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LiteraturaGlobal

O que torna Franz Kafka tão universal e atemporal?

Augusto Valente | Kristina Reymann-Schneider
2 de junho de 2024

Quem nunca se sentiu engolido por um mundo indiferente? No centenário de sua morte, um dos mais famosos autores de língua alemã continua atual. Sua figura é meme nas redes sociais. Mas cautela: Kafka não é igual a Kafka.

Autor Franz Kafka
Família de Franz Kafka fazia parte da minoria judaica germanófona de PragaFoto: Darchivio/opale.photo/picture alliance

Em 3 de julho de 1883, Franz Kafka já nasceu outsider, como parte da minoria dos judeus de idioma alemão de Praga, no então Império Austro-Húngaro. Nem na família ele encontrava amparo: durante toda a vida sofreu sob uma figura paterna autoritária, que preferia ter um filho comerciante do que escritor.

Incapaz de se sustentar só com a literatura, Kafka trabalhava da manhã até o meio-dia numa seguradora, para depois se dedicar às atividades que lhe davam prazer: andar de motocicleta, ir ao cinema e frequentar o bordel.

Era um tipo esportivo, fazia visitas turísticas a Berlim e Paris, gostava de estar no meio de gente. Com as mulheres, por outro lado, não se entendia tão bem, em parte por culpa das expectativas da sociedade: quanta proximidade era aceitável, se o relacionamento era a sério? Kafka não sabia julgar, o que o deixava inseguro.

Kafka visitou Berlim pela primeira vez em 1910Foto: Bildagentur-online/Sunny Celeste/picture alliance

Acima de tudo, entretanto, escrevia noite e dia: cartas, diários, contos, romances. Seu melhor amigo, o também escritor Max Brod, que conhecera durante o estudo de Direito, reconheceu seu talento literário, encorajando-o a publicar. Mas Kafka duvidava da própria capacidade.

Em 3 de junho de 1924, a um mês de seu 41º aniversário, morreu de tuberculose da faringe. Antes, encarregara Brod de queimar postumamente todos os seus escritos, mas, para sorte da posteridade, o amigo desrespeitou esse desejo.

Caso contrário, nunca teria sido publicado o romance inacabado O processo, que hoje consta entre as obras kafkianas mais célebres. Seu protagonista, Josef K., é objeto de uma ação judicial sem jamais ficar sabendo do que é acusado. Como costuma acontecer nas obras do autor, a história não acaba bem.

Kafkiano, para além do espaço e do tempo

Por motivos ideológicos e raciais, o regime nacional-socialista da Alemanha (1933-1945) baniu e mandou queimar todas as obras do escritor judeu. Assim, ele acabou primeiro ficando mais conhecido no exterior, embora hoje seus livros sejam leitura obrigatória nas escolas alemãs.

Mas Kafka é lido em todos os continentes, reverenciado nos meios intelectuais, adaptado para o palco e as telas. Há especulações de que possa ter inspirado o álbum conceitual The Wall, da banda Pink Floyd. Uma pista: o título de uma das faixas é, justamente, The trial. Mas há pelo menos duas óperas declaradamente baseadas no inacabado O processo: uma da autoria de Gottfried von Einem (1953) e outra de Philip Glass (2014).

Autores como Clarice Lispector e Jorge Luis Borges reconheceram a influência de Kafka, de forma direta ou implícita. O Nobel da Literatura colombiano Gabriel García Márquez (1927-2014) revelou ter sido a leitura de A metamorfose que o inspirou a escrever textos literários.

Minimalista, desenho de Kafka 'Homem sentado à mesa' ecoa a sensação de impotência de seus escritosFoto: picture alliance/akg-images/Archiv K. Wagenbach

Kafkiano, kafkaesque, kafkaesk, kafkovský, kafkavari: o termo existe em praticamente todos os idiomas, do português, espanhol, italiano, francês, inglês, alemão ao tcheco, turco, russo, japonês, coreano e outros.

Ainda assim defini-lo precisamente não é tão simples: ele indica algo inexplicavelmente ameaçador, absurdo, bizarro, muitas vezes burocraticamente labiríntico; uma paranoia possivelmente justificada. Esse "desespero tranquilo" se expressa também, de forma minimalista, num desenho de Kafka de 1905, Homem sentado à mesa.

Um dos temas centrais do funcionário-escritor Kafka é a burocracia, o confronto com as autoridades e, mais ainda, a sensação de impotência perante elas. Em seu podcast Being Kafka, o autor colombiano Hernán D. Caro especula se ele não tirava sua inspiração de sonhos, mais especificamente de seus pesadelos.

Se Kafka fosse uma personagem de videogame

Os sentimentos que Kafka explora poeticamente – de estar perdido, ser só e indefeso num cosmos indiferente – valem tanto para os seres humanos de 100 anos atrás como para os de hoje, independente de contextos culturais ou estruturas políticas. Ele é ao mesmo tempo enigmático e imediatamente compreensível.

Para Caro, além disso, a linguagem clara e direta facilita a adaptação para outras línguas. E Kafka teria deixado um enorme presente às gerações subsequentes de autores ao lhes mostrar como se escreve sobre as situações mais surreais como se fossem a coisa mais normal do mundo.

Memorial a Kafka em sua cidade natal, Praga, hoje capital da República TchecaFoto: Dragoslav Dedovic/DW

No centenário de sua morte, a imagem de Franz Kafka pulula nas redes sociais como meme, assim como uma de suas criações mais icônicas: o inseto em que Gregor Samsa, o protagonista de A metamorfose, acorda uma bela manhã transformado. Pois Kafka fala de perto a uma juventude contemporânea em conflito com as autoridades, que tantas vezes se vê tão perplexa, perdida, quanto ele.

No TikTok, não faltam sequer bolos de aniversário com o inconfundível rosto triangular, de orelhas grandes demais, o olhar pensador, meio atônito. E proliferam-se citações tiradas de seus livros: mesmo não sendo sempre exatas, são testemunho inegável da relevância e universalidade desse pensador literário.

No entanto, cautela: a maioria dos conteúdos na plataforma não se refere ao escritor, mas sim a uma figura do videogame chinês Honkai: Star Rail, de seios exuberantes, cabelos e olhos violeta, óculos escuros pousados no alto da testa, hot pants por cima das meias de seda. Seu elemento é "relâmpago".

E assim, sem nada fazer para tal, sem conexão temática nem explicação lógica, o nome do inimitável autor entrou em cheio para a cultura pop no corpo de uma personagem feminina de ação em estilo animê.

Uma estranha metamorfose, que destino mais kafkiano...

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