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As lições da gripe espanhola para o pós-pandemia

Susanne Spröer cn
27 de abril de 2020

Doença que provocou milhões de mortes entre 1918 e 1920 alimentou xenofobia no mundo e alterou relações de poder em vários países. Ao olhar para seus efeitos, lições podem ser tiradas para o fim da pandemia da covid-19.

USA Grippewelle Spanische Grippe
Soldados americanos com gripe espanhola internados em hospital no KansasFoto: picture-alliance/National Museum of Health and Medicine

A primeira vez que ouvi falar sobre a gripe espanhola foi pela minha avó, que contou que sua mãe, minha bisavó, adoeceu da enfermidade em 1918, quando ela tinha apenas quatro anos. Minha bisavó sobreviveu, mas ficou com uma grave doença cardíaca. Apesar disso, ela teve ainda dois filhos. Até a morte, permaneceu acamada e minha avó cuidou dos irmãos mais novos e do pai durante anos. A gripe espanhola marcou sua vida, assim como a de milhares pelo mundo.

Minha família não foi tão atingida pela pandemia, somente por isso posso estar aqui escrevendo. Entre 1918 e 1920, a gripe espanhola causou entre 50 milhões e 100 milhões de mortes no mundo, estimam especialistas.

Uma comparação entre a gripe espanhola e a covid-19 seria meio capenga. Naquela época, não se sabia o que estava causado as mortes. O vírus como causador de doenças só foi descoberto em 1933. O genoma do Sars-Cov-2, ao contrário, foi decifrado pouco tempo depois das primeiras infecções, e atualmente vacinas e medicamento estão sendo intensivamente estudados. A medicina está muito mais avançada hoje do que em 1918.

Bisavó e avó da autora em 1917

Mesmo assim, há algumas semelhanças entre as duas pandemias. Hoje, como naquela época, uma doença mergulhou o mundo numa crise profunda. Apesar da pandemia de covid-19 estar no início, a história da gripe espanholas nos oferece alguns ensinamentos para o futuro pós-pandemia.

A jornalista britânica Laura Spinney no livro Pale Rider: The Spanish Flu of 1918 and How it Changed the World (Justiceiro Solitário: a gripe espanhola de 1918 e como ela mudou o mundo, em tradução literal), publicado em 1918, oferece algumas indicações neste sentido.

Há dois anos, quando o li, jamais imaginei que viveria medidas clássicas de combate à pandemia, como proibição de contato e de eventos, fechamento de fronteiras, quarentena, uso obrigatório de máscaras de proteção.

Quando ouvi as primeiras notícias sobre mortes na China há poucos meses também pareceu ser impossível o que estamos vivendo agora. Mesmo antes de a primeira onda infecciosa varrer a Europa, o vírus já espalhava seu veneno. Indivíduos com fenótipo asiático denunciavam casos de xenofobia nas redes sociais.

No início de fevereiro, a revista alemã Spiegel publicou uma reportagem de capa intitulada "Coronavírus: Made in China". As letras em amarelo diante da imagem de uma pessoa vestida com uma roupa de proteção vermelha evocaram a associações ao termo pejorativo "perigo amarelo", que desde o século 19 é usado, com frequência, para atiçar o ressentimento contra os povos do leste asiático, principalmente a China.

Agora, infelizmente, ocorre o contrário. Na China, como a diminuição do contágio local, segundo dados próprios, estrangeiros começaram a relatar experiências xenófobas. Eles são temidos como portadores do vírus.

Medo e a xenofobia

No surto da gripe espanhola, os medos também eram expressados com acusações, que podem ser exemplificadas nos nomes dados à nova doença na época.  No Brasil, ela era chamada de gripe alemã, no Senegal, de gripe brasileira. Já na Polônia, era a doença bolvechique.

O episódio histórico foi especialmente injusto com os espanhóis. Segundo Spinney, a gripe espanhola não surgiu na Espanha, mas muito provavelmente nos Estados Unidos.

Porém, os primeiros relatados escritos da doença surgiram na Espanha. Por sua neutralidade na Primeira Guerra Mundial, os jornais espanhóis não sofriam censura militar e escreveram sobre o surto em Madri em 1918. Embora a enfermidade tenha se alastrado semanas antes em trincheiras na Bélgica e França, o nome gripe espanhola perpetuou.

Mudar o rumo do futuro

Crises provocam não somente medo e ressentimento, mas também trazem impulsos positivos e soluções criativas. Segundo o futurologista Matthias Horx, vimos um momento histórico de mudança de direção do futuro. Ele ilustra como esse futuro poderia parecer com experimento mental: o re-gnóstico.

Ao contrário do prognóstico, o re-gnóstico olha de volta do futuro para o agora. Assim, ele reconhece não somente o impulso de modernização óbvio e sentido diariamente por meio do treinamento prático de técnicas digitais, como videoconferências, ensino pela internet ou trabalho remoto, mas também como a inteligência humano-social contribuirá para dominar a crise.

Enfermeiras trabalhando durante a gripe espanhola, em 1918Foto: picture-alliance/akg-images

Segundo o re-gnóstico de Horx, o distanciamento social obrigatório exigirá uma nova proximidade. Isso já ocorre. Comunico-me mais com amigos e colegas, por telefone ou videoconferência, do que antes da crise. Antes de ir ao mercado, pergunto aos vizinhos mais velhos se precisam de algo.

A comunidade mundial pode superar essas fortes crises somente com união, numa estreita cooperação internacional. Depois da gripe espanhola, essa constatação levou a fundação da Organização de Saúde da Liga das Nações, percursora da Organização Mundial de Saúde (OMS). Para muitos Estados, se tornou claro sua responsabilidade pelos cuidados de saúde pública, que não deveria ficar somente a cargo de organizações de assistência social, igrejas e instituições médicas privadas, como antes.

Também depois do coronavírus, os sistemas de saúde em todo o mundo serão colocados à prova.

Além disso, a gripe espanhola alterou ainda as relações de poder político e social em diversos lugares. Por exemplo, na Índia. A pandemia matou a população indiana e não os colonizadores ingleses. As injustiças no acesso a tratamentos médicos fortaleceram a resistência, e Mahatma Gandhi, que chegou a adoecer também, se tornou líder do movimento de independência em 1919.

Ruptura profunda na arte dos anos 1920

A gripe espanhola deixou consequências visíveis na arte e na cultura. O pintor Egon Schiele deixou um dos testemunhos mais chocantes. Seu quadro "A Família" mostra ele, a esposa Edith e uma criança, que nunca nasceu. Edith morreu grávida vítima da pandemia, assim como o próprio pintor três dias depois. O quadro foi pintado nesse interim.

Depois das experiências traumáticas da guerra e da pandemia, a arte nos anos 1920 sofreu uma ruptura tão "violenta quanto a divisão do Mar Vermelho na Bíblia", segundo Spinney. Dois exemplos: Arnold Schönberg criou um novo sistema musical completo com o dodecafonismo, e na arquitetura, o estilo romântico ornamental foi substituído pelas construções funcionais da Bauhaus.

Artistas atuais também estão lidando intensamente com o tema. Museus já estão reunindo fotografias e objetos cotidianos para documentar o atual estado de emergência para gerações futuras.

Ainda não sabemos como o mundo mudará depois da covid-19. Mesmo assim, podemos contribuir para deixá-lo melhor.

Além disso, há outra semelhança: ambas as doenças são zoonoses, ou seja, transmitidas aos seres humanos por animais, porém, por meio de mutações que se tornaram mortais.

Em seu livro Spinney questiona, se, ao domesticar animais selvagens, ativamos ou até criamos reservatórios animais para vírus da gripe. Eu acredito que isso é muito possível. A gripe espanhola e a covid-19 não são os únicos exemplos disso. Há também o HIV, a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars), de 2002, e a gripe suína, de 2009.

Então, quando vamos parar de comer carne? Eu já tomei essa decisão para mim, não somente devido ao novo coronavírus. Talvez, contribua para enganar vírus com isso. Essa seria minha grande contribuição pessoal para mundo pós-pandemia.

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