre há a confirmação da previsão em curto prazo. É preciso saber o tempo que tal evento vai ocorrer", afirma Ávila, reforçando a importância da previsão imediata do tempo, o nowcasting.

Na vila do Sahy, o toque mais recente da sirene foi na última quinta-feira, diz a moradora Joice Cordeiro. "Disseram que foi por causa de uma possível chuva de 40mm, mas não aconteceu. Não teve chuva", conta.

"Política do cimento"

As lições aprendidas no país marcado por desigualdades e com tantos desastres são tímidas. Embora o país tenha registrado o aumento de eventos extremos climáticos como secas severas e chuvas intensas por causa das mudanças climáticas, a adaptação a este cenário está lenta, avalia Diosmar Filho, geógrafo, pesquisador da Associação de Pesquisa Iyaleta.

"O Brasil usa os eventos como notícia, mas não como mudança de política pública. Acontece uma tragédia e os órgãos vêm com a ‘política de cimento', com contenção de encostas. Vão cimentar as cidades para fazer frente à questão climática?", questiona Filho, que participa de estudos focados em desigualdades raciais, de gênero, sociais, territoriais e mudanças climáticas.

O pesquisador cita diversos estudos científicos que demonstram como a cobertura do solo com concreto aumenta a força da corrente de água da chuva que chega nas vias. Em várias cidades, novas áreas são criadas para abrigar condomínios de luxo, o que empurra as pessoas de baixa renda para encostas e zonas de risco.

"É preciso incluir estratégias como o reflorestamento, recuperar as cidades com clima urbano em condição de saúde. Mas os municípios desmatam para ‘ampliar a economia', não investem em política climática e o plano diretor segue a velha política", critica o geógrafo.

"Não tenho coragem de pisar lá"

Maria* nunca mais voltou ao Sahy. Está morando com a família nas casas temporárias construídas num bairro de São Sebastião e diz não saber para onde irão no futuro.

"A minha filha de 3 anos não esquece. Imagine a gente. Hoje, graças a Deus, eu moro longe da vila, não tenho coragem de pisar lá", conta a sobrevivente. "Eu não consegui mais ser a pessoa que eu era antes, tenho crises de ansiedade, não é fácil esquecer", adiciona, lembrando o luto por ter perdido muitos amigos.

A comerciante Claudia* diz, um ano depois, que as vendas no seu mercadinho quase voltaram ao normal. Logo depois da tragédia, ela precisou jogar muitos produtos perecíveis fora por falta de clientes.

"Agora tem obras de contenção nas encostas, drenagem nas ruas, caminhões trabalham o dia todo. A gente ainda tem medo por causa do morro, mas estamos aqui", diz Claudia, que mantém o comércio na parte baixa do morro.

Joice Cordeiro, 38 anos, chegou com os pais da Bahia aos seis no Sahy. Testemunhou o crescimento do bairro e esperou todos esses anos pela regularização fundiária. Desempregada, ela vive da produção de enxovais, do conserto de roupas. Como tem uma pequena oficina na casa que construiu no Sahy, ela abriu mão de se mudar para o apartamento que será entregue pelo governo do estado no bairro Baleia Verde aos atingidos pelo desastre.

"Eu recebo ligações da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano para eu aceitar o apartamento, eles dizem que o morro pode deslizar, mas eu não vou. Lá não tem espaço para minhas máquinas de costura, e eu vivo disso. Eu não sei como está a estrutura dessa minha casa, não recebi auxílio aluguel, eu sinto que não tenho escolha", afirma.

*Os moradores preferiram não ser identificados na reportagem.

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